sábado, 3 de dezembro de 2011

livro sobre a bossa nova


in DIÁLOGOS LUSÓFONOS

Livro: ‘Chega de Saudade’, de Ruy Castro

Obra retrata como se consolidou a bossa nova, o movimento musical mais internacionalizado que o Brasil já teve
Até hoje a bossa nova continua a encantar sutis audições, rememorando aqueles belos tempos dos anos 50. Também pudera: passados quase uma década de ditadura do Estado Novo e instaurada uma das democracias mais efêmeras que a história presenciara, naquele tempo os ares eram solícitos para o parto de um movimento tão pacífico e sofisticado.
Ruy Castro fez um registro simbólico do movimento mais internacionalizado que o Brasil já teve no já clássico Chega de Saudade.
Tudo começou em Juazeiro no final da década de 40. Um jovem admirador do violão, avesso às imposições do pai, tocava suas primeiras notas sob as sombras de um tamarineiro. Esse jovem mudaria para sempre a história da música brasileira – depois de anos à procura da batida perfeita entre decepções nas estações de rádio no Rio de Janeiro e estadias nada cordiais nas casas de parentes e colegas. O jovem era ninguém menos que João Gilberto.
João Gilberto e seu ávido perfeccionismo foram tão maçantes que, não fosse a paciência de Tom Jobim, o disco Chega de Saudade, talvez o maior clássico da Bossa Nova, certamente acabaria caindo na desistência
A apuração de Ruy retrata um Gilberto aparentemente antipático com o cenário musical da época e um poder de amabilidade tão intenso com as pessoas, que convencia qualquer um a conceder abrigo em seus lares. Entretanto, elas sempre batiam com a cara nos nabos se esperassem pelo bom senso do violonista: não trazia um tostão para ajudar nas despesas, vivia saindo sem rumo e atrapalhava o cotidiano dos colegas de quarto com suas chegadas repentinas pela madrugada. Sua única recompensa era encantar os ouvidos com seu violão interpretando canções de Lúcio Alves e, pouco depois, com algumas composições próprias, como as destacadas “Bim-Bom” e “O pato”.
Como todas invenções, a Bossa Nova não nasceu das entranhas de um único sujeito; não dá pra definir quem seria o suposto ‘dono’ dela. Antes de João Gilberto atingir, depois de anos de treino, a batida unânime, o fã-clube de Dick Farney e Frank Sinatra, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi essencial para os posteriores encontros que aconteceriam no famoso apartamento de Nara Leão. Os membros do clube proporcionavam um clima descontraído tirando, entre amigos, acordes descompromissados dos artistas que reverenciavam.
Se alguém decidisse pôr os pingos nos is de uma vez por todas para nomear os responsáveis pela transcendência da Bossa Nova, estaria passível a cometer injustiça. Nem mesmo Ruy Castro conseguiu com sua obra. Por mais que detalhasse as nuances do movimento, seria impossível escrever uma biografia no mínimo reveladora de cada átomo que formava essa molécula: João Gilberto, Tom Jobim, Newton Mendonça, Vinícius de Moraes, Sylvinha Telles, Maysa, Elis Regina, Sérgio Mendes, João Donato, Os Cariocas, Johnny Alf, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão…
Para completar as cerca de 420 páginas da edição original de 1990, da Companhia das Letras, o jornalista teve que se ater aos momentos mais memoráveis para a consolidação do movimento. Um dos mais marcantes é a gravação do disco-chave da bossa: Chega de Saudade. João Gilberto e seu ávido perfeccionismo foram tão maçantes que, não fosse a paciência de Jobim, esse disco certamente acabaria caindo na desistência (um motivo de reverência a mais ao maior compositor da Bossa Nova). Na verdade, os dois nunca foram muito amigos. Apenas as relações comerciais e obras do acaso os uniram. (Isso não impedia que um reconhecesse o outro como imprescindível para o sucesso do movimento. Porque eles realmente foram.)
Talvez a explosão da bossa nova já fosse prenunciada desde o dia do seu surgimento. Mobilizar e incorporar em seu time até um poeta diplomata do Itamaraty – Vinícius de Moraes – significa que o sucesso seria uma tangente inevitável. Vinícius, apesar de sua grandiloquência como compositor e nem um pouco conservador na arte de beber whisky, se revelaria um belo de um ciumento. Raptou Jobim de sua parceria com Newton Mendonça e formou uma das maiores duplas da música brasileira. E quando o poeta viu Jobim compromissado com o sucesso de suas letras e, ao mesmo tempo, se viu bitolado de viagens diplomáticas que era obrigado a realizar, arranjou propositalmente outro parceiro para fazer inveja a Jobim: Baden Powell. Com ele trancafiou-se durante três meses em seu apartamento, sustentados por dezenas de caixas de whisky importados da Europa. Os Afro-Sambas é o exemplo prático das inspirações que suplantaram os compositores naquele período – um dos maiores discos brasileiros de todos os tempos, pode ter certeza disso.
Baden Powell & Vinicius de Moraes: “Tempo de Amor”
Caminhos diferentes
Em outros arredores, Carlinhos Lyra e Roberto Menescal fundaram uma escola de violão que atraía mulheres em sua maioria, numa época em que tocar o instrumento era sinônimo de vagabundagem. Daí para os ensaios no apartamento de Nara Leão foi um pulo. Além dos violonistas boa pinta, Ronaldo Bôscoli, Dori Caymmi, Chico Feitosa, Bebeto, os irmãos Mário, Oscar, Léo e Iko Castro Neves, entre muitos outros, participavam dessas reuniões consentidas pelos pais da musa da Bossa Nova.
Mas, com o tempo, esse rótulo ornamental e pueril seria engolido pela ferocidade do sobrenome Leão da musa. O rompimento de Carlinhos Lyra com Roberto Menescal, em 1960, suscitado por uma oportunidade de Lyra de sair da gravadora Odeon e migrar para a Philips, com a oportunidade única de dar rumo ao seu álbum homônimo, dividiu os músicos. As manchetes dos jornais faziam questão de explorar esse ‘fato sensacional’ e cutucar com vara curta os dois compositores. Mas o que pesou mais para a dissolução da turma foi o desapontamento de Nara ao ver Maysa divulgando à imprensa que se casaria com Bôscoli, seu namorado na época. Isso a irritou tanto, que ela acabou se rebelando com toda aquela euforia e mesquinhez das letras bossanovistas e, com o tempo, foi se aproximando aos sambistas de morro Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho.
Bombardeios ao seu abandonado movimento passaram a ser o tema de suas declarações aos jornais. Foi nesse clima que Nara gravou Opinião, um paradigma da bossa nova. Deixou para trás as canções sobre sorriso, amor, praia e flor e iniciou as temáticas sociais, no sentido de buscar um reflexo da indignação política que o povo sentira após o golpe militar de 64. Nara era tão bocuda que não poupava termos para criticar o general Castello Branco, mesmo em frente às câmeras.
Nara Leão: “Opinião”
Festivais e internacionalização
É curioso imaginar como um movimento brasileiro teria uma repercussão tão grandiosa em termos internacionais, ainda mais em tempos onde a divulgação era um processo mais complexo que os dias de hoje.
Músicos estrangeiros que vieram ao Brasil em turnê ou de passagem ficavam pasmos com a leveza da batida de João Gilberto e com as temáticas paisagísticas das composições de Tom Jobim – e olha que impressionar célebres como Stan Kenton ou Miles Davis não era para qualquer movimento musical.
O termo Bossa Nova apareceu pela primeira vez em um show de Sylvinha Telles no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, no primeiro semestre de 1958. O termo foi cunhado por uma secretária não identificada e dizia: “Hoje, Sylvinha Telles e um grupo bossa nova”
No início, eram os festivais amadores nas universidades. Até então, não havia nome para essa ‘coisa nova’ que estava surgindo na canção brasileira. Quem definiu o termo secular foi uma secretária não identificada que auxiliou na publicidade do show no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, no primeiro semestre de 1958. A divulgação resumia-se a um quadro negro, com os caracteres: “Hoje, Sylvinha Telles e um grupo bossa nova”. A dona do parto permanece anônima até hoje, mas o que se sabe é que o termo já remetia a algo novo desde a época de Noel Rosa.
Esse show abriria muito mais portas do que se imaginava. Depois dele, as universidades ofereceriam seus respectivos espaços para as cabalísticas apresentações amadoras do movimento. Para se ter uma ideia, a positiva repercussão atingiria a amplitude dos grandes concertos, em presença de nomes estrangeiros que instintivamente se interessariam pelo som e fariam o possível para estampá-la ao mundo. Graças a esses shows amadores, o Itamaraty firmaria uma parceria com a gravadora americana Audio-Fidelity, na intenção de levar alguns dos principais nomes da Bossa Nova ao Carnegie Hall, nos Estados Unidos. Conseguiu. E foi um estouro.
Também foi a brecha para que se abrisse uma das portas mais oportunistas do movimento. Creed Taylor, dono da gravadora Verve, convidaria João Gilberto e Tom Jobim para gravar com o saxofonista Stan Getz aquele que seria um dos melhores trabalhos já feitos sobre a Bossa Nova – Getz/Gilberto (1964). São oito faixas primorosas que escondem as desavenças que Gilberto sempre causava ao trancafiar-se em estúdio. Durante as gravações do álbum Jobim, mais uma vez, salvaria com sua placidez:
- Tom, diga a esse gringo que ele é um burro – disse João Gilberto.
- Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você.
- Engraçado. Pelo tom de voz, não parece que é isto o que ele está dizendo…
Consolidação? Só lá fora…
O Brasil se transformara num verdadeiro ringue cultural de disputas partidárias: uma acirrada batalha entre os conservadores dos ritmos tradicionais da bossa nova versus a ousadia e referência beatlemaníaca dos integrantes da Jovem Guarda. Isso se tornou um cenário não muito apropriado para a bossa nova. A Ditadura Militar transfigurara toda a proposta do violão, voz baixa e letras leves do movimento paz e amor. Os artistas, agora, tinham outra preocupação: demagogia e politização social – tempos das canções de protesto lideradas por Geraldo Vandré e Edu Lobo, e, algum tempo depois, o surgimento da vanguarda tropicalista de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Essa hostilidade levou os outros integrantes da bossa a tomarem a mesma decisão que João Donato havia tomado há anos: ir morar no estrangeiro. Os motivos são os mais variados: dentre eles, a possibilidade de se apresentarem em espetáculos grandiosos na Europa e no Japão (principalmente no caso do pianista Sérgio Mendes).
Apesar de não ganhar tanta grana como Stan Getz pelo trabalho que realizaram juntos, João Gilberto também agregava ao seu currículo apresentações internacionais, com direito a “Garota de Ipanema” cantada em inglês na voz de Astrud Gilberto, a mais nova revelação como intérprete.
Tom Jobim teria duas surpresas impensáveis nos tempos ambivalentes entre decepções financeiras e infindáveis inspirações para compor, quando ainda era um simples broto carioca. Primeiro: veria um de seus ídolos abrir um show seu na Europa – o saxofonista Stan Kenton. Depois, gravaria um álbum com o ídolo máximo de sua geração, o todo-poderoso Frank Sinatra.
A Bossa Nova é um movimento que já faz parte dos mais ilustres capítulos que a História do Brasil presenciou no século passado. Ela está de mãos dadas com a bela época da democracia dos anos 50. Por isso, nos dias de hoje, é praticamente impossível emergir algum improvável mau humor diante de letras e melodias tão suaves e simplórias. Verdadeiro retrato de uma época efêmera, mas que jamais deverá ser esquecida pela profunda inspiração lírica que proporcionou.

Texto originalmente publicado em O Atemporal.
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3 Responses to “Livro: ‘Chega de Saudade’, Ruy Castro”

  1. [...] Tiago, do Na mira do Groove, resenhou Chega de saudade, de Ruy Castro. Ubiracy de Souza Braga escreveu sobre Franz Kafka e a figura paterna em [...]
  2. [...] os integrantes formularam uma espécie de remake criativo que lembra os primeiros passos que a Bossa Nova deu lá nos anos 50, no Rio de Janeiro. Não há muito o que definir do Sonantes: mas dá pra se [...]
  3. [...] “Ele usava o corredor como uma espécie de megafone”, afirmou Ruy Castro no livro Chega de Saudade. Bôscoli não pode deixar de comentar, depois de tanta insistência de João nessa música: [...]
     

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