quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Português excluído com a cumplicidade do Governo

Português excluído com a cumplicidade do Governo

António Justo
A gora que o Parlamento Europeu pôs na ordem do dia a votação das línguas a empregar no regime europeu de patentes muitos dos nossos deputados comportaram-se como mercenários de legiões estrangeiras.

O Português foi excluído com a cumplicidade do nosso governo. Ficou só a ser em inglês, francês e alemão.

Esta iniciativa desrespeita a igualdade e discrimina a capacidade de concorrência no mercado interno. Assim, os mais fortes ficam ainda mais competitivos. Facto é que o Instituto Europeu de Patentes tem seis mil funcionários… Os portugueses que paguem o serviço.

Fonte competente revela que votaram “a favor do interesse nacional, só CDS (Nuno Melo e Diogo Feio), PCP (Ilda Figueiredo e João Ferreira) e dois PSD (Carlos Coelho e Graça Carvalho). Contra o interesse nacional, votou todo o PS e a maioria do PSD”.

Os nossos boys são bem comportados. Depois os países fortes dão-lhes alguns tachos que os compensam do que roubam a Portugal. Depois queixam-se que Portugal vai mal. A democracia diminui em benefício da partidocracia.

Esperemos que os espanhóis levem a coisa a tribunal!

António da Cunha Duarte Justo
www.antonio-justo.eu

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Os três círculos da lusofonia * Fernando Cristóvão**



Os três círculos da lusofonia * 

Fernando Cristóvão**

Situa-se a lusofonia na convergência de várias dinâmicas que a História lusa tem despertado ao longo dos séculos: a das utopias de Vieira, Sílvio Romero, Pessoa, Agostinho da Silva e muitos outros, e a dos factos e situações criadas a partir da colonização portuguesa e das opções livres partilhadas pelos novos países que reafirmaram a língua portuguesa como sua língua materna, oficial ou segunda. 

Actualmente, oito países independentes dialogam em português e o usam como língua materna, língua de comunicação internacional, língua de ciência, cultura, ensino, religião: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor. 

Na construção de uma utopia de Quinto Império, arquétipo mítico da Lusofonia, Vieira imaginou um império de carácter religioso e universal, como o descreveu visionariamente na História do Futuro: «É conclusão, e de fé, que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido pelos profetas, é o Império de Cristo e dos cristãos (…) contudo, a sentença comum dos santos e recebida e seguida como certa por todos os expositores é que (…) é Império da Terra e na Terra (…) espiritual no governo, espiritual no uso, nas expressões e no exercício (…) Em qualquer tempo futuro será sempre espiritual.»1 

Fortemente inspirado naquele a quem apelidava de “Imperador da Língua Portuguesa”, Pessoa entendeu o Quinto Império não como religioso mas como cultural, uma Pátria, na expressão do heterónimo Bernardo Soares, em que a língua portuguesa seria o cimento da união de vários povos, pois outro sentido não tem o seu “atlantismo”: 

«Não há separação essencial entre os povos que falam a língua portuguesa. Embora Portugal e o Brasil sejam politicamente nações diferentes, contêm, por sistema, uma direcção imperial comum, a que é mister que obedeçam. 

«(…) Acima da ideia do Império Português, subordinado ao espírito definido pela língua portuguesa, não há fórmula política nem ideia religiosa, (…) Condições imediatas do Império da Cultura é uma língua apta para isso, rica, gramaticalmente completa, fortemente nacional.»2 

Língua esta desse Império e dessa Pátria que claramente Pessoa explicou ser a língua portuguesa. 

Entre os “papéis” da famosa arca dos textos manuscritos de Pessoa, uma das investigadoras da sua obra declara ter encontrado «o plano de um tratado para a defesa e ilustração da Língua Portuguesa», que seria formado por duas partes distintas, uma ortográfica e prosódica, e a outra sobre a sintaxe dos verbos, pois o seu objectivo era «a fixação dos meios materiais do Império.»3 

Bem antes de Pessoa, em 1902, e apesar do ambiente antilusista que se vivia então no Brasil, olhando a realidade europeia e mundial com alguma preocupação, o brasileiro Sílvio Romero preconizou que, na base da língua e tradições portuguesas que são raízes do Brasil, e inspirado no exemplo inglês, se organizasse um bloco linguístico, político e cultural. E o seu objectivo seria obstar, à recolonização de potências imperialistas e racistas europeias, inspirada na Conferência de Berlim de 1884. 

«Uma das ideias mais ousadas, atribuída, creio que a Cecil Rodhes, é a de uma imensa federação de gentes que falam a língua inglesa, e é verdadeiramente um pensamento genial. 

«(…) Sim, meus senhores: Não é isto uma utopia, nem é um sonho a aliança do Brasil e Portugal, como não será um delírio ver no futuro o Império Português de África unido ao Império Português da América, estimulado pelo espírito da pequena terra de Europa que foi berço de ambos.»4 

E, insistindo no papel aglutinador desempenhado pela língua, relembra que Portugal ««que transplantou para aqui a nossa língua (...) teve o intuito superior de aliar-se às raças que encontrou no país, consideradas por ele fundamentalmente coloboradoras e amigas, e às quais, dando-lhes a língua, equiparou a si (...). 

«Bastaria o facto extraordinário, único, inapreciável, transcendente da língua para marcar ao português o lugar que ele ocupa em nossa vida (…) Ela só por si, na era presente, serve para individualizar a nacionalidade.»5 

Agostinho da Silva visionou, por entre sonhos e metáforas, um Quinto Império sob a égide do Espírito Santo, inspirado tanto nas teorias de Joaquim de Floris, como no culto do Divino praticando nos Açores e outras partes do mundo. 

Caracterizava-se esse reinado pela construção de uma nova sociedade baseada na inocência, de que as crianças são modelo, na partilha dos bens como na das «sopas do Divino», e na liberdade que destruísse todas as prisões. 

«Com esta religião do Espírito Santo, e nada mostra melhor o eclipse do espírito português do que ter sido ela relegada a uma espécie de curiosidade folclórica, quando representa o essencial da nossa vivência religiosa, ainda se mostrava que se não esquecera aquela palavra do Evangelho que manda tomar por modelo de vida santa a humildade, a fragilidade, a generosa alegria, a capacidade de imaginação, o gosto do jogo e a inocência dos meninos. E chamo inocência à capacidade que eles têm de não separarem seu corpo da sua alma, mas de os viverem num conjunto de espírito. 

«(…) Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do Império (…), este Quinto Império de que falamos, o Império do Espírito Santo. 

«(…) Deveremos promover uma cultura geral pluriforme, em que estejam nítidas, bem marcadas, todas as especificidades de cada uma das culturas dos diferentes países, e dentro desses países, as culturas das suas religiões, e dentro das religiões as culturas individuais de cada homem.»6 

Não admira, pois, que, tendo absorvido esta ambiência utópica, o linguista brasileiro Sílvio Elia construa o conceito arquetípico da “Lusitânia” como outro nome da Lusofonia mapeando esse grande espaço linguístico-cultural desta forma: Lusitânia Antiga (Portugal), Lusitânia Nova (Brasil), Lusitânia Novíssima (países africanos lusófonos), Lusitânia Perdida (antigos territórios como Goa, Macau, emtrepostos vários na Ásia e África)7, a que deveríamos agora acrescentar Timor como integrante da “Lusitânia Novíssima”. 

Tem sido neste fundo cultural, simultaneamente místico e pragmático, que a teoria e a prática da Lusofonia se vem construindo, com avanços e recuos, vitórias e derrotas, mas sempre em progressão. 

Porque a Lusofonia não é só a soma de territórios e populações ligados pela língua. É também um certo património de ideias, sentimentos, monumentos e documentação. 

Num universo populacional que ultrapassa os duzentos e dez milhões de pessoas, nem é possível nem desejável que uma homogeneização de pensamento e acção se estabeleça, mas tão-somente a tomada de consciência progressiva de muita coisa que une os oito países, na língua, nas tradições históricas e culturais, na religião, numa certa forma de relacionamento humano, afinidades que o passado nos legou, a língua comum facilita, e a vontade dos povos pode fazer avançar, marcando a diferença e o contraste com as características de outros grupos de povos de outras fonias. 

Porque a Lusofonia está em construção há quem deseje consolidá-la, e quem lhe seja hostil. 

Há quem a olhe sob “suspeita” de uma “invenção meta-histórica”, como um sucedâneo neocolonialista do império colonial perdido. Há quem veja a língua como pátria, no sentido de uma realização pessoal, ignorando ou esquecendo o muito que Pessoa escreveu sobre ela, como fundamento do Quinto Império. Há os que, alérgicos à francofonia, a receiam como modelo... 

Mas há os que acreditam nela e a constroem todos os dias, não só na descoberta do património linguístico e cultural comum e anexo, mas sobretudo na multiplicação de laços entre as instituições e grupos profissionais dos oito, em acções de cooperação, na valorização dos afectos. 

Em consonância com tudo isto, uma realidade funcional é incontestável: os oito países usam e enriquecem com as suas variedades a língua comum de diálogo, e querem ir mais além, em função do tempo e das oportunidades. 

Quem pode, por isso, sem preconceitos ou má-fé, negar a existência da lusofonia? 

Na sua construção, algumas realidades começam a tornar-se especialmente visíveis como caminhos a confirmar, aquilo a que chamaremos os “três círculos da lusofonia”. 

O primeiro círculo, nuclear dos três concêntricos, é o das oito nações lusófonas independentes, e das regiões que, pertencendo a outros Estados independentes, também se consideram lusófonas, sem prejuízo da sua outra identidade e fidelidade nacionais: Galiza, Goa e outros pequenos territórios da Índia, Macau, Casamansa... 

Se a língua é o elemento aglutinador de pessoas, instituições e nações, e se não se preconiza a existência de uma só cultura e língua, pois são múltiplas as culturas e línguas até dentro de várias das nações lusófonas, há que reconhecer que o principal elo de ligação entre as oito é a língua que lhes é mais comum, a portuguesa. E que ela, não só não é substitutiva das outras línguas nacionais ou regionais, mas com elas convive, pois todas têm funções específicas diferentes. Aliás, uma coisa é a “língua de cultura” comum a toda a Lusofonia, e outras as diversas variantes e normas cultas dos vários países. 

Com a autoridade que todos lhes reconhecem, Edgar Renault, Celso Cunha, Celso Luft e outros redigiram, em 1986, umas “directrizes” para todos os professores de Português no Brasil, em que recomendavam, entre outas coisas, um entendimento correcto do que se devia entender por “língua de cultura”, e as suas relações com “norma culta” e “língua culta”. 

«A emergência de variedades linguísticas postulou a existência de duas ou mais normas cultas dentro de uma mesma língua de cultura. É o que ocorre com o nosso idioma no Brasil, em Portugal, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe. O conceito de língua culta, conexo ao de norma culta não coincide, pois, com o de língua de cultura. As línguas de cultura oferecem uma feição universalista aos seus milhões de usuários, cada um dos quais pode preservar, ao mesmo tempo, usos nacionais, locais, regionais, sectoriais, profissionais.»8 

Celso Cunha adiantava ainda, em opúsculo especial: «Essa república do português não tem uma capital demarcada. Não está em Lisboa, nem em Coimbra; não está em Brasília, nem no Rio de Janeiro. A capital da língua portuguesa está onde estiver o meridiano da cultura.»9 

As oito nações lusófonas só têm a ganhar em pertencerem a esta “República” ou “Império”, quer pelos diversos tipos de diálogo e iniciativa que estabelecem entre elas, quer por melhor poderem resistir às invasões de outros grupos linguísticos de ambições hegemónicas que, agora, são, sobretudo, de carácter comercial e cultural mas poderão voltar a transformar-se em projectos de dominância territorial. 

A resistência principal é ao inglês, mas o chamado “internautês” pode representar alguma preocupação a ter em conta. 

É neste grande círculo que se joga o futuro da lusofonia. É nele que se situa a “Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa” (CPLP), criada em 1996, que tarda em impor-se na cena internacional. Não só por circunstância da instabilidade organizativa dos países de África, propondo outras fidelidades estritamente africanas, ou mais vastas de natureza económica, como a do Commonwelth, mas também por ter cometido o gesto precipitado de não ter antes posto a funcionar o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, IILP, criado no papel em 1989. Sendo este instituto o da formação e defesa da língua e da cultura, a sua acção poderia contribuir em muito para estimular a base de apoio popular e institucional da sociedade civil que facilitaria os passos seguintes de iniciativas políticas e económicas. 

O segundo círculo concêntrico deste, que envolve o primeiro, é constituído pelas outras línguas e culturas de cada um dos oito países em que, naturalmente, se estabelece o diálogo e colaboração entre a língua e a cultura comuns e as outras línguas e culturas do país, com vista a estimulá-las e protegê-las, tanto nacionalmente, como internacionalmente. 

Porque nem a língua de comunicação internacional prejudica as línguas locais, nem estas aquela, pois todas têm o seu espaço e funções próprias, e não é admissível, hoje, o imperialismo linguístico de uma língua dentro de um mesmo território, reprimindo ou enfraquecendo as outras. 

Entendemos que nas funções do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, que melhor se chamaria “Instituto Internacional Lusófono”, está a de apoiar a valorização das outras línguas do país, a sua escolarização, edição, etc. 

Até porque se não for a “língua de cultura” internacional a proteger as línguas regionais ou locais, em pouco tempo elas desaparecerão, por acção desse grande agente descaracterizador cultural que é a globalização. 

O terceiro círculo da lusofonia, também concêntrico, e o mais amplo, é formado pelas instituições, pessoas e grupos alheios aos países lusófonos mas que mantêm com a nossa língua comum e com as culturas e literaturas lusófonas um diálogo de erudição, de amizade, de simpatia, de interesses vários. 

É integrado por professores e alunos dos ensinos universitário, politécnico, secundário, por familiares e conviventes de emigrantes, empresários, religiosos, eruditos, técnicos... 

São milhares de pessoas de uma qualificação especial, de outros povos, línguas e culturas que se interessam por nós. 

Estão estes lusófonos especiais, ou lusófilos, em situação de algum dinamismo social e intelectual, em condições de intensificarem o intercâmbio entre os nossos países e os seus, de outras línguas e culturas, por isso, há que encorajá-los. 

E fazem-no divulgando em suas terras ideias e realizações lusófonas, e entre nós, ideias e realizações suas, dando-nos a conhecer melhor as suas culturas. Intercâmbios estes que se podem traduzir, se estimulados, em acções de cooperação económica, social, turística, técnica. 

Reconhecer a existência deste terceiro círculo como o de um conjunto de instituições e pessoas abertas à lusofonia devia levar também as instituições lusófonas a uma política de aproximação que não se traduzisse só em reconhecer e premiar os seus méritos mas sobretudo em promover, nos cursos de verão das universidades, programas especiais de interdependência. E para esta tarefa deviam ser especialmente motivadas algumas empresas que cooperam com empresas desses países e, muito em especial, a indústria turística. 

Conhece a lusofonia avanços e recuos, mas estamos em crer que a sua dinâmica interna irá construindo pacientemente um futuro de solidariedade. 

1 História do Futuro, do Padre António Vieira, in Obras Escolhidas, Sá da Costa, Lisboa, 1953, pp. 39, 48, 56 

2 Fernando Pessoa, in Sobre Portugal, de Joel Serrão, Lisboa, Tipografia C. Nacional Editora. 1902, p. 11 

3 Pessoa Inédito de Teresa Rita Lopes, Livros Horizonte, Lisboa, 1993, p. 240 

4 O Elemento Português, de Sílvio Romero, Tipografia C. Nacional Editora, Lisboa, 1902, p. 11 

5 Sílvio Romero, ibidem, pp. 12-14 

6 Disperso, de Agostinho da Silva, Icalp, Lisboa, 1988, pp. 195, 123 

7 A Língua Portuguesa no Mundo, de Sílvio Elia, Ática, S. Paulo, 1989, pp. 16, 17 

8 Directrizes para o Aperfeiçoamento do Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa, de Edgar Renault e Outros, Ministério da Educação, Brasília, 1986, pp. 5, 6 

9 Uma Política do Idioma, de Celso Cunha, S. José, Rio, 1964, p. 38

* texto publicado originalmente na revista "Humanidades", Lisboa, Setembro de 2002
** Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, membro da Academia das Ciências de Lisboa, presidente da Associação de Cultura Lusófona (ACLUS). 

2003-04-16 
 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Egipto ou Egito

Língua Como se escreve? Egipto ou Egito
No âmbito do meu trabalho surgiu-me uma dúvida na aplicação do Novo Acordo Ortográfico. Agradecia que me ajudassem. Segundo as regras a palavra “Egipto” deveria manter-se como tal pois o “p” sempre se leu, correto? A minha dúvida é que há vários meios de comunicação a falar “Egito” mas depois mantêm palavras com “Egípcios”, etc. Outra possibilidade é que na palavra em questão seja aceite a dupla grafia, mas mesmo assim seria o mais correto mantermos o “Egipto”, não?
A alínea b) da Base IV do Acordo Ortográfico de 1990 refere explicitamente o topónimo Egipto como uma das palavras em que o p se elimina porque “o c, com valor de oclusiva velar, das sequências interiores cc (segundo c com valor de sibilante), e ct, e o p das sequências interiores pc (c com valor de sibilante), e pt” se eliminam “nos casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua: ação, acionar, afetivo, aflição, aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção; adoção, adotar, batizar, Egito, ótimo” (o destaque é nosso). Assim sendo, Egipto deverá passar a ser grafado Egito, porque o Acordo Ortográfico considera que o p dessa palavra nunca se pronuncia, ainda que seja notória a oscilação entre a pronúncia e o emudecimento dessa letra entre os falantes do português europeu. Uma vez que o p de egípcio e das suas flexões (egípcios, egípcia, egípcias) é sempre pronunciado, nestes casos não há alteração de grafia, ainda que possa parecer que se institui uma contradição entre a grafia do nome do país (Egito) e a do seu gentílico (egípcio). A "Nota Explicativa" (ponto 4.3 – Incongruências aparentes) relativa à Base IV tenta justificar a divergência ortográfica entre estas palavras, afirmando que “a aplicação do princípio, baseado no critério da pronúncia, de que as consoantes c e p em certas sequências consonânticas se suprimem, quando não articuladas, conduz a algumas incongruências aparentes [...] De facto, baseando-se a conservação ou supressão daquelas consoantes no critério da pronúncia, o que não faria sentido era mantê-las, em certos casos, por razões de parentesco lexical”.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Acordo ortográfico: contra fatos não há alfaiates

04/01/2010 @17:30

Acordo ortográfico: contra fatos não há alfaiates

por Marco Santos
O que escrevi em Junho de 2008 continua a ser a minha opinião, quase dois anos depois. O acordo ortográfico não me causa taquicardia literária. Mais tarde ou mais cedo, acabarei por adaptar-me à nova grafia e escrever exactamente como tenho escrito até hoje. Também não me sentirei menos português por causa disso.
Chateia-me ouvir portugueses dizer que estão contra o acordo ortográfico porque não querem escrever como os brasileiros. Eu ficava mais descansado se essas tomadas de posição fossem em defesa da língua portuguesa bem escrita, com ou sem acordo. E acho notável que se fale de uma revisão ortográfica como se esta implicasse uma mudança na estrutura do nosso idioma.
Sempre me ensinaram na escola que ortografia é uma coisa, gramática é outra. Talvez um professor de Português tenha a amabilidade de explicar ao pessoal qual delas é mais importante para a consistência da nossa língua, a ortografia ou a gramática.
Estejam descansados: mesmo depois desse detestável acordo ortográfico entrar em vigor à séria, uma portuguesa continuará a ter um cu e uma brasileira uma bunda.
Mas a propósito de não querer escrever como os brasileiros, experimentem dizer bunda e cu em voz alta e depois digam-me lá qual das palavras vos parece mais rechonchuda. Cu têm as mães de Bragança. E quem tem cu tem medo. Medo de mudar.
Vivemos demasiados anos sob uma ditadura que incentivava a ignorância. Fizeram-nos uma lavagem ao cérebro de tal maneira que continuamos a sentir o «orgulhosamente sós» do Salazar como a manifestação de um sentimento patriótico – o que essa expressão realmente revela é estupidez e uma mentalidade bota-de-elástico. Desejo que o meu país acompanhe a evolução dos tempos, não o quero ver refugiado numa redoma linguística à conta do orgulho. E digam-me, qual orgulho? O orgulho de ser um país prestador de serviços em vez de ser um país produtor?
Há outro pormenor que escapará a algumas pessoas: desde a Revolução de Abril que deixámos de ser donos da Razão e, por conseguinte, desculpem-me os detractores do acordo, é uma enorme pretensão da nossa parte afirmar que ocupamos o incontestável trono da língua portuguesa quando não somos a única nação a escrevê-la e falá-la. Soberba Universalidade! Se pensássemos sempre desta forma, ainda estaríamos todos a pedir dinheiro emprestado em Latim. Este não mudou, realmente, e se calhar é por isso que se diz que é uma língua morta.
Portanto a questão aqui é deixar de nos vermos como os reis da moralidade linguística e aceitar que a nossa maravilhosa língua está viva e é para partilhar, não para se deixar segregar neste pequeno retângulo.
Por último, essa história do facto que passa a fato é a maior treta de todas. Em primeiro lugar, porque o «c» só cai quando é mudo – não é o nosso caso, pois dizemos facto e não fato. Ainda assim, quem ouve este pessoal falar em «vestir factos» julga que foi este acordo ortográfico a introduzir na nossa língua as palavras homónimas, ou seja, palavras que se escrevem e pronunciam da mesma maneira, mas têm significados diferentes.
Que vamos fazer então ao rio, que tanto pode ser verbo como nome comum? Vamos drená-lo? O rio atravessa a cidade, eu rio com facilidade. Não causa estranheza porque já estamos habituados, não é? E que vamos fazer nós ao ser, valha-nos Deus? Vocês são gajos porreiros, mas aquele ali não é um indivíduo são da cabeça. E a pobre rapariga que se chamar São? Já devia ter mudado de nome! E os nossos pobres santinhos? Isto é um escândalo!

sábado, 5 de fevereiro de 2011

OS NOVOS ARES DA CRIOULIDADE



OS NOVOS ARES DA CRIOULIDADE
 
O contador de histórias africanas também existe no Brasil.As Congadas, tão tradicionais entre os afrodescendentes, tem tudo a ver com as memórias destes. O estudo PALAVRAS AO VENTO: OS NOVOS ARES DA CRIOULIDADE DIANTE DO TURBILHÃO DA NEGRITUDE, de Miriam de Andrade Levy, nos leva a fazer paralelos com a cultura brasileira. Um excelente tema para reflexão!
 
Observa Miriam de Andrade Levy que os anos de escravidão, de subserviência, de humilhação impediam que o negro, antilhano ou africano, se erguesse. A única voz contrária a este sentimento de inferioridade era a do contador crioulo. Este, ao transmitir a palavra do griot africano, o contador de estórias tradicional, apresentava uma forma de resistência ao processo de colonização.
 
Na sociedade ocidental, a luz é uma metáfora recorrente para a razão e para o pensamento lógico. Ralph Ludwig observa que esta imagem é instaurada no Iluminismo, que com seu pensamento analítico procura dissipar as trevas da ignorância (1994, p.18). Expressões como “à luz de”, “clareza”, “elucidar”, “esclarecer” demonstram como este ideal é valorizado. O que podemos pensar de uma literatura da noite, uma estética permeada de obscuridade?
Assim se designa a literatura contemporânea antilhana, como La Parole de Nuit. Esta remonta às fogueiras tradicionais, diante das quais os homens se reuniam para ouvir a palavra do contador de estórias (o griot). Neste ambiente mítico, a memória dos antepassados é relembrada, as adivinhas e cantos são proferidos e a sabedoria ancestral é transmitida.
 
A noite, mesmo na visão ocidental, constitui o universo do prazer, quando as obrigações cessam e dão lugar ao descanso e ao lazer. Este momento corresponde ao que Mikhaïl Bakhtin descreve como “tempo alegre” para definir as festas medievais, que se opõem ao “tempo do trabalho” (1987, p.191
 
Nas Antilhas, durante o período colonial, a oposição ficava ainda mais nítida quando “o tempo alegre” se opunha à jornada de trabalho nos engenhos. Aos negros só restava a noite para escutar o griot, longe da fiscalização e das exigências dos senhores. De acordo com Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, este teria surgido entre os séculos XVII e XVIII, nas seguintes condições:

A casa grande, após o jantar iluminado, apaga-se subitamente. Os cães, feitores e capatazes estão mergulhados no reino dos sonhos. [...] Na senzala, um grupo de escravos se reúne embaixo de uma grande árvore. Eles esperam. Aproxima-se outro negro de bengala, com idade avançada, com semblante discreto, tão insignificante, se não mais, que qualquer um deles. Sob suas pálpebras, nenhuma insolência. De dia, ele vive o temor, a revolta engolida. Mas à noite uma força obscura o habita. [...] De insignificante ele se ergue como o centro da senzala, o mestre da dinâmica dos contos, adivinhas, provérbios, cantigas que ele transforma em literatura, ou mais exatamente, em oralitura18. Receptáculo, transmissor ou propagador de uma leitura coletiva do mundo, eis o nosso contador crioulo. (1999, pp.72 e 73).
 
 
Margarida Castro
05.02.11

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

E se todas as línguas fossem consideradas crioulas?

Para o debate sobre a língua E se todas as línguas fossem consideradas crioulas? Um olhar pós-colonial sobre a linguística* Jeroen Dewulf Faculdade de Letras da Universidade do Porto; jdewulf@letras.up.pt 1492 não é só um ano histórico por causa da descoberta da América, é também o ano em que aparece a primeira gramática da língua espanhola. Em resposta à pergunta da rainha Isabel, que queria saber para que podia servir uma tal gramática, o bispo de Ávila disse-lhe as palavras mágicas: “Serve para governar, Vossa Majestade”. Por mais distintos que estes dois acontecimentos possam parecer, na verdade têm muito a ver um com o outro. Com a descoberta da América, a Espanha passou a ser a primeira potência mundial, tornou-se num império orgulhoso, convicto da sua missão de espalhar pelo mundo todo os seus valores, a sua religião e...a sua língua. De facto, a história de uma língua é sempre o espelho da história política de uma região. Dito doutra forma, a história de uma língua tem tudo a ver com poder.Nada exemplifica melhor esta realidade do que a famosa expressão em Jiddisch, segunda a qual “uma língua não é mais do que um dialecto com um exército”. Na linguística contemporânea, o poder tem-se tornado numa questão fundamental.Isto enquanto durante várias décadas, a linguística tradicional tentava a todo o custo manter uma posição objectiva e apolítica.Para designar a razão desta viragem significativa na linguística,costuma-se recorrer à expressão inglesa:„The Others speakback“. A expressão refere-se àquelas pessoas, que desde o início do colonialismo tinham sido condenadas à passividade, mas que recentemente têm tomado a palavra para questionar o que nunca dantes tinha sido questionado. A primeira ciência a sentir as consequências desta viragem pós-colonial nas ciências humanas foi a antropologia,a “criada do colonialismo” como Claude Lévi-Strauss alguma vez lhe chamou. Depois seguiram-se a história, a sociologia, os estudos literários e, recentemente, também a linguística. De facto, o tempo em que a linguística era o monopólio de cientistas brancos, oriundos quase exclusivamente de países ocidentais, pertence definitivamente ao passado. Sobretudo universidades norte-americanas têm, nos ultimos anos, seguido uma política no sentido de diversificar a origem étnica dos seus docentes e não é por acaso que as vozes mais críticas em relação à linguística tradicional, que tanto medo tinha em abordar questões ligadas ao poder, têm surgido fundamentalmente a partir dos Estados Unidos. Ilustrativo neste contexto foi o que aconteceu no âmbito de uma conferência sobre crioulismo na Universidade de Chicago em Outubro de 1999. Numa discussão que se seguiu a uma das palestras ali apresentadas surgiu a questão se a diferença entre línguas consideradas crioulas e línguas “não-crioulas” não se baseava, afinal, num modelo ocidental, imperialista e racista.Estas dúvidas não são novas. Já há algum tempo, certos linguistas têm insistido no facto de que a linguística não oferece critérios objectivos que permitam distinguir entre línguas crioulas e não-crioulas. Assim, em Language Creation and Language Change (2001) Michel de Graff escreveu que “[...] any property found in creole languages is [...] also found in some noncreole language. In Hall’s words, ‘There are no structural criteria which, in themselves, will identify a creole as such, in the absence of historical evidence.” (DeGraff, 2001:11) Tem-se tornado cada vez mais forte a convicção de que esta distinção na realidade não se faz com base em critérios científicos, mas antes com base em convenções, que, de uma forma ou outra, têm a ver com poder. Em The Ecology of Language Evolution (2001) Salikoko Mufwene defende, por isso, que “[...] creoles have been grouped together and distinguished from other languages more because of similarities in the sociohistorical conditions of their development than for any other convincing reason.” (Mufwene, 2001: XII) Portanto, se nós distinguimos entre uma língua crioula e não-crioula, baseamo-nos em primeiro lugar em condições sócio-históricas; os critérios linguísticos, por sua vez,só aparecem em segundo plano, devidamente adaptados à situação. Mufwene vai até mais longe ao afirmar que estas tais “condições sócio-históricas” são na prática nada mais nada menos que a etnicidade dos falantes: “The main implicit criterion [to identify some new colonial vernaculars as creoles] which is embarrassing for linguistics but has not been discussed, is the ethnicity of their speakers.” (Mufwene, 2001: XIII) Essas teorias pós-coloniais que põem em questão teorias que ainda há poucas décadas pareciam indiscutíveis, têm tido consequências fora da linguística. É interessante ver, por exemplo, como o antropólogo sueco Ulf Hannerz escreve que “there are a number of English-based creole languages in the world, yet hardly anybody would seriously argue that the English language is historically pure.” (Hannerz, 1996: 67) Vejamos também o escritor Édouard Glissant, oriundo da ilha de Martinique, que defende o seguinte: “Quand on étudie raisonnablement les origines de toutes langues données,y compris de la langue française, on s’aperçoit que toute langue à ses origines est une langue créole.” (Glissant, 1996: 21) Com esta sua tese, Glissant coloca uma bomba debaixo de toda a linguística tradicional. O que faz é defender que todas as línguas, sejam elas o português, o neerlandês, o papiamento ou o japonês, poderiam ser consideradas línguas crioulas, já que cada uma delas é, no fundo, o resultado de um processo secular de contacto e de mistura. É um facto que até há meio século atrás, os linguistas teimosamente ficavam presos ao mito da pureza das línguas e que por causa da obsessão com a pureza adâmica e com a estruturação e fixação geográfica e histórica das línguas4 não se queria aceitar que as mais variadas influências estrangeiras têm sido fundamentais para o desenvolvimento de qualquer língua. Uma cultura em que a alegada pureza da língua chegou a ter um estatuto quase mítico é a alemã. Nos seus famosos Discursos à Nação Alemã (1808), o pai do romantismo alemão, Gottlieb Johann Fichte, sublinhava a importância da pureza da língua alemã e o perigo que parte de qualquer tipo de influência estrangeira,já que esta levaria inevitavelmente a uma decadência.5 Erradamente, Fichte considerava o facto de a língua alemã não ser de origem latina como uma prova da sua pureza; por consequência, a presença de tropas napoleónicas em território germânico era muito mais que uma simples humilhação – era vista como um primeiro e irreversível passo em direcção à degeneração. A ilusão da alegada pureza alemã conseguiu manter-se durante vários séculos e culminou com a chegada da ditadura nazi, na qual se usava constantemente a língua para “provar” a pureza da cultura alemã e a impureza das outras. O linguista nazi Wilhelm Blaschke, por exemplo, argumentava que a ortografia inglesa reflectia o “escândalo racial” da língua e do espírito inglês.Quando então Mussolini decidiu tomar medidas para purificar o italiano, também na Alemanha se intensificaram os apelos para se avançar com uma purificação da língua. Em consequência,o ministério alemão da cultura ficou repleto de listinhas de palavras, enviadas por professores que pretendiam contribuir para a nobre causa da purificação da língua – aparentemente sem que ninguém se desse conta que nem a palavra “Ministerium”, nem “Kultur” são de origem germânica. A obsessão era tal que o ministro não teve alternativa senão proibir por lei a publicação de artigos críticos sobre a ortografia alemã e o ministro de propaganda, Joseph Goebbels, chegou mesmo a acusar os zelosos professores de germanomania. (cfr.Birken-Bertsch, 2000: 44) leia este interessante estudo em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4568.pdf ==================================================================== * A presente comunicação insere-se no projecto “literatura e identitades” do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I& D, financiada pela Fundação paraa Ciência e a Tecnologia no âmbito do Programa Operacional Ciência, Tecnologia e Inovação (POCTI) do Quadro Apoio III.