Para o debate sobre a língua
E se todas as línguas fossem consideradas crioulas?
Um olhar pós-colonial sobre a linguística*
Jeroen Dewulf
Faculdade de Letras da Universidade do Porto; jdewulf@letras.up.pt
1492 não é só um ano histórico por causa da descoberta da América, é também o ano em que aparece a primeira gramática da língua espanhola. Em resposta à pergunta da rainha Isabel, que queria saber para que podia servir uma tal gramática, o bispo de Ávila disse-lhe as palavras mágicas: “Serve para governar, Vossa Majestade”. Por mais distintos que estes dois acontecimentos possam parecer, na verdade têm muito a ver um com o outro. Com a descoberta da América, a Espanha passou a ser a primeira potência mundial, tornou-se num império orgulhoso, convicto da sua missão de espalhar pelo mundo todo os seus valores, a sua religião e...a sua língua. De facto, a história de uma língua é sempre o espelho da história política de uma região. Dito doutra forma, a história de uma língua tem tudo a ver com poder.Nada exemplifica melhor esta realidade do que a famosa expressão em Jiddisch, segunda a qual “uma língua não é mais do que
um dialecto com um exército”.
Na linguística contemporânea, o poder tem-se tornado numa questão fundamental.Isto enquanto durante várias décadas, a linguística tradicional tentava a todo o custo manter uma posição objectiva e apolítica.Para designar a razão desta viragem significativa na linguística,costuma-se recorrer à expressão inglesa:„The Others speakback“.
A expressão refere-se àquelas pessoas, que desde o início do colonialismo tinham sido condenadas à passividade, mas que recentemente têm tomado a palavra para questionar o que nunca dantes tinha sido questionado. A primeira ciência a sentir as consequências desta viragem pós-colonial nas ciências humanas foi a antropologia,a “criada do colonialismo” como Claude Lévi-Strauss alguma vez lhe chamou. Depois seguiram-se a história, a sociologia, os estudos literários e, recentemente, também a linguística.
De facto, o tempo em que a linguística era o monopólio de cientistas brancos, oriundos quase exclusivamente de países ocidentais, pertence definitivamente ao passado.
Sobretudo universidades norte-americanas têm, nos ultimos anos, seguido uma política no sentido de diversificar a origem étnica dos seus docentes e não é por acaso que as vozes mais críticas em relação à linguística tradicional, que tanto medo tinha em abordar questões ligadas ao poder, têm surgido fundamentalmente a partir dos Estados Unidos.
Ilustrativo neste contexto foi o que aconteceu no âmbito de uma conferência sobre crioulismo na Universidade de Chicago em Outubro de 1999. Numa discussão que se seguiu a uma das palestras ali apresentadas surgiu a questão se a diferença entre línguas consideradas crioulas e línguas “não-crioulas” não se baseava, afinal, num modelo ocidental, imperialista e racista.Estas dúvidas não são novas. Já há algum tempo, certos linguistas têm insistido no facto de que a linguística não oferece critérios objectivos que permitam distinguir entre línguas crioulas e não-crioulas. Assim, em Language Creation and Language Change (2001) Michel de Graff escreveu que “[...] any property found in creole languages is [...]
also found in some noncreole language. In Hall’s words, ‘There are no structural criteria which, in themselves, will identify a creole as such, in the absence of historical evidence.”
(DeGraff, 2001:11) Tem-se tornado cada vez mais forte a convicção de que esta distinção na realidade não se faz com base em critérios científicos, mas antes com base em convenções, que, de uma forma ou outra, têm a ver com poder. Em The Ecology of Language Evolution (2001) Salikoko Mufwene defende, por isso, que “[...] creoles have been grouped together and distinguished from other languages more because of similarities in the sociohistorical conditions of their development than for any other
convincing reason.” (Mufwene, 2001: XII)
Portanto, se nós distinguimos entre uma língua crioula e não-crioula, baseamo-nos em primeiro lugar em condições sócio-históricas; os critérios linguísticos, por sua vez,só aparecem em segundo plano, devidamente adaptados à situação. Mufwene vai até mais longe ao afirmar que estas tais “condições sócio-históricas” são na prática nada mais nada menos que a etnicidade dos falantes: “The main implicit criterion [to identify some new colonial vernaculars as creoles] which is embarrassing for linguistics but has not been discussed, is the ethnicity of their speakers.” (Mufwene, 2001: XIII)
Essas teorias pós-coloniais que põem em questão teorias que ainda há poucas décadas pareciam indiscutíveis, têm tido consequências fora da linguística. É interessante ver, por exemplo, como o antropólogo sueco Ulf Hannerz escreve que “there are a number of English-based creole languages in the world, yet hardly anybody would seriously argue that the English language is historically pure.” (Hannerz, 1996: 67) Vejamos também o escritor Édouard Glissant, oriundo da ilha de Martinique, que defende
o seguinte: “Quand on étudie raisonnablement les origines de toutes langues données,y compris de la langue française, on s’aperçoit que toute langue à ses origines est une langue créole.” (Glissant, 1996: 21)
Com esta sua tese, Glissant coloca uma bomba debaixo de toda a linguística tradicional.
O que faz é defender que todas as línguas, sejam elas o português, o neerlandês, o papiamento ou o japonês, poderiam ser consideradas línguas crioulas, já que cada uma delas é, no fundo, o resultado de um processo secular de contacto e de mistura.
É um facto que até há meio século atrás, os linguistas teimosamente ficavam presos ao mito da pureza das línguas e que por causa da obsessão com a pureza adâmica e com a estruturação e fixação geográfica e histórica das línguas4 não se queria aceitar que as mais variadas influências estrangeiras têm sido fundamentais para o desenvolvimento de qualquer língua. Uma cultura em que a alegada pureza da língua chegou a ter um estatuto quase mítico é a alemã. Nos seus famosos Discursos à Nação Alemã (1808), o pai do romantismo alemão, Gottlieb Johann Fichte, sublinhava a importância da pureza da língua alemã e o perigo que parte de qualquer tipo de influência estrangeira,já que esta levaria inevitavelmente a uma decadência.5 Erradamente, Fichte considerava o facto de a língua alemã não ser de origem latina como uma prova da sua pureza; por consequência, a presença de tropas napoleónicas em território germânico era muito
mais que uma simples humilhação – era vista como um primeiro e irreversível passo em direcção à degeneração. A ilusão da alegada pureza alemã conseguiu manter-se durante vários séculos e culminou com a chegada da ditadura nazi, na qual se usava constantemente a língua para “provar” a pureza da cultura alemã e a impureza das outras. O linguista nazi Wilhelm Blaschke, por exemplo, argumentava que a ortografia inglesa reflectia o “escândalo racial” da língua e do espírito inglês.Quando então Mussolini decidiu tomar medidas para purificar o italiano, também na Alemanha se intensificaram os apelos para se avançar com uma purificação da língua. Em consequência,o ministério alemão da cultura ficou repleto de listinhas de palavras, enviadas por professores que pretendiam contribuir para a nobre causa da purificação da língua – aparentemente sem que ninguém se desse conta que nem a palavra “Ministerium”, nem
“Kultur” são de origem germânica. A obsessão era tal que o ministro não teve alternativa senão proibir por lei a publicação de artigos críticos sobre a ortografia alemã e o ministro de propaganda, Joseph Goebbels, chegou mesmo a acusar os zelosos professores de germanomania. (cfr.Birken-Bertsch, 2000: 44)
leia este interessante estudo em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4568.pdf
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* A presente comunicação insere-se no projecto “literatura e identitades” do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I& D, financiada pela Fundação paraa Ciência e a Tecnologia no âmbito do Programa Operacional Ciência, Tecnologia e Inovação (POCTI) do Quadro Apoio III.
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