domingo, 15 de maio de 2011

lusofonia e sinologia

Macau – sinologia para a lusofonia

Por Luis Sá Cunha | 30 Set 2010 | Enviar por email Para Wu Zhiliang, é claro e indiscutível que “o maior valor da existência e sobrevivência da região é o factor cultural, o seu legado histórico e cultural”, que, assim, “tem a responsabilidade de promover o intercâmbio luso-chinês”.
A recorrente repetição do discurso é sempre sintoma da esterilização do verbo que, devendo enchê-lo, apenas o incha. Falam pouco as gerações ativas e realizadoras, falam muito, as estéreis. Como alguém disse, os portugueses ficaram desempregados depois de terem ido à Índia. Há séculos só falamos do passado, por isso Vasco Graça Moura nos dizia há anos que Portugal devia projetar-se ao futuro “sem utopias de retrovisor”.
Durante vinte e cinco anos nos enfastiámos com o saturado discurso do encontro de culturas em Macau, tema obrigatório dos milhentos discursos ouvidos na terra que foi, de facto nos seus começos e durante dois séculos, o centro de acolhimento e distribuição dos agentes culturais que protagonizaram o maior fenómeno de compenetração cultural alguma vez realizado na História, no juízo de Joseph Needham, o maior sinólogo do século XX.
E, no entanto, Macau sempre continuou ancorada à sua vocação e destino, no mesmo sítio, no encruzamento das mesmas inalteráveis coordenadas geográficas, animada das mesmas potencialidades. Na nossa vocação, caráter e destino como comunidades seremos sempre escravos da geopolítica. Sempre aguardaremos as “condições objetivas” favoráveis da passagem a ato das nossas potências, na linguagem aristotélica, como a nau envergada espera no porto a chegada dos ventos de favor. Cabe aos homens atualizar nos tempos transientes o que está em latência, renovar o mesmo de outras formas e modos. Eis que sopram já agora os ventos da renovação, Macau enfrentada ao seu destino intemporal.
UMA ESTRATÉGIA
Há anos aguardávamos com alguma frustração e impaciência que, depois de plataforma de trocas comerciais da RPC com os países lusófonos, Macau se transformasse, simultaneamente, num verdadeiro e ativo centro de intercâmbios culturais nos dois sentidos, em continuada e renovada concretização das suas potencialidades. A entrevista que o novo presidente da Fundação Macau deu à Lusa (e aqui publicada neste jornal) foi, em anos, a mais notável declaração pública de intenções e o mais claro e rasgado desígnio de estratégia cultural para Macau, na sua radiação para o exterior, a que pudemos assistir. Wu Zhiliang, historiador, com perfeito domínio do Português, profundo conhecedor de Macau, das suas constantes e vocações, acumulando larga experiência na vida institucional da terra, veio falar com clareza e rasgo: não só deixou o desenho das linhas teóricas como avançou logo com gestos e atos iniciadores da concretização dos projetos, com a convicção de quem sabe que está certo e em sintonia com as mais altas instâncias do poder.
Basta-nos para acreditar. Para ele é claro e indiscutível que “o maior valor da existência e sobrevivência da região é o fator cultural, o seu legado histórico e cultural”, que, assim, “tem a responsabilidade de promover o intercâmbio luso-chinês”. Para estimular colaborações, Wu Zhiliang falou na procura de parcerias para a realização de iniciativas culturais em vários domínios, enfatizando a necessidade de promover a tradução e a edição de obras em Português e Chinês.
Convém, e é a simples razão destas linhas, não deixar, porém, a concretização desejada à disparidade desorientada, convindo apontar igualmente alguns sinais à navegação, noutros termos, adiantar igualmente um esboço de estratégia para a acção, no respeito da espontaneidade das iniciativas concorrentes.
UM CENTRO DE SINOLOGIA
Falar em intercâmbio luso-chinês será falar, legitimamente e em primeiro lugar, na privilegiada relação entre a China e Portugal, forjada no longo convívio de séculos e ratificada nos tratados bilaterais. Mas hoje e cada vez mais, considerar a Língua é considerar o seu espaço, no caso o “ continente” da lusofonia. Força de razões históricas e afetivas, Macau tem uma específica motivação para o cultivo das relações com Portugal mas, como agente intermediário da RPC, o seu mapa de ação serão todas as geografias e comunidades onde as pessoas se conversem em Português.
A lusofonia é um dos quatro ou cinco espaços linguístico-culturais em expansão e ascensão no mundo (de parelhas com a projeção político-económica), a RPC tem uma parceria estratégica com Portugal e tem na geopolítica global uma relação de complementaridade estratégica com o Brasil. Aspirando a transformar-se na maior potência mundial, a China sabe que as relações internacionais de protagonismo têm que ir escorar-se na cultura, porque o comércio é uma guerra latente. A política é o universo dos acidentes, a cultura o universo das essências.
A China – a sua história e traves-mestras da sua cultura e civilização – é grandemente desconhecida no mundo e muito especificamente nos espaços de língua portuguesa e também espanhola, o que, entre outras desvantagens, conduz à incompreensão de muitas das linguagens e atitudes usadas pelos dirigentes da RPC, sobretudo em situações sensíveis, confrontadas com mundividências ocidentais. Não há, ainda hoje, à semelhança do que têm as línguas inglesa e francesa, uma sinologia de língua portuguesa. A Espanha despertou há quinze anos para esta lacuna, com o governo de Madrid a orçamentar verbas nunca vistas a duas universidades para o rápido desenvolvimento dos estudos sobre a China. Hoje assistimos à invasão crescente das universidades norte-americanas por jovens estudantes chineses, à queda das línguas europeias nos currículos em favor do mandarim.
Portugal teve a primeira sinologia do mundo, foi através de alguns portugueses que a Europa primeiro conheceu o grande e fascinante Império do Meio (Gaspar da Cruz, Frei José de Jesus Maria, Álvaro Semedo), Macau foi base importante e decisiva de toda o operação das trocas culturais Europa-China em Pequim. As emergências de testemunhos sinológicos em Português, ao longo dos séculos, por desgarradas e dispersivas, fruto de assomos individuais sem continuidade, não justificaram o poder falar-se de uma sinologia portuguesa, em contraste com outros povos europeus.Por intimação da grande história, os portugueses viajaram e experimentaram mais e escreveram menos, os outros viveram menos e escreveram mais.
Macau tem agora a oportunidade histórica de promover a recuperação do tempo perdido, porque reúne as condições históricas para se erigir como um centro de sinologia para a lusofonia. Um projecto destes teria aliás eficácia redobrada, com facilitada extensão para o universo da latinidade, dada a semelhança linguística e o aproveitamento dos trabalhos de base (estudos, interpretação, tradução, enquadramentos, etc.) e a realização de encontros e seminários de formação. Macau, de novo, reencontrar-se-ia com o seu destino de protagonista da globalização, reeditando em novos moldes o seu papel do Século XVI, quando também foi base das comunicações da China e do extremo oriente para a América do Sul.
O jogo será uma diferença mas nunca um fator de identidade. É um expediente. Mas a componente lusófona, assim considerada e fundamentada, será indiscutivelmente uma das faces da personalidade de Macau e da imagem que projetará para o mundo
CULTURA PARA A IDENTIDADE
Vimos, há anos, a tentativa de vulgarização da medicina tradicional chinesa pelo mundo. As coisas andaram, muito à cúria de iniciativas individuais, com muita superficialidade e demagogia, também, pelo meio. A China continua muito distante do mundo, o que permite os erros e equívocos e convida às adulterações. Assistimos recentemente, na imprensa mais divulgativa, à promoção do feng shui, sem cabal enquadramento explicativo das suas raízes e fundamentos, sem se alertar que é prática geomântica em abandono na China há muito (com rara excepção de Macau).
Mas a China forneceu ao Brasil um contributo cultural decisivo para forjar a sua identidade imediatamente a seguir à proclamação da sua independência, instilando-se na sociedade, hábitos e práticas culturais que deram à nova nação uma componente oriental. É enorme e surpreendente a lista daqueles contributos. Atendendo às fortes relações que a China vem tendo com jovens nações, sobretudo em África, também em génese histórica de própria identidade, algumas já com forte presença migratória, como é o caso de Angola, é pertinente considerar-se a bondade do que atrás dissemos sobre a oportunidade do desenvolvimento de uma sinologia de língua portuguesa.
Macau tem condições e potencialidades únicas para ser operadora de um grande movimento cultural com repercussões vastas no mundo, como centro de sinologia e de estudos sinológicos para o universo de língua portuguesa, instituindo aqui esses estudos sistematicamente, instituindo um curso superior de estudos lusófonos, apoiando projetos estratégicos editoriais orientados para aqueles objetivos, incentivando e apoiando outras associações da sociedade civil vocacionadas para a organização de serviços e iniciativas linguístico-culturais etc.. E Macau teria, com poucos custos, um gesto de grande magnetização do seu protagonismo neste campo, se centralizasse num só edifício na cidade vários serviços, instituições e representações vocacionados para a promoção dos intercâmbios com o universo lusófono, nos campos diplomático, comercial e cultural. Não há ainda em Macau representações consulares de todos os países lusófonos. Não temos dúvidas de que este gesto seria catalizador de novas participações e entusiasmos, definitiva achega para a transformação de Macau em centro eficaz de intercâmbios entre os mundos chinês e lusófono. O jogo será uma diferença mas nunca um factor de identidade. É um expediente. Mas a componente lusófona, assim considerada e fundamentada, será indiscutivelmente uma das faces da personalidade de Macau e da imagem que projetará para o mundo, tanto mais futura quanto radica na sua perene vocação.
[ilustração de Carlos Marreiros]
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Escrito por Luis Sá Cunha em 30 Set 2010. Arquivado sob Destaque, Opinião. Pode seguir todas as respostas sobre esta entrada através de RSS 2.0. Você pode deixar uma resposta, ou trackbacks a esta entrada

2 Comentários para “Macau – sinologia para a lusofonia”

  1. Zemanel
    Aqui o Nibor tem razão nalguns aspetos. A RAEM deve apostar em algo de mais concreto para os Países Lusófonos. Mas não se esqueça também que o Secretariado do Fórum em Macau foi criado para também dar de comer a muitos “vegetativos” que nada fazem e produzem mas que “mamam” umas dezenas de milhares de patacas por mês com direito a tudo (transporte, alojamento) e de quando em vez um passeio por aqui e acolá a expensas do nosso erário. Trabalho? Mo Ah! Sabia, por exemplo, que é considerado acerto de lotaria poder vir a trabalhar aí? Por isso Rita Santos MANDA e com peso, basta ver como o seu pessoal de apoio foi recrutado e quem foi recrutado em Macau para perceber melhor. Portanto não te irrites, Macau, como noutras paragens o compadrio vence!
  2. NIBOR
    Apenas discursos – se a Lusofonia é tão importante porquê que o Governo de Macau não prove isso, aproximando mais dos Países da Lusofonia ? Sendo a Lusofonia tão importante, o que fez o Governo de Macau durante uma década, tendo visitado toda a Ásia mas esquecido que a Lusofonia está espalhada por 5 continentes. Porque o Governo não revoluciona e põe alguém com visão no Fórum China/Lusofonia, a única unidade, concebida pela China na RAEM com vocação de fazer alguma coisa em prol das relações Macau/China/Lusofonia ? Sendo a Lusofonia tão importante porque temos cada vez mais menos estudantes lusófonos da RAEM e os que cá estão vivem na rua da amargura, na sua grande maioria sem bolsas ou com bolsas canceladas pela própria fundação Macau, porque vive mercê de caprichos e insiste que os alunos devem estudar apenas na Universidade de Macau, embora se sabe que esta não esta qualificada para receber gente que venha de um sistema de ensino de matriz lusófona? Enfim, discurso para boi dormir!!!!

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