sábado, 2 de março de 2013

papa interrompido


João Miguel Tavares: "Papa interrompido"



Texto de João Miguel Tavares no "Público" de 15 de fevereiro.


Precisamente uma semana antes de Bento XVI anunciar a sua resignação, estreou-se na televisão americana o novo documentário de Alex Gibney "Mea Maxima Culpa - Silence in the House of God". Gibney é um dos mais conceituados documentaristas da actualidade, vencedor de um Óscar em 2007 por Taxi to the Dark Side, e aplica aqui todo o seu talento a desvendar a longa e vergonhosamente impune história dos abusos do padre Lawrence Murphy durante os anos 60 e 70, quando violou mais de 200 crianças surdas numa escola católica do Milwaukee. Mea Maxima Culpa é um documentário chocante, revoltante e arrasador, que não deixa quaisquer dúvidas sobre as responsabilidades da hierarquia da Igreja Católica no encobrimento de milhares de casos de pedofilia em todo o mundo.

Gibney começa em Murphy e acaba em Ratzinger, e é a linha que leva de um a outro que é exibida com uma clareza inédita. Há mais excelentes documentários sobre este tema - como Livrai-nos do Mal, de Amy Berg -, mas nunca nenhum deles tinha chegado tão próximo, e de forma tão sustentada, das paredes do Vaticano. Bento XVI, justiça lhe seja feita, não fechou os olhos ao problema da pedofilia de forma tão escandalosa quanto João Paulo II (santo?, a sério?), mas também não foi capaz de pôr cobro ao maior dos pecados da Igreja Católica: colocar invariavelmente os interesses da estrutura à frente dos interesses dos mais desprotegidos, espezinhando o Evangelho que tem por missão proteger.

E tudo isto por uma única razão: manter a imagem de instituição exemplar. Impondo o interesse da Igreja como supremo bem, e não sendo ao mesmo tempo capaz de lidar com o escrutínio da modernidade, o Vaticano transferiu padres violadores de paróquias em paróquias, pagou dois mil milhões de dólares em indemnizações, tentou comprar silêncios, ameaçou com excomunhões, protegeu sacerdotes e bispos até ao fim. Há uma lógica fundamentalista que dá sentido a essa protecção. "Ninguém tem direito a receber o sacramento da Ordem", lê-se no catecismo. "É-se chamado a ele por Deus." E se é Deus quem chama, quem é o Homem para dizer que um pedófilo não pode ser padre? Eis a armadilha ontológica do sacerdócio católico: tanto se quer aproximar o padre da imagem de Cristo que a Igreja perde a capacidade para lidar com a sua mais trágica humanidade.

Joseph Ratzinger viveu uma vida preso nessa armadilha, mas é provável que ao chegar a papa tenha sentido que ela se fechava demasiado sobre si. Basta ler o livro de Gianluigi Nuzzi Sua Santidade, escrito a partir das cartas secretas conhecidas como "Vatileaks", para se perceber a dimensão homérica de intriga palaciana, e a incapacidade do Papa em lidar com ela. Ora, a sua renúncia é o mais radical gesto contra este estado de coisas. Ao abdicar, Ratzinger institui que o exame de consciência de um indivíduo, realizado perante Deus, se sobrepõe às tradições milenares da Santa Madre Igreja. É um gesto revolucionário, que dessacraliza o cargo que João Paulo II cultivou como se fosse a nova cruz. Esta resignação não faz de Bento XVI nem um herói, nem um santo. Mas faz dele um homem e pode obrigar o Vaticano a descer das nuvens onde tem escondido as maiores barbaridades em nome de uma pureza falsa como Judas.

http://tribodejacob.blogspot.pt/2013/02/joao-miguel-tavares-papa-interrompido.html

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