João Miguel Tavares: "Papa interrompido"
Texto de João Miguel Tavares no "Público" de 15 de fevereiro.
Precisamente
uma semana antes de Bento XVI anunciar a sua resignação, estreou-se na
televisão americana o novo documentário de Alex Gibney "Mea Maxima Culpa
- Silence in the House of God". Gibney é um dos mais conceituados
documentaristas da actualidade, vencedor de um Óscar em 2007 por Taxi to
the Dark Side, e aplica aqui todo o seu talento a desvendar a longa e
vergonhosamente impune história dos abusos do padre Lawrence Murphy
durante os anos 60 e 70, quando violou mais de 200 crianças surdas numa
escola católica do Milwaukee. Mea Maxima Culpa é um documentário
chocante, revoltante e arrasador, que não deixa quaisquer dúvidas sobre
as responsabilidades da hierarquia da Igreja Católica no encobrimento de
milhares de casos de pedofilia em todo o mundo.
Gibney
começa em Murphy e acaba em Ratzinger, e é a linha que leva de um a
outro que é exibida com uma clareza inédita. Há mais excelentes
documentários sobre este tema - como Livrai-nos do Mal, de Amy Berg -,
mas nunca nenhum deles tinha chegado tão próximo, e de forma tão
sustentada, das paredes do Vaticano. Bento XVI, justiça lhe seja feita,
não fechou os olhos ao problema da pedofilia de forma tão escandalosa
quanto João Paulo II (santo?, a sério?), mas também não foi capaz de pôr
cobro ao maior dos pecados da Igreja Católica: colocar invariavelmente
os interesses da estrutura à frente dos interesses dos mais
desprotegidos, espezinhando o Evangelho que tem por missão proteger.
E
tudo isto por uma única razão: manter a imagem de instituição exemplar.
Impondo o interesse da Igreja como supremo bem, e não sendo ao mesmo
tempo capaz de lidar com o escrutínio da modernidade, o Vaticano
transferiu padres violadores de paróquias em paróquias, pagou dois mil
milhões de dólares em indemnizações, tentou comprar silêncios, ameaçou
com excomunhões, protegeu sacerdotes e bispos até ao fim. Há uma lógica
fundamentalista que dá sentido a essa protecção. "Ninguém tem direito a
receber o sacramento da Ordem",
lê-se no catecismo. "É-se chamado a ele por Deus." E se é Deus quem
chama, quem é o Homem para dizer que um pedófilo não pode ser padre? Eis
a armadilha ontológica do sacerdócio católico: tanto se quer aproximar o
padre da imagem de Cristo que a Igreja perde a capacidade para lidar
com a sua mais trágica humanidade.
Joseph
Ratzinger viveu uma vida preso nessa armadilha, mas é provável que ao
chegar a papa tenha sentido que ela
se fechava demasiado sobre si. Basta ler o livro de Gianluigi Nuzzi Sua
Santidade, escrito a partir das cartas secretas conhecidas como
"Vatileaks", para se perceber a dimensão homérica de intriga palaciana, e
a incapacidade do Papa em lidar com ela. Ora, a sua renúncia é o mais
radical gesto contra este estado de coisas. Ao abdicar, Ratzinger
institui que o exame de consciência de um indivíduo, realizado perante
Deus, se sobrepõe às tradições milenares da Santa Madre Igreja. É um
gesto revolucionário, que dessacraliza o cargo que João Paulo II
cultivou como se fosse a nova cruz. Esta resignação não faz de Bento XVI
nem um herói, nem um santo. Mas faz dele um homem e pode obrigar o
Vaticano a descer das nuvens onde tem escondido as maiores barbaridades
em nome de uma pureza falsa como Judas.
http://tribodejacob.blogspot.pt/2013/02/joao-miguel-tavares-papa-interrompido.html
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