segunda-feira, 24 de outubro de 2011

a palavra e os guarani


Palavra indígena
A história da tribo Sapucaí, que traduziu para o idioma guarani os artefatos da era da computação que ganharam importância em sua vida, como mouse (que eles chamam de angojhá) e windows (oventã)

Terciane Alves

Crianças da aldeia sapucaí, em Angra dos Reis (RJ), em contato com o mundo da informática: incorporação vocabular

O índio Algemiro Potty ("flor", em guarani) vive em uma casinha de pau-a-pique coberta de palha, na tribo sapucaí, em Angra dos Reis (RJ). Filho do cacique Verá Mirim (João da Silva), cozinha em fogão a lenha e prefere assar o peixe na folha de bananeira. Como muitos integrantes da sua tribo, Potty tenta resistir aos sedutores confortos da vida contemporânea, signos de uma aculturação que preferem evitar o quanto podem. A casa, sem divisórias de cômodos, tem como piso o chão de terra batida, e Potty não usa fogão a gás, geladeira ou outro aparelho doméstico. Mas com o computador, a conversa é diferente.
Quando a internet chegou àquela comunidade, que abriga em torno de 400 guaranis, há quatro anos, por meio de um projeto do Comitê para Democratização da Informática (CDI), em parceria com a ONG Rede Povos da Floresta e com antena cedida pela Star One (da Embratel), Potty e sua aldeia logo vislumbraram as possibilidades de comunicação que a web traz.
Ele conta que usam a rede, por enquanto, somente para preparação e envio de documentos, mas perceberam que ela pode ajudar na preservação da cultura indígena.
A apropriação da rede se deu de forma gradual, mas os guaranis já incorporaram a novidade tecnológica ao seu estilo de vida. A importância da internet e da computação para eles está expressa num caso de rara incorporação: a do vocabulário.
- Um dia, o cacique da aldeia sapucaí me ligou. "A gente não está querendo chamar computador de 'computador'". Sugeri a eles que criassem uma palavra em guarani. E criaram aiú irú rive, "caixa pra acumular a língua". Nós, brancos, usamos mouse, windows e outros termos, que eles começaram a adaptar para o idioma deles, como angojhá (rato),  oventã (janela) - conta Rodrigo Baggio, diretor do CDI.
Conversão natural
Potty diz que o vocabulário guarani para os componentes do mundo virtual não é amplo, mas espera que o número de vocábulos cresça à medida que o uso da internet avance e haja mais instrutores para formar educadores por lá. É também o anseio da missionária de Jesus Crucificado Eunice Pereira, freira que participou da capacitação para ajudar os guaranis no uso da internet.
- A gente enfrenta dificuldade, não consegue professores voluntários, aguarda mais instrutores para acompanhar o programa, que fica muitas vezes parado.
Para o filho do cacique, a conversão dos nomes se deu de forma natural. Para assegurar os costumes e tradições guaranis, Potty escolheu duas vertentes de trabalho: preservar a língua e a comida. A primeira, baseada na importância que o idioma tem para novas gerações, e a segunda, numa alimentação de subsistência, não predatória.
- Há trabalho de conscientização para preservar o tipo de alimentação e a língua. As lendas ajudam a manter a cultura.
Ele defende que as lendas não podem ser contadas em português.
- Ninguém fala português na aldeia, a não ser quando o homem branco chega.
Seja entre os acadêmicos ou missionários, ou lideranças indígenas, os guaranis que migraram para o litoral do país, indo para São Paulo e Rio de Janeiro, são considerados com espanto por conseguirem manter-se nos dias atuais ainda mais apegados aos seus costumes do que outras comunidades indígenas do país. É o caso do subgrupo que se instalou em Angra dos Reis, a 20 quilômetros da cidade.
- Ainda assim, é uma comunidade que sofreu muito, assim como a maioria das tribos que estão no nordeste do país, mas conseguiu resistir - conta Virgínia Pontes, antropóloga e uma das coordenadoras do núcleo do programa.
Virgínia ressalta que lá existe uma mobilização para a sobrevivência do grupo. As crianças da aldeia têm alfabetização bilíngüe; aprendem guarani e português.
- Estão agora fazendo a revitalização da língua dentro da escola.
Sensibilidade do idioma
O povo guarani tem uma cultura muito sensível, define Ailton Krenac, líder indígena que militou na criação da ONG Povos da Floresta. Ele relembra o fato com admiração. Esse povo costuma dizer que o mundo dos juruás (brancos) é "carregado de sentido". Por isso, diz Krenac, o contato com a internet tem sido feito com cuidado.
Explica que o computador fica numa sala de aula e as crianças são monitoradas, não por economia, afinal a comunicação é por satélite, mas por controle social, para evitar acesso à pornografia.
A adaptação da linguagem da computação para o idioma indígena retrata a importância que a ferramenta assumiu na vida da tribo.
Ele diz que foi uma experiência muito importante, porque mostra que, se uma ferramenta como a internet chega às mãos de um povo que está num processo de autonomia e de organização, ela é apropriada. Se chega a um povo que está com os seus caminhos ainda cercados, precisa ser decifrada, adaptada e transformada num item aplicável.
Sustentabilidade
Os mentores da Rede Povos da Floresta, criada há quatro anos, explicam que o projeto nasceu com a proposta de envolver comunidades tradicionais da floresta (quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e indígenas, mesmo de aldeias isoladas) e grupos de apoio a essas culturas. A tecnologia da informação, com acesso à internet, é considerada um mecanismo de sustentabilidade desses povos.
O índio Algemiro Potty ao lado de João Fortes, coordenador institucional da Rede Povos da Floresta: críticas à inclusão do computador ao cotidiano lexical guarani

Ao mesmo tempo que quilombolas e caiçaras são valorizados por sua contribuição à preservação ambiental, estão impedidos de realizar atividades tradicionais, como a roça de coivara e o extrativismo do palmito. Os indígenas sofrem com o problema da extinção. Segundo a OMS, a expectativa de vida deles é de 42,5 anos, enquanto a de um brasileiro médio é de 67 anos.
Krenac diz que a tecnologia é uma ferramenta fundamental, hoje, para as populações indígenas defenderem sua cultura e se preservarem contra agressões internas e externas. 
Aprendendo a usar
A proposta inicial do projeto era interligar as aldeias indígenas e conectá-las à internet, como forma de defender e preservar a cultura dessas comunidades, estimulando ações comunitárias de vigilância de áreas protegidas. Começaram o projeto populações como as dos axamincas e iauanauás (no Acre); guarani (RJ) e xacriabás (MG).
- Hoje são 186 pontos listados para ser conectados - diz Virgínia Pontes.
O projeto explora uma das possibilidades de uso da tecnologia informática na preservação cultural e econômica dos índios.

Krenac explica que essas comunidades são ameaçadas, sobretudo por invasores de países fronteiriços, como madeireiros da Bolívia, e nesses casos a tecnologia os ajuda a denunciar os abusos e a buscar o apoio de autoridades. Isso já aconteceu diversas vezes, o que reforça quanto o uso da tecnologia pode favorecer as populações que vivem em áreas isoladas.
No entanto, diz ele, com públicos especiais, tem-se de pensar em algo além de uma capacitação em informática. Por isso, o CDI adota uma metodologia (com base em Paulo Freire) que investe na apropriação da tecnologia por parte dos educandos de suas Escolas de Informática e Cidadania. Instaladas em cidades, em áreas rurais, em presídios ou em comunidades indígenas, as EICs apresentam a informática a usuários em situações de risco social para que conheçam melhor o mundo em que vivem, se aproximem de outras realidades, troquem informações e busquem desenvolvimento e autonomia. Se isso é feito, de fato, há de se verificar, mas a versão guarani da linguagem do computador é indício do potencial apelo de iniciativas do gênero.
Religião e palavra
Os guaranis da costa do Brasil são oriundos de vários estados e até de outros países. Começaram a se distribuir pelo litoral na década de 1940, por motivação religiosa.
- Eles acreditam em uma terra sem mal, em um paraíso geográfico - explica Eduardo Almeida Navarro, livre-docente da área de línguas indígenas da USP.
Navarro finaliza o seu Dicionário de Tupi Antigo, a ser lançado no início de 2008. Segundo ele, os guaranis estão mais presentes em Peruíbe, Mongaguá, Parelheiros (em São Paulo) e Angra dos Reis, num movimento que Navarro chama de expansão.
- Eles são surpreendentes. Estão em contato há décadas com a sociedade, mas ainda preservam costumes antigos. Esse contato com a vida urbana sempre se mostrou negativo para as comunidades indígenas, mas os guaranis são uma exceção.
Para Navarro, uma das causas de conservação da língua pode ser a adesão de princípios religiosos que os mantêm firmes à sua cultura.
- Mas eles já sofrem a influência da TV, vemos crianças vendo Batman e ao mesmo tempo cantando canções em guarani e contando lendas.
Mesmo sem escapar de influências como essas, a fidelidade lingüística da aldeia sapucaí ao guarani pode representar um sinal de uma rara vitalidade cultural. A de quem assimila o que lhe é estranho sem necessariamente perder a identidade.

Alguns termos da era da informática traduzidos pelos guaranis
Versão brasileira
Computador
Mouse
Windows
Versão guarani
Aiú irú rive
Angojhá
Oventã
Sentido original
Caixa pra acumular a língua
Rato
Janela


Um idioma andante
Conservadorismo e impulso migratório caracterizam língua guarani no Brasil
Por Aryon Dall'Igna Rodrigues
Toda língua é de importância fundamental para seu respectivo povo. Isso, que vale para qualquer povo no mundo, vale naturalmente para os guaranis. É no processo de aprender e usar a língua materna que as pessoas se humanizam, aprendem sua cultura e se identificam como seres humanos. Essa identificação se dá não só com respeito aos usos e costumes sociais, mas também às crenças espirituais, estas naturalmente com conceitos próprios menos traduzíveis em outras línguas.
Os guaranis que estão em Angra dos Reis são falantes do dialeto que tem sido chamado de mbyá, diferente do dos kaiwá de Dourados (MS) e do dos nhandéva de Araribá, (SP) e Laranjinha ( PR), mas idêntico ao dos demais mbyá: guaranis do Espírito Santo, de São Paulo (litoral e Pico do Jaraguá), do Paraná (litoral e Laranjeiras do Sul), de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, assim como do sudeste do Paraguai e nordeste da Argentina.
Dos três grupos de guaranis que falam esses dialetos, os mbyá são os mais conservadores lingüística e culturalmente, e isso é que talvez explique o constante impulso migratório que os tem levado a deslocar-se tanto no século 20, já que todas as suas comunidades têm sua origem na fronteira do Paraguai com o Brasil e a constante migração que os trouxe para a costa brasileira, e nesta os tem levado sempre mais para o norte, parece denunciar seu apego a crenças tradicionais e o desapego à fixação em determinado lugar.
Todo povo é apegado ao conhecimento herdado de seus antepassados. Não se pode contrastar os guaranis com os demais povos indígenas do Brasil, que são um pouco mais de 200 (uma lista e a informação sobre esses povos pode ser vista no site do Instituto Socioambiental, www.isa.org.br), todos procurando sobreviver com seus conhecimentos e suas crenças sob a violenta pressão contínua da sociedade majoritária. Esta os oprime de múltiplas maneiras: tomando suas terras, invadindo suas aldeias, introduzindo nelas missionários de outras religiões, que não hesitam em criticar e condenar suas crenças mais sagradas. Aliás, qual o brasileiro comum (não índio) que concebe poder ser brasileiro senão falando português?
Aryon Dall'Igna Rodrigues pesquisa línguas indígenas desde 1940, criou e dirige o Laboratório de Línguas Indígenas na Universidade de Brasília.
Marcas de identidade
As principais diferenças do guarani em relação ao português
O guarani ("guerreiro") é a língua indígena mais falada do país, com 30 mil falantes (comunidades nhandéva, caiuá, mbiá). Está no Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Só oito outras línguas indígenas têm mais de 5 mil falantes: guajajara, sateré-maué, xavante, ianomami, terena, macuxí, caingangue e ticuna. A flexão anteposta (o plural no início da palavra) é uma diferença do guarani em relação ao português. Exemplo do professor Waldemar Ferreira Netto, da USP:

- Aguata - ando.
- Reguata - andas.

Enquanto no português a flexão de "andar" ocorre no fim do verbo, com a letra o em primeira pessoa e s, na segunda do plural, no guarani ela vem no início, com a e r.  O idioma indígena tem dois pronomes para a primeira pessoa do plural: 

- Jaguatá - nós andamos.
- Roguata - quando eu e você andamos, mas em separado.
Almeida Navarro, livre-docente na USP, prepara um dicionário de tupi antigo, o que exige conhecimentos do guarani, línguas tão próximas. Lembra que, no português, temos preposições, mas no guarani há proposições.

- São Paulo-gui - leia-se de São Paulo.
- Curitiba-gui - leia-se de Curitiba.

E há fonemas específicos que não existem em português. Em guarani há o y  = ã (pronuncia-se com boca de i e fala u), de ka'a (mata).

Waldemar Netto pesquisou em campo a relação dos guaranis com seu modo de falar. E percebeu uma motivação mística para a língua remanescente do descobrimento.

- Eles acreditam que têm duas almas. Uma é a linguagem, que podemos entender como uma capacidade cognitiva. E a outra a força para se relacionar com o mundo animal, o instinto de sobrevivência. (T.A.)

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