LEMBRANDO SEBASTIÃO COELHO
PEIXE DO CAPIM Sebastião Coelho
Os preconceitos alimentares de quem vive no mato longe dos grandes rios ou lagos, marcam a diferença em relação à atitude das populações ribeirinhas que pescam e comem peixe. A pesca em Angola, tal como hoje se pratica, regista muita influencia dos métodos introduzidos pelos portugueses, mas nem sempre foi assim. De qualquer modo, não é da moderna pesca artesanal nem da indústria da pesca que vou ocupar-me, porque a minha idéia é recordar aos mais jovens, antigos métodos da pesca tradicional e velhas estórias de pescarias em épocas passadas.
O litoral, a Sul, era quase desabitado e a pesca no mar fazia-se especialmente no norte do país, onde os habitantes construiam paliçadas nas encostas da praia, utilizando paus de bordão e folhas de palmeira, para beneficiarem do movimento de vai-vem das marés. Na maré vazante, os peixes que penetram no cerco, devido à subida das águas, não podem escapar-se, retidos na precária rede e podem ser agarrados à mão.
Sistema similar ainda se utiliza hoje nos grandes rios do país, especialmente no Cuanza, Cuango, Cubango, Cassai, etc. Este tipo de actividade pesqueira é praticada normalmente pelos homens. São eles que constroem as represas com paus espetados no leito do rio e contra os quais colocam as armadilhas, cestas cónicas de vime, que aprisionam os peixes que circulam ao sabor da corrente. Diferente é a pesca lacustre, estacional e praticada essencialmente por mulheres, que fazem da pesca da «tukeya» uma festa. A «tukeya» é um peixe minúsculo, peixe de chana mais pequeno do que os chamados «jaquinzinhos» e que se encontra na região da Cameia, no leste do país, onde, com as chuvas, se formam grandes lagos temporários e de pouca profundidade.
As mulheres juntam-se em ranchos e metem-se nas águas das lagoas, praticando grandes pescarias colectivas, enquanto cantam e dançam. Trata-se de uma actividade secular, embora as referências escritas sobre esta prática tradicional datem apenas da primeira metade do século XX. As primeiras anotações escritas sobre a «tukeia» pertencem a Don António d’Almeida, com apóstrofe, homem de letras e linhagem, que foi governador do Bié e Luchazes, vasto território que abrangia as superfícies das actuais províncias do Bié, Moxico e Cuando-Cubango.
Amo e senhor desse domínio imenso e ignoto, D. António quiz conhecê-lo palmo a palmo. Investigador, meteu-se pelo mato e pelas anharas que calcurreou. A pé, em tipoia, a boi cavalo, em carro boer, automóvel ou combóio, que já avançava pelas chanas do leste, Don António viajou muito e conheceu bem a região que devia administrar mas não administrou. Quando somou suficiente conhecimento sobre o território que ia governar, já se tinha esgotado o tempo da sua comissão como governador. Desse tempo e dessas viagens ficaram os seus escritos e entre eles anotações da sua passagem pelas chanas da Cameia, lugar de areais e vegetação de meia altura. Nesses relatos refere-se, reticente, ao tema fascinante da «tukeya». Don António escrevia com deleite e era minucioso na descripção de tudo o que observava, mas nem sempre investigava a fundo.
Seria meia manhã quando notou, ao longe, quase sobre a linha do horizonte, a existência de um estranho manto de prata que reflectia a luz do Sol. Era um manto que cobria as bissapas e o capim, numa vasta área. Intrigado com o fenómeno, foi perguntando aos sipaios e logo aos pisteiros, o que era aquilo, luminoso, lá ao longe. Foi aí que o governador ouviu falar pela primeira vez da «tukeya», o peixe da anhara. À medida que a caravana avançava, o manto branco desdobrava-se mais nitidamente no que pareciam peixinhos prateados, incrivelmente empoleirados nas bissapas e no capim.
O cheiro que exalavam era nauseabundo e o assombro de Don António, indescriptivel. Até onde a vista alcançava não existia rasto de água, todo o chão era de areia ou lama seca e gretada, aqui e ali plantado de arbustos entremeados no capim com mais de um metro de altura. O insólito desta paisagem é que os peixes eram peixes de verdade e estavam empoleirados na vegetação. De entre os acompanhantes, os poucos que conheciam ou eram da região, não compreendiam o assombro dos demais e com naturalidade, respondiam, simplesmente, que os peixinhos eram «tukeia». Havia os que permaneciam em silêncio ou conversavam entre si, mas a maioria, sobretudo os carregadores, que chegavam ao lugar pela primeira vez, manifestavam-se curiosos, também, perante a novidade.
Não havendo explicação lógica e à falta de outros elementos, deduziu D. António que estava perante uma espécie desconhecida de peixes voadores, que se haviam reunido, inexplicavelmente, em tão estranho lugar. E assim nasceu a lenda dos peixes voadores das anharas ou dos peixes do capim.
PEIXE DO CAPIM Sebastião Coelho
Os preconceitos alimentares de quem vive no mato longe dos grandes rios ou lagos, marcam a diferença em relação à atitude das populações ribeirinhas que pescam e comem peixe. A pesca em Angola, tal como hoje se pratica, regista muita influencia dos métodos introduzidos pelos portugueses, mas nem sempre foi assim. De qualquer modo, não é da moderna pesca artesanal nem da indústria da pesca que vou ocupar-me, porque a minha idéia é recordar aos mais jovens, antigos métodos da pesca tradicional e velhas estórias de pescarias em épocas passadas.
O litoral, a Sul, era quase desabitado e a pesca no mar fazia-se especialmente no norte do país, onde os habitantes construiam paliçadas nas encostas da praia, utilizando paus de bordão e folhas de palmeira, para beneficiarem do movimento de vai-vem das marés. Na maré vazante, os peixes que penetram no cerco, devido à subida das águas, não podem escapar-se, retidos na precária rede e podem ser agarrados à mão.
Sistema similar ainda se utiliza hoje nos grandes rios do país, especialmente no Cuanza, Cuango, Cubango, Cassai, etc. Este tipo de actividade pesqueira é praticada normalmente pelos homens. São eles que constroem as represas com paus espetados no leito do rio e contra os quais colocam as armadilhas, cestas cónicas de vime, que aprisionam os peixes que circulam ao sabor da corrente. Diferente é a pesca lacustre, estacional e praticada essencialmente por mulheres, que fazem da pesca da «tukeya» uma festa. A «tukeya» é um peixe minúsculo, peixe de chana mais pequeno do que os chamados «jaquinzinhos» e que se encontra na região da Cameia, no leste do país, onde, com as chuvas, se formam grandes lagos temporários e de pouca profundidade.
As mulheres juntam-se em ranchos e metem-se nas águas das lagoas, praticando grandes pescarias colectivas, enquanto cantam e dançam. Trata-se de uma actividade secular, embora as referências escritas sobre esta prática tradicional datem apenas da primeira metade do século XX. As primeiras anotações escritas sobre a «tukeia» pertencem a Don António d’Almeida, com apóstrofe, homem de letras e linhagem, que foi governador do Bié e Luchazes, vasto território que abrangia as superfícies das actuais províncias do Bié, Moxico e Cuando-Cubango.
Amo e senhor desse domínio imenso e ignoto, D. António quiz conhecê-lo palmo a palmo. Investigador, meteu-se pelo mato e pelas anharas que calcurreou. A pé, em tipoia, a boi cavalo, em carro boer, automóvel ou combóio, que já avançava pelas chanas do leste, Don António viajou muito e conheceu bem a região que devia administrar mas não administrou. Quando somou suficiente conhecimento sobre o território que ia governar, já se tinha esgotado o tempo da sua comissão como governador. Desse tempo e dessas viagens ficaram os seus escritos e entre eles anotações da sua passagem pelas chanas da Cameia, lugar de areais e vegetação de meia altura. Nesses relatos refere-se, reticente, ao tema fascinante da «tukeya». Don António escrevia com deleite e era minucioso na descripção de tudo o que observava, mas nem sempre investigava a fundo.
Seria meia manhã quando notou, ao longe, quase sobre a linha do horizonte, a existência de um estranho manto de prata que reflectia a luz do Sol. Era um manto que cobria as bissapas e o capim, numa vasta área. Intrigado com o fenómeno, foi perguntando aos sipaios e logo aos pisteiros, o que era aquilo, luminoso, lá ao longe. Foi aí que o governador ouviu falar pela primeira vez da «tukeya», o peixe da anhara. À medida que a caravana avançava, o manto branco desdobrava-se mais nitidamente no que pareciam peixinhos prateados, incrivelmente empoleirados nas bissapas e no capim.
O cheiro que exalavam era nauseabundo e o assombro de Don António, indescriptivel. Até onde a vista alcançava não existia rasto de água, todo o chão era de areia ou lama seca e gretada, aqui e ali plantado de arbustos entremeados no capim com mais de um metro de altura. O insólito desta paisagem é que os peixes eram peixes de verdade e estavam empoleirados na vegetação. De entre os acompanhantes, os poucos que conheciam ou eram da região, não compreendiam o assombro dos demais e com naturalidade, respondiam, simplesmente, que os peixinhos eram «tukeia». Havia os que permaneciam em silêncio ou conversavam entre si, mas a maioria, sobretudo os carregadores, que chegavam ao lugar pela primeira vez, manifestavam-se curiosos, também, perante a novidade.
Não havendo explicação lógica e à falta de outros elementos, deduziu D. António que estava perante uma espécie desconhecida de peixes voadores, que se haviam reunido, inexplicavelmente, em tão estranho lugar. E assim nasceu a lenda dos peixes voadores das anharas ou dos peixes do capim.
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