Variação linguística nos livros didáticos
As crenças de que existe uma forma “correta” de falar e que o português é uma língua difícil contribuem para o círculo vicioso do preconceito
Elisa Ávila / Brasil 247
A discussão em torno do livro didático "Por uma vida melhor", distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação (MEC), para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) não é nova, mas pode ter “vindo a furo” com maior atenção da sociedade, diante de tanto sensacionalismo e ignorância.
Os estudos linguísticos nos permitem perceber que a língua não é estanque nem homogênea, pois ela varia. A concepção de língua isolada e desvinculada do seu contexto, presente nas gramáticas tradicionais, não pode ser sustentada. Temos de conceber a língua como uma realidade heterogênea, variável e social.
Quando o assunto é variação linguística, o tratamento oferecido pela maioria dos livros didáticos ainda não atingiu o ideal sociolinguístico. Esse fato deve-se, principalmente, à falta de boas obras de divulgação dos conceitos básicos da sociolinguística e à falta de formação adequada dos docentes. O resultado é que a variação linguística, de modo geral, é abordada de forma superficial, insuficiente ou distorcida. Não é o caso, porém, do livro em questão que apresenta as variedades da língua portuguesa em situações contextualizadas.
Nenhuma variedade se sobrepõe a outra, elas são apenas empregadas em situações distintas. Negar essa diversidade é ignorar a riqueza de uma língua, além de contribuir para o crescimento das desigualdades sociais, visto que, ao discriminar uma variedade, se discrimina seu falante. Portanto, o reconhecimento das variedades linguísticas é fundamental para que as escolas desempenhem seu papel principal de levar as pessoas a conhecerem “coisas” que não conheciam. No caso do ensino da língua, conhecer outras formas de falar e de escrever.
E contrariando os ignorantes, desinformados e os gramáticos tradicionalistas, considero muito importante que essas diferentes formas de falar e escrever sejam apresentadas na escola. O problema está em como serão apresentadas.
Embora a formação dos professores venha sendo modificada, uma vez que as instituições de educação superior passaram a considerar em seu currículo um ensino que privilegia os aspectos linguísticos e não somente os gramaticais, a tradição pedagógica, ainda, exclui manifestações que não representam a escrita da “elite” linguística, ou seja, despreza a norma considerada não-padrão. Faz-se necessária, então, uma nova abordagem no ensino da língua. Essa mudança de abordagem, porém, não significa desconsiderar o ensino da norma-padrão. Pelo contrário, é papel da escola transmitir esse conhecimento ao aluno, porém não apenas esse. Queremos que os alunos evoluam linguisticamente e ampliem sua competência comunicativa.
É necessário não apenas refletir sobre a variação linguística, mas também que haja mudança na prática escolar. A escola deve ser capaz de mudar seu trabalho pedagógico para não incorrer no erro de acreditar que, para o aluno ter acesso à escrita no nível culto da língua, o mais produtivo é priorizar o estudo da gramática normativa (prescritiva), cujo exercício contínuo seria a única forma de desenvolver as capacidades intelectuais dos alunos. Se o objetivo é fazer com que os alunos reflitam sobre a língua, utilizando os conhecimentos adquiridos para melhorar a capacidade de compreensão e expressão, tanto na escrita quanto na fala, é preciso que a prática contemple esses aspectos. Sendo assim, os conteúdos devem remeter-se diretamente às atividades de uso da linguagem. E, mais do que isso, devem estar a seu serviço.
O ensino da língua deve primar pela apresentação e descrição das variantes que podem ocorrer em uma comunidade linguística, sem que essas variantes sejam rotuladas como melhores ou piores
Os alunos precisam saber que existem diferentes formas de usar a língua oral e escrita e que deverão adequá-las dependendo das circunstâncias em que ocorrerem. E o professor precisa comprometer-se com uma pedagogia não-excludente no processo de ensino e aprendizagem e que também não venha a causar discriminação ou preconceito. O tratamento inadequado ou até mesmo estigmatizante dessa questão linguística pode comprometer todo processo de aprendizagem, dificultando a integração do aluno na cultura escolar. O problema é que os professores não sabem como agir diante das diferenças entre variedades da língua e acabam considerando-as “erros de português”.
As crenças de que existe uma forma “correta” de falar e que o português é uma língua difícil contribuem para o círculo vicioso do preconceito linguístico. Por isso, o estudo da variação nos livros didáticos cumpre um papel fundamental na formação da consciência linguística e no desenvolvimento da criticidade e da competência discursiva dos alunos.
Ponto para a professora Heloísa Ramos, autora do livro didático “Por uma vida melhor”!
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