Vozes no céu de Dublin
Para Adelaide e Vamberto Freitas
Havia uma mulher sentada junto ao murete de pedra, nessa meia tarde de um Outono precoce em que visitámos as ruínas da Abadia de Howth.
O guia turístico adquirido na recepção do hotel informava que Howth “has long been a favoured dwelling place for writers”, mas, referida a Dublin, qualquer indicação sobre a presença literária na cidade será sempre redundante. Assim, a manhã esgotara-se entre a visita ao Dublin Writers’ Museum e a demorada passagem pela Martello Tower, aliás, James Joyce Tower, cujos recantos e escadarias pareciam ressumar ainda a inquietação difusa perante a ameaça de uma eventual invasão napoleónica .
A voz de Buck Mulligan, que nos havia transportado até aos alvores do século XIX num andamento pausado e a rondar a monotonia, adquiriu uma súbita vivacidade ao descrever o memorial joyceano. E ganhou uma inesperada gama de modulações e registos quando se pôs a evocar os acontecimentos dessa luminosa manhã de Junho de mil novecentos e quatro em que Leopold Bloom saiu de casa para comprar rins de carneiro e, ao entrar no talho, pediu tomates, num particular momento de perturbação espacial e linguística cujo eco o escritor Arménio Vieira faria chegar às ilhas de Cabo Verde.
Em Howth não houve qualquer Buck Mulligan a falar-nos do remoto prestígio da Abadia e do fascínio que exerceu sobre os intelectuais da Europa medieval. Vagueámos pelo seu interior, tentando apenas surpreender ainda um possível rumor de passos e as vozes dos homens que ali, um dia, construíram o seu mundo por entre o recolhimento e a contemplação da Ireland’s Eye, separada de terra por um curto braço de mar e, mesmo assim, ilha longínqua, entregue ao seu destino de solidão e abandono. E tudo isso se harmonizava, enfim, com a melodia que a mulher sentada junto ao murete se pusera, entretanto, a entoar.
Nessa noite, Briege Murphy cantava no Howth’s Abbey Center. Mas só quando começou a interpretar “The sea” me apercebi de que ela era, afinal, a mesma mulher que nós surpreendêramos junto às ruínas da Abadia. A sua voz desenhava um fio melódico que se erguia no ar em movimentos oscilantes, acentuados pelo dedilhado sóbrio do violão, e nessa ondulação devo ter pressentido os ritmos marítimos de Saint-John Perse, o fluxo e refluxo das suas marés verbais, dos seus versos desmaiando sobre o corpo de uma ilha da memória. Talvez tenha mesmo tentado perseguir no rasto dessa voz o remoto apelo do mar que secretamente ecoa na poesia de Emanuel Félix. O mesmo mar que traçou para sempre o destino de Enrico Mreule, levando-o a trocar o fechado Mediterrâneo pelo Atlântico infindo, sem saber que este era, afinal, esse outro mar de Claudio Magris e onde tudo acontece.
Lentamente, porém, a canção ganhava corpo nas palavras de uma dorida história de amor em que uma mulher a pouco e pouco se perdia de si mesma nas repetidas ausências do seu homem no imenso Atlântico selvagem: he takes a piece of me with him, each time he leaves the shore. Depois, uma fina amargura invadia os versos e a melodia até desembocar num desabafo derradeiro em que tudo era já sem remédio nem consolação: he won’t stay home for me, cause my love he has a mistress, she’s the sea. De súbito, naquela história de enamoramento e ciúme chegavam-me os ecos da belíssima abertura do romance Saudade, de Katherine Vaz, e nela vibrava a voz de Conceição Cruz, como se José Francisco tivesse decidido perder-se em definitivo da terra. E dei comigo a pensar como será bom saber que, de cada vez que sucumbirmos ao íntimo chamamento do mar, uma voz de mulher há-de erguer-se para chorar-nos o destino e a perdição.
Assim, longe dos Açores e da Califórnia, ouvindo Briege Murphy no Howth’s Abbey Center, eu era ao mesmo tempo leitor e personagem do romance de Katherine Vaz.
(Que paisagem apagarás, 2010)
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