quinta-feira, 24 de maio de 2012

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Antes da Noite (final)
by Urbano Bettencourt on Thursday, 24 May 2012 at 17:05 ·
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Em Mafra, verão estorricado, inverno lamacento e podre. Avançavas pelo terreno, primeiro em linha depois em cunha, “queda na máscara!”, o instrutor barafustava contra a estupidez dos instruendos, o comandante vaticinava “temos aqui fortes candidatos a um balázio nos cornos!”, desfeita a cunha avançavas em V, à noite ensaiavas sem música o passo fantasma através do silêncio e da solidão. Um tenente contralto esganiçava as suas técnicas de utilização de armas brancas, o racista!, “entre a quinta e a sexta costelas é que se espeta o punhal até ao fundo anda-se com ele em volta para não dar chance alguma ao inimigo”, esse fantasma descomunal e carnívoro com unhas milenares engendrado noite e dia nas aulas, à mesa, na instrução, na cama, chamava-se preto, era de cor preta, reproduzia-se demasiado e sobretudo estava-se borrifando para os superporreiróptimos valores da civilização cristã, o safado!
Ó frades, ó tropas! Ó convento, ó Escola Prática de Infantaria, ó EPI! Oh epi days! Nas manhãs pedradas rasgavas a humidade e as brumas da memória a golpes de coronha, flutuavas por longos corredores de nevoeiro, as botas cobriam-se de fungos e os limos nasciam sob as unhas dos pés. Oh epi days! o diabo limpava os meus pecados, eu era a sua criança perdida na carreira de tiro e com a cabeça no alvo onde afinava a pontaria, era negra a cabeça, sobre ela disparavas a raiva que te consumia, oh epi days! jovens cabeludos gemiam oh mammy, oh mammy mammy blue, oh mammy blue, plas casernas plos chuveiros sobre a terra dos lençóis ó pátria sente-se a voz oh mammy, oh mammy todos não éramos demais pra entoar bem ou mal oh mammy, oh mammy ó tropas levantai hoje de novo oh mammy o oceano a rugir de amor oh mammy oh mammy oh mammy mammy blue oh mammy blue .
E eis-te de novo na lama, arrastas-te agora através da bolanha com cheiro a água estagnada e enfrentas a única imbatível força aérea dos mosquitos (ó Mestre Bana, como é que se pode cantar uma coisa destas?), o lodo sobe até aos joelhos, suga-te as botas com os seus braços e ventosas de polvo, quando o sol se empinar há-de secar a lama e caminharás dentro de umas calças de adobe, mas isso virá mais tarde. Agora, tens diante de ti o volume escuro da mata, seria bom entrar nela como quem vai à procura do silêncio e se abandona ao aconchego de um ventre muito antigo, mas sabes dos perigos disfarçados em cada ramo, ao dobrar de cada volta, é melhor não pensares na morte que te aguarda em cada palmo de terra em que porás o pé. E já não podes arrepiar caminho, a mata vai envolver-te na sua teia e no seu visco e engolir-te de seguida. Subitamente são teus os rumores e as vozes atrás de ti, vinte e tal homens tão desenraizados como tu, desesperadamente agarrados à esperança de, um dia, se verem fora deste tempo e regressarem em definitivo ao calor das mulheres e das amantes. Mas talvez nenhum deles queira saber que regressos vão ser esses.

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