Sexta-feira, 16 de Setembro de 2011
Carta para Eliane
AS IMPOSSÍVEIS RENÚNCIAS DE AGOSTINHO NETO
E ELIANE POTIGUARA
por:
LEONEL COSME
Tenho de começar por dizer que a minha memória não regista, depois da Renúncia Impossível, do maior poeta negro angolano Agostinho Neto, outro livro tão perturbador como é "Metade cara, metade máscara", da escritora e poeta índia brasileira Eliane Potiguara, a cuja apresentação assisti, na cidade do Porto, a 13 de Novembro de 2010, em Portugal.
Perturbador, a todos os títulos, mas logo pelas epígrafes escolhidas para introduzir a sua mensagem de autora índia vinda do Brasil, face a uma audiência expectante porque, na generalidade, distanciada, física e culturalmente, de uma mensageira talvez só (mal) imaginada no recôndito das selvas brasileiras, onde, segundo raras notícias veiculadas pela comunicação social, os fazendeiros latifundiários continuam a não deixar os nativos em paz na terra-mãe que lhes pertence desde a Criação.
Começando por uma significativa advertência recolhida do poema O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa,
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.
adianta:
No dia que eu conseguir abrir as páginas de minh’alma e contar essas linhas de meu inconsciente colectivo – com alegrias ou dores, com prazeres ou desprazeres, com amores ou ódios, no céu ou na terra – aí sim, aí sim, vou soltar a minha voz num grito estrangulado, sufocado há cinco séculos. Quinhentos anos, de pretenso reconhecimento de nossa cidadania, não pagam o sangue derramado pelas bisavós, avós, mães e filhas indígenas deste país. Este dia certamente chegará, mesmo que eu esteja em outros planos.
Penso: que outra voz igual, vinda de África, ressoando a uma impossível renúncia e à crença numa sagrada esperança, ecoava na minha memória?
Ah!
Faça-se luz no meu espírito
LUZ!
Calem-se as frases loucas
desta renúncia impossível.
Eu-todos nunca me negarei
nunca coincidirei com o nada
não me deitarei nunca debaixo dos comboios.
Sou um valor positivo
da Humanidade
e não abdico,
nunca abdicarei!
Seguirei com os homens livres
o meu caminho
para a Liberdade e para a Vida.
A minha memória ia direita à voz de Agostinho Neto, o poeta revolucionário angolano, que depois da Renúncia Impossível escrevera Sagrada Esperança, para transmitir ao seu o povo a força motora
Nós somos
Mussunda amigo
Nós somos!
da mensagem conclusiva:
Do caos para o reinício do mundo
para o começo progressivo da vida
e entrar no concerto harmonioso do universal
digno e livre
povo independente com voz igual
a partir deste amanhecer vital sobre a nossa esperança.
Não é uma voz igual, esta, também épica, a de Eliane Potiguara?
Nós, povos indígenas
Queremos brilhar no cenário da História
Resgatar nossa memória
E ver os frutos de nosso país, sendo dividido
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e “desplazados”
Como nós.
Ah, a História, lembrando-nos sempre que começa com o que vem de trás! Faço minhas estas palavras de Graça Graúna, no prefácio:
Em verso ou em contação de histórias, a visão dos povos indígenas em Potiguara é fruto da somatória de saberes ancestrais e dos chamados tempos modernos. Não é à toa que ela questiona a representação da mulher indígena na sociedade não-índia, mostrando que desde a colonização essa mulher foi e continua sendo tratada com requintes de malícia, discriminação, brutalidade, preconceito. Basta um olhar nas cartas que falam do “Descobrimento” das Américas, ou no antidiálogo de jesuístas para aquilatar a imagem da mulher indígena: pecado em carne e espírito, perversão, encarnação do mal.
E em poema, o retrato feito pela própria Eliane é ainda mais trágico:
Que faço com a minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?
Brasil, o que faço com a minha cara de índia?
Não sou violência
Ou estupro
Eu sou história
Eu sou cunhã
Barriga brasileira
Ventre sagrado
Povo brasileiro
Ventre que gerou
O povo brasileiro
Hoje está só…
A barriga da mãe fecunda
E os cânticos que outrora cantavam
Hoje são gritos de guerra
Contra o massacre imundo.
E regresso a um segundo prefácio, de Daniel Munduruku:
Houve um tempo que pertencer a um povo indígena era quase uma maldição. Falava-se destes povos como atrasados, selvagens, inoportunos para o progresso, sem razões e sem convicções. Havia quem falasse que desapareceriam à mercê do capitalismo selvagem, já que não teriam como resistir ao impacto da “civilização”. Havia, porém, quem ousasse defendê-los, encorajá-los, informá-los sobre o seu real papel dentro da sociedade envolvente. Estes amigos acreditaram na verdade destes povos, acreditaram em sua índole, acreditaram no seu futuro.
Tendo eu vivido quase metade da minha vida, a partir dos dezasseis anos, em Angola, - como o Brasil, país com minorias tidas como “inoportunas para o progresso” – cedo me ocorreram as vozes amigas de escritores e antropólogos, já falecidos, como Henrique Abranches, Alfredo Margarido e Ruy Duarte de Carvalho (estes dois últimos tendo lecionado em Universidades brasileiras), que, sendo portugueses de origem, consagraram a sua vida e obra à defesa dos indígenas angolanos “inoportunos para o progresso” porque resistindo aos “impactos da civilização e do capitalismo selvagem, dentro e fora da sociedade envolvente”.
No mesmo contexto sociológico, não deixarei de juntar àqueles estudiosos das identidades primigénias angolanas o nome de A.F.Nogueira, que em 1880 deu à estampa um livro básico para o estudo da colonização de Angola: A RAÇA NEGRA – Sob o ponto de vista da civilização da África – Usos e costumes de alguns povos gentílicos do interior de Moçâmedes – As colónias portuguesas.
Diga-se que António Francisco Nogueira, de seu nome completo, foi um dos primeiros colonos portugueses, entre duas centenas, saídos em 1849/50 de Pernambuco, fugindo à Revolução Praieira, para o território namibiano, pouco povoado, do sul de Angola, onde viveu um quarto de século. Etnólogo autodidacta, levava do Brasil uma visão realista que o levou a prever, como inevitável, a independência dos povos colonizados. E – surpresa, hoje! – apresentava a independência do Haiti como um paradigma da libertação. No Brasil, ele aprendera o que era visível da escravidão africana, certamente lamentando que os missionários jesuítas só tivessem investido o seu humanismo na preservação das almas índias, conferindo-lhes um direito de cidadania que porém só acabaria por ser exercido, como que silenciosamente, à margem dos colonizadores, no recôndito das florestas. Zumbi e Palmares viriam por acréscimo…
Nogueira não se deixou iludir pelo “acertos naturais” dos Camurus e Paraguaçus, que já não tinham entusiasmado o clássico Gregório de Matos, - apesar de também ter casado com uma mulher de cor e vivido um ano de desterro em Angola, por ser “Boca do Inferno” - como se calcula partindo da primeira quadra de um “multirracial” verso oferecido “Aos principais da Bahia chamados os Caramurus”:
Há cousa como ver um Paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.
Gilberto Freyre ainda não existia para pregar as virtudes da miscigenação e da multiculturalidade, ele que, no relato da Vida Social no Brasil do Século XIX, já não registara a presença de índios entre os escravos negros amansados ao serviço da Casa-Grande, que vestiam de preto durante meses, em sinal de luto pelos seus ioiôs e iaiás…
Sempre houve muitos “brasis”, antes e depois de Cabral. Como houve muitas outras “américas”, antes e depois de Colombo, e muitas “áfricas”, antes e depois de Diogo Cão. E todas consignando, distintamente, a brancos, negros e pardos, o direito à preservação da identidade primária, uns por meio da posse, outros pela resistência à posse. Também foi, e continua a ser assim, em África, onde o otimismo do académico e então diplomata brasileiro na Nigéria, nos anos 60, Antônio Olinto, podia ainda levá-lo a escrever, em Brasileiros na África:
Nos meus primeiros tempos de África, em Dacar, Freetown, Acrá, Porto Novo (Daomé) e Lagos, os jovens negros de Abidjan, lendo sob os postes, eram o signo de uma verdade nova no mundo, de um modo diferente de fazer democracia e buscar o socialismo, de formas ainda não muito conhecidas de reestruturar as bases da administração pública, no esforço de “africanização” que, em maior ou menor grau, ocorre em qualquer parte do continente negro. Que as Africas são muitas, mas todas caminham para uma unidade.
Era uma época propiciadora de muitas “sagradas esperanças”, em que os negros de todo o mundo, falando a língua do colonizador, chamassem-se Agostinho Neto, Abdias do Nascimento, Frantz Fanon ou Thiongo wa Ngugi, subscreveriam o ditame de Sécou Touré:
Como cada um de nós traz em si uma parte de educação saída do regime colonial, e por isso mesmo um pouco de “complexo” herdado desse regime, devemos impor-nos a nossa própria e completa reabilitação, isto é, que cada um de nós regresse às fontes culturais e morais de África, que se reintegre na sua própria consciência e que se reconverta, em pensamentos e acções, aos valores, às condições e aos interesses de África.
Mas, o tempora! o mores! a sede e/ou a necessidade de poder, que começaram para assegurar, por razões de sobrevivência, as conquistas das terras ricas de flora e fauna, dividiriam os povos entre conquistadores e conquistados, mostrando, afinal, que conforme a sua força e representação étnica, homo homini lúpus, em vez de homo sum, humani nihil a me alienum puto. Ou entre os kimbundus, kala nguvulu ni utuminu uê, kala nvula ni maloua mê, que o cronista angolano Óscar Ribas traduziu por “cada governador com o seu administrar, cada chuvada com os seus lamaçais”. Hoje, se fosse vivo na sua pátria (morreu triste em Portugal), aquele sábio mestiço, que exaltara a independência da sua terra-mãe, não deixaria de reflectir sobre os caminhos ínvios perspectivados pelo escritor guerrilheiro Pepetela nos seus perturbadores romances Mayombe, de 1980, e A Geração da Utopia, de 1992.
Era, pois, preciso escapar aos “lamaçais” endógenos e exógenos e retomar o “caminho” do regressso à “terra sem males”, no dizer de Eliane falando da “ancestralidade histórica” dos Guaranis, “uma terra que lhes permita viver com dignidade, sem interferências paternalistas, enfim, um paraíso mítico de sua ascendência.” O líder guineense de origem cabo-verdiana, Amílcar Cabral, sendo mais específico, corroborava:
A nossa resistência cultural consiste no seguinte: enquanto liquidamos a cultura colonial e os aspectos negativos da nossa própria cultura no nosso espírito, no nosso meio, temos que criar uma cultura nova, baseada nas nossas tradições também, mas respeitando tudo quanto o mundo tem hoje de conquista para servir o homem.
Por sua vez, Agostinho Neto, nacionalista pragmático, reiterava, quando Angola acabava de conquistar a independência:
Nós somos uma encruzilhada de civilizações, ambientes culturais, e não podemos fugir a isso de maneira nenhuma, mas da mesma maneira que nós pretendemos manter a nossa personalidade política, também é preciso que nós mantenhamos a nossa personalidade cultural.
Tratava-se, simplesmente, de defender as identidades nacionais, preservando a “ancestralidade histórica”. Todavia, como observava em 1986 o então jovem ensaísta angolano Luís Kandjimbo, em Apuros de Vigília,
É forçoso considerar que existindo nos nossos países várias ex-nações, existem concomitantemente vários níveis de desenvolvimento sócio-económico e cultural. Dito de outro modo: existem concomitantemente diversos modos de produção social. A identidade nacional terá a sua verdadeira dimensão quando às solicitações da humanidade, em circunstâncias necessárias, a nação responder através da sua harmónica unidade. É dizer através de um desenvolvimento económico, social, cultural, político, jurídico e ideológico de unidade.
(…) Se as resistências dos povos africanos ao colonialismo, durante todo o processo colonizador para a recuperação de uma personalidade anteriormente existente, são uma premissa para o processo prospectivo de unidade nacional dos povos africanos, a verdade é que só com o surgimento dos movimentos de libertação nacional e nas condições do desenvolvimento histórico mundial a identidade se torna um projecto real e efectivo.
Todavia, os movimentos de libertação, civis ou militares, tiveram de partir para uma construção nacional prefigurada pelos colonialistas, que mapearam num determinado espaço geográfico uma artificial entidade territorial, sem atender à identidade dos autóctones. Na verdade, a maioria dos países reconhecidos como Estados-Nações foram “construções” arbitrárias dos conquistadores que os invadiram.
Há dois séculos, no país chamado Brasil, ainda se contavam duas centenas de etnias falando mais de cem línguas e dialectos. Povos que, não reconhecendo as fronteiras administrativas mapeadas pelo invasor estrangeiro, se disseminavam por paízes vizinhos. Em Angola, a situação, tomada por cerca de metade da brasileira, era similar: as “nações” identificavam-se pelo espaço territorial em que grupos da mesma língua, tradições e práticas exerciam, pacificanente ou em transe de guerras de ocupação, o “direito” de sobrevivência em acordo com a sua natureza. O suposto resto do Mundo envolvente, a sua cosmogonia, cabia bem na epígrafe pessoana escolhida por Eliane Potiguara: Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.
Só que a “aldeia” da Poeta e do seu povo originário foi submersa pelos avatares de uma história que, vindo de trás, era fatalmente dialéctica, restando numa “sagrada esperança” de salvação da alma:
Ah! Já não tenho a minha aldeia/ Minha aldeia é meu Coração ardente! É a casa dos meus antepassados! E do topo dela eu vejo o mundo! Com o olhar mais solidário que nunca! Onde eu possa jorrar! Milhares de luzes! Que brotarão mentes! Despossuídas de racismo e preconceito.
Lembro-me de que nesses avatares também mingua o espaço para as utopias. Que pensar se um poeta angolano, de raiz bochímane (de que resta, hoje, um povo que se conta por escassos milhares nos territórios semidesérticos de Angola e do Sudoeste namibiano) exclamasse num grito de desesperança:
Os nossos irmãos-vizinhos bantus pensam-nos como não-gente! Porque temos diferenças anatómicas na cor da pele e no tamanho! Porque falamos numa língua de cliques, vivemos de caça, pastorícia e raízes e enganamos a fome e restauramos energias comendo um certo cacto do deserto (hudya)!
Defrontando as inclemências ou indiferenças dos vizinhos-homens e as perturbações climáticas por estes também provocadas, em razão de outro “direito” de sobrevivência, dir-se-á que a dialética se consome na salvação da alma. Di-lo a ameríndia Eliane Potiguara e o português-angolano Ruy Duarte de Carvalho, estudioso do ethos do povo herero, - que subsiste, ainda autonomamente, no sul de Angola - ao qual consagrou a sua vasta obra de escritor-antropólogo, até ser sepultado, depois de correr o mundo, conforme a sua vontade, no deserto de Moçâmedes:
Ainda quererás saber qual é a minha posição no meio de tudo isto? Campanhas, de qualquer forma, não. Estou pronto a esclarecer no que puder mas não me peçam nem que ajude a domesticá-los nem que pugne pela causa da preservação dos seus modelos e sistemas, que de qualquer maneira não seria a deles.(…) Estou a investir-me numa teoria pessoal dos horizontes onde cabe tudo. (…) Não é só a salvação dos Kuvale que está em causa, é a minha também…
Viajante por natureza assumida (Carvalho saíra de Portugal, para Moçâmedes, com treze anos de idade), entre os hereros aprendeu vivendo o pleno sentido da máxima de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano considero estranho a mim.”
Aqui me dei, aqui me fiz
Desfiz, refiz amores.
Aqui me embebedei e vomitei o espanto.
Daqui abalo hoje, parido para o nada
apalpo a água
afago um bicho
ordeno qualquer coisa
e vou.
Sempre indo, ele faria coro, certamente, com o grande poeta espanhol António Machado - “Caminante, no hay camino,/se hace camino al andar”- e o poeta colombiano Manuel Vejia Vallejo: “Si camino siempre hacia adelante/Un dia llegaré/Al punto de partida./Asi he sabido que todo/camino del hombre/ es camino de regresso.”
Esta será porventura a mensagem do livro de Eliane, a caminhante.
LEONEL COSME
Escritor - Ensaísta Português
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