Mas com que palavras há-de um ilhéu escrever-se?
Trago em mim uma ilha por encontrar. Sei que ela existe, as correntes do mar falam-me dela – e dela me falam as aves que precisam de onde pousar. Ouço as ondas que rebentam em tormentas de basalto. Sinto no ar a humidade que só uma ilha pode atrair. Escuto vozes de pessoas que por séculos e séculos demandaram horizontes e acharam portos de abrigo. E há tremores convulsos que me dizem que o solo que habito é uma epifania da Terra.
Dentro de mim.
Trago pois uma ilha que não sei descrever, ancorada como um coração em seu habitáculo. Tal como não sei descrever o mar que a rodeia (o mar, o mar... ah!, o mar...), às vezes calmo, às vezes bravo, às vezes azul, às vezes negro, mas é nele que navego – até que, de repente, a meio de uma viagem sem horizontes, me aparece uma ilha com seu porto de abrigo – e nela sou doce ninfa, e sequioso marinheiro cambaleante dos passos das ondas. Foi nesta ilha que arribaram os meus antepassados, eu ainda nos sonhos deles, mas quem sabe descrever os sonhos da estirpe de onde vem? Quem conhece os nomes dos seus bisavós? Em que terra jazem mergulhados os seus ossos? Que ecos deles perpassam na voz que hoje me sai?
E no entanto, aqui estou eu com uma ilha dentro que não sei como achar. Mas uma ilha que traz ainda em sonho as gerações que hão-de vir, e que em seus dias se perguntarão em que terra jazem os ossos de quem hoje, como uma ponte suspensa, une as duas margens da história, aquela de onde um dia se partiu, e aqueloutra onde um dia se há-de chegar. E essa ponte sou eu e a minha geração, em cujo tempo de vida se passou tanto como em toda a história passada – da troca comercial em géneros ao dinheiro virtual, da ardósia da escola ao manuscrito electrónico –, porque nascemos e crescemos como se nascia e crescia no tempo dos romanos, e ora vivemos e havemos de morrer na virtualidade do futuro cuja porta de entrada ajudámos a escancarar.
E como levaremos connosco esta ilha que temos dentro e que nos falta encontrar? Ou ficamos nela, rijos e negros, como biscoito resistindo ao mar? Que vida, que raízes, que troncos e que ramagens dela germinarão, que florestas de nuvens nela assentarão raízes, que são apoio, erguendo os ramos para a humidade do céu, que é alimento? Se o nosso passado assenta no húmus da ilha, que sonhos e outros castelos construiremos no ar de que ela respira – e nós com ela?
Que faz dentro de nós a ilha que antepassados sem nome nos transmitiram, sustentada nos ossos que nela deixaram, consolidando-a?
Qual será o futuro desta ilha que trazemos em nós?
Descobrir um, é descobrir a outra. Remoer o nosso chão, senti-lo, cheirá-lo, comê-lo, suá-lo, tremê-lo, fecundá-lo, colhê-lo – é olharmos para nós e sentirmos que, sem nós, a ilha que trazemos dentro não seria esta mas outra, talvez a mítica ilha das Maidas, que ninguém ainda soube como haveria de escrevê-la, mas que todos sabemos que se encontra ali, talvez dentro de alguém que como nós se pergunta, na esquina arredondada de um horizonte azulado – porque à distância, tal como a Terra vista do espaço, é sempre azulado o negro e o verde em que mergulhamos –, o que é que ficará mais além. “Ou Paris ou a Fragueira”, como hesitava Francisco de Lacerda, dividido entre a grande cidade e a minúscula fajã de uma ilha que, também ele – et pour cause –, trazia dentro de si sem nunca a ter conseguido descrever?
Pedem-me que escreva sobre a ilha que falta escrever.
Pois sim.
Mas com que palavras há-de um ilhéu escrever-se?
(diXL, de Angra do Heroísmo, Açoriano Oriental, de Ponta Delgada)
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