quarta-feira, 15 de agosto de 2012

negras memórias / memória de negros”

IN DIÁLOGOS LUSÓFONOS


"Para nunca esquecer: negras memórias / memória de negros”


Arqueologia de uma cultura soterrada, entrevista a Emanoel Araújo

Em outubro de 2003, Emanoel Araújo (n. 1940), artista plástico e curador brasileiro, um dos principais colecionadores de arte afrobrasileira no mundo, esteve em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, com mais uma das suas grandes mostras.
“Para nunca esquecer: negras memórias / memória de negros”, foi o título da exposição. Todo o material exposto está reproduzido num belo livro publicado pelo Ministério da Cultura do Brasil naquele mesmo ano.
A exposição teve lugar no Palácio das Artes e fez parte das atividades da 2ª edição do Festival Internacional de Arte Negra que se realizou naquele ano, oito anos depois da 1ª edição desse evento extraordinário, ocorrida em 1995.
Dois dias antes da abertura oficial, impressionado com a grandeza estética e humana de todo aquele gesto, fiz a entrevista com Emanoel que aqui disponibilizo aos leitores do BUALA.
Era uma tarde de sábado, quando nos sentámos no café do Palácio das Artes para esta conversa, que se revelou uma sensível reflexão sobre a complexa relação entre negritude e a sociedade brasileira. 
Como surgiu a ideia dessa exposição?
Esta exposição é resultado de outras. Na realidade, nasceu em 1987, quando, por ocasião do centenário da abolição (comemorado em 1988), organizei a exposição “A mão afrobrasileira”, um levantamento do que foi o negro na cultura brasileira desde o Barroco, que se tornou um livro. É mais ou menos o que faço hoje.
“A mão…” ainda era uma pesquisa em andamento, muita coisa foi mudando, foi-se afinando, ficando mais didática também. Em 93, fiz uma outra chamada “Vozes da diáspora”, homenagem ao então recém-falecido Rubem Valentim. Depois fiz “Brasil África Brasil”, em homenagem a Pierre Verger.
“Negras memórias/memórias de negros” começou de fato na Bahia, em 1983, quando fiz a exposição “Bahia África Bahia”, que registrou um fato muito curioso: levou 1500 pessoas à abertura, num domingo, às sete horas da noite.
Também fiz exposições como “Herdeiros da noite”, que trouxe a Belo Horizonte (por ocasião do primeiro Festival de Arte Negra, em 1995), e “Negro de corpo e alma”, antes de chegar a esta exposição.
Com “Negras memórias”, fecha um ciclo de exposições sobre o tema?
Não ainda. Há lugar para uma outra, sobre um grande halo criado por esta sociedade que se estabelece, a partir da escravidão, da diáspora (africana). Seria uma exposição envolvendo o Brasil, a América do Norte, o Caribe e a América do Sul – aqui, as populações negras que a gente não conhece, do Peru e do Uruguai, por exemplo.
Penso naquele tambor que está ali (aponta para a sala de exposição) como metáfora da ressonância da presença negra nas Américas, no Caribe etc. Com a chegada dos negros a esses lugares, formou-se uma sociedade afroamericana, caribenha ou afrocubana.
A exposição me parece um grande inventário da presença negra no Brasil. É sua intenção apresentar uma visão macroscópica da questão, digamos, com a finalidade de superar uma visão microscópica?
Não, necessariamente. Penso que a exposição seja uma arqueologia de uma cultura que foi soterrada. Esta exposição, assim como as outras que fiz, tenta trazer à luz todos os elementos que compõem a cultura brasileira.
Esse grande caldeirão…
Esse grande caldeirão que está sempre subterrâneo. Revisitar essa memória é, no fundo, retirar essa cultura de um porão, de um terreno soterrado onde ela se encontra e por mais que você grite, grite, grite, por mais que você faça alarde, ela continua sem ressonância. Essa exposição é importante para mim no sentido de que possa ser uma ressonância sob vários aspectos: o da auto-estima, o da necessidade (da ostentação) do halo ancestral que existe entre o estigma e a vida.
A que atribuiria a pouca ou quase nenhuma ressonância dos afrodescendentes enquanto tais neste país ainda hoje?
Sabemos que é uma questão de poder.
Poder aquisitivo?
Não. Poder de encontro. O que sinto é que há um grande desencontro (entre o negro e sua cultura), uma falta de conhecimento de um lado que não seja o do estigma. A gente não sabe quais os vultos afrodescendentes que foram fundamentais para a constituição da cultura brasileira, poetas, engenheiros etc que, a despeito do preconceito, conseguiram ir além. Acho importante conhecer Cruz e Sousa, que haja, afinal, o estudo da cultura negra. Acho fundamental saber que existiram também José do Patrocínio, Teodoro Sampaio, André Rebouças e tantos outros.
Por sinal, o livro-catálogo da exposição abre com o poema “Antífona”, de Cruz e Sousa. O que o levou a essa atitude?
Não tenho uma explicação muito objetiva para o fato de ter colocado Cruz e Sousa na abertura do catálogo. Mas é mesmo uma provocação que acho importante fazer. Volto à questão da metáfora. Cruz e Sousa é um poeta que me emociona muito. Aqui (aponta novamente para a sala da exposição) tem um trecho do (poema em prosa) “Emparedado” que é, de fato, o momento mais terrível em que ele (o poeta) se encontra. Ele tem uma densidade luminosa, inventiva, e isso me interessa.
Acho que há artistas que não poderiam se expressar de outra maneira senão aquela em face dos dogmas da sociedade. Para mim, um poeta como Luiz Gama, com a coisa da ironia e do sarcasmo em relação ao racismo, é tão importante quanto Cruz e Sousa, que vai para o outro lado, com o simbolismo.
Ainda no seu texto no livro-catálogo, cita várias figuras afrodescendentes famosas, mas omite Pelé. Há alguma objeção a ele?
Não. Pelé não precisa.
Pelé e Cruz e Sousa são antípodas: enquanto um é símbolo do negro super bem sucedido economicamente, o outro é símbolo é o contrário…
Não tenho uma ideia formada sobre Pelé. Acho que ele tem todo o direito de não entrar em certas discussões e não comprar certas brigas. Sinto que ele tem uma dívida com a comunidade negra. Teria nos livrado de uma série de coisas se tivesse assumido outra postura, mas ele tem direito de ser o que quiser.
Todas as personalidades que compraram a questão do negro, entenderam ou tentaram entendê-la, são muito importantes para o inconsciente coletivo. Acho que Gilberto Freyre, por exemplo, é uma grande figura, muito embora os radicais (que refletem sobre a questão racial no país) o detestem. Ele, assim como Jorge Amado, tenta incorporar nossa cultura, esse amálgama, com todas as contradições, todos os encontros e desencontros. Também Jorge de Lima e Nina Rodrigues que, mesmo com a posição racista que a antropologia do século XIX realmente tem, é o primeiro a escrever sobre a arte negra enquanto Belas Artes em 1904. Muitas vezes temos atitudes radicais que excluem, e eu acho que temos que incluir todas as coisas.
Está otimista em relação ao momento atual no Brasil, com Gilberto Gil, Benedita da Silva e outros negros em ministérios do Governo Federal?
Temos que ser (risos). O Brasil é um país muito curioso em relação ao preconceito. Fico pensando na postura que se tinha há dez, quinze anos atrás, por exemplo, em relação ao elevador social: havia um porteiro negro que, quando chegava um outro negro, perguntava ao síndico “é para entrar no elevador social ou não?” Todos experimentamos isso. Agora uma simples lei vem e acaba com esse racismo, mostrando que certas questões de preconceito são passíveis de ser resolvidas, basta que haja coragem de assumir que tem que ser resolvidas. Acho que é muito legal a presença de negros no Ministério, bem como a preocupação de que haja diplomatas negros no Itamaraty. Há uma mudança, de fato. A importância internacional que se dá ao Governo Lula vem exatamente daí: pela primeira vez está-se quebrando essa hegemonia oligárquica, filha-da-puta, que havia aqui. Acho que a gente não percebeu ainda essa mudança porque ainda é muito cedo.
Acha que Lula tem uma consciência para-racial (Emanoel ri), senão racial propriamente dita?
Creio que social, étnica. Mas acho que, na realidade, ele também tem uma consciência racial, já que seu Governo está criando agora o sistema de inclusão de estudos africanos no currículo escolar.
E a questão das cotas para negros em Universidades. Considera esse sistema positivo ou negativo?
Positivo. Acho que é uma ação afirmativa muito importante. Você tem que educar as pessoas, tem que melhorá-las, precisamos de mão-de-obra especializada. É assim que se pode diminuir a discrepância social. O que nos falta, na realidade, é uma grande consciência que faça com que os donos da terra, os brancos da terra (risos), possam dividir o que têm. Não adianta você morar num apartamento e ter um “mercedes benz” à porta se na esquina você vai ser seqüestrado. E ninguém nasce ladrão nem criminoso, não é verdade?
Voltando à arte: como se dá sua passagem de criador para colecionador de artes e expositor?
Tudo começou quando comecei a estudar belas artes nos anos 60, em Salvador, e freqüentava o Instituto Histórico e Geográfico e os museus da polícia. Na época, eu estudava e trabalhava no departamento de turismo da Bahia. Nessa altura os terreiros de candomblé ainda pediam autorização à polícia para funcionarem.
Tinha um amigo antropólogo e essa consciência de ver, vasculhar, veio dele,  de descobrir obras que estavam guardadas no Instituto Histórico e Geográfico e nos museus da polícia, onde eram usadas com o objetivo de provarem que os negros eram inferiores aos brancos.
Ainda hoje resta uma coleção de arte litúrgica no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, formada por obras aprisionadas durante batidas policiais em terreiros na Bahia. Também há coisas em museus da polícia do Rio de Janeiro. No museu do Estado de Pernambuco também há muitos objetos litúrgicos dos xangôs do Recife.
Com o tempo, fui tomando consciência dessas obras, juntando-as e comprando aquilo que aparecia no mercado, não tudo, é claro. A cada pesquisa, a coleção foi se ampliando.
Sua coleção de arte afrodescendente é a maior hoje no Brasil?
Não sei se há outra. Há? (risos)
Dizia-me sobre o projeto de criação de um Museu Afro-Brasil em SP, que terá a guarda dessa sua coleção
O projeto surgiu agora quando a coleção estava exposta na FIESP, em SP, onde o Secretário de Cultura da cidade – Celso Frateschi – a viu e aventou a possibilidade de se reunir isso como Museu. Por outro lado, eu estava empenhado, a pedido de Gilberto Gil, no trabalho de conceituação e tipologia de cinco museus: o Museu Afro-brasileiro da Bahia, o Museu de Congonhas, um do Pantanal, um outro de Ouro Preto, um de Aleijadinho etc. Martha Suplicy, prefeita de SP, foi quem ficou entusiasmada para criar o museu a partir dessa coleção, que seria posta em comodato. O museu trabalharia sobre essa coleção que, na realidade, é uma coleção meio bruta porque tem fotografia e uma série de outros objetos que nem são expostos, não só do Brasil como da África, do Caribe, inclusive uma biblioteca de quase dois mil volumes sobre a cultura afrobrasileira. Portanto, é um núcleo que caberia dentro de um museu. Por outro lado, chega um momento de eu não poder carregar mais toda essa tralha nas minhas costas.
Fachada do Museu Afro Brasil, São PauloFachada do Museu Afro Brasil, São Paulo
Esta é a última vez que carrega essa “tralha”?
Não sei. A princípio, seria, embora tenha um convite para que essa exposição vá para o Paraná, para Washington D.C. Mas, a princípio, encerra aqui.
E encerrar aqui em MG tem um significado especial para si. Lembro de uma passagem do seu texto no livro-catálogo em que se refere a Aleijadinho como “o imenso”. Como são suas ligações com MG e Aleijadinho, em especial?
Com Aleijadinho, nem posso dizer, depois de tudo que dele se falou, tantos intelectuais como o francês Germain Bazin. Posso falar que o que me fascina no Museu de Congonhas (em torno da obra de Aleijadinho) é exatamente a possibilidade de trabalhar um conceito de museu em que não fosse necessário remover os profetas, mas sim deixá-los onde estão, tratá-los museologicamente e levar a via-sacra para o Museu porque ela é o grande canto do cisne de Aleijadinho e não consegue chegar ao espectador porque está dentro daquelas capelas. Gostaria de transformar aquela via-sacra num grande teatro, de forma que se visse a escultura na sua totalidade, na sua inteireza. Essa era a razão primordial pela qual eu toparia trabalhar no Museu de Congonhas. Parece-me que um museu puramente massivo, onde as pessoas chegam e vêem, ainda é pouco. Precisaria trabalhar outras questões, como a pedra, um grande estudo sobre a pedra-sabão. É mais um projeto entre os muitos em que me meto (risos).
E, por falar nisso, como recebeu recentemente a reedição da tese sobre a possível inexistência de Aleijadinho?
Lembro de Mário de Andrade. Quando alguém lhe dizia que Aleijadinho era primitivo, ele perguntava: primitivo por quê? Em relação a quê? Não existe por quê. Claro que não é sério levantar questões como essa (da inexistência de Aleijadinho), que é uma invenção. Claro que há uma obra construída, que tem similute, referência, princípio. Acho um absurdo que alguém levante essa questão. Deve ser algum inimigo de Minas Gerais.
Lezama Lima dizia que Aleijadinho representa a rebelião dos negros na cultura latino-americana.
É fantástico que o filho de uma negra e um português tenha chegado a tamanha genialidade no século XVIII e produzido o que produziu. Aleijadinho é imenso, apesar de todas as questões que se apresentem sobre ele, é a maior coisa do século XVIII. Só Congonhas é monumental, é um homem grandioso.
A controvérsia em torno de Aleijadinho não lhe parece exemplar da controvérsia em torno da memória afrodescendente no Brasil como um todo?Na verdade, o próprio nome Aleijadinho já é um estigma. Nossos heróis – brancos ou negros – têm sempre um estigma. No Brasil, as coisas se esfacelam: ele era aleijado, não tinha mãos, e como é que alguém pode esculpir sem mãos? É um absurdo! Por outro lado, há personagens que preservaram a memória de outros personagens importantes. Aleijadinho é conhecido no Brasil e em muitos lugares do mundo. Se a memória é nossa, cabe-nos preservá-la.
Nós, quem? Os negros?
Nós, negros.
Parece-me um trabalho solitário. Não há, de um modo geral, um sentimento de responsabilidade com o passado entre os negros como há entre os brancos.
Pois é: nossa memória de um modo geral é escamoteada. É estranho, é um traço colonial. Por outro lado, acho que temos sempre que revisitar essa memória. Daí o meu esforço no sentido de organizar o museu. Porque o museu é o espaço onde essa memória pode ser sempre repassada, discutida, suscitando sempre novas ideias e pesquisas.
Creio que, ao ser despertada, essa memória por si só já funciona como uma crítica ao modo como a sociedade brasileira se relaciona com os negros.
Alguém vai dizer que essa história não está contada. E, de fato, não está. É preciso contá-la. Por isso digo que é um trabalho de arqueologia.

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