segunda-feira, 5 de novembro de 2012

jeitinho e jeitão


Li na Revista PIAUI 73 outubro interessante ensaio de  Francisco Assis de Oliveira sobre a formação do caráter nacional brasileiro.

Acompanhe.

Jeitinho e jeitão

Uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro
por FRANCISCO DE OLIVEIRA
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Norbert Elias se destaca entre os modernos clássicos das ciências sociais por não recusar a investigação sobre o caráter das sociedades. É o que ele faz, brilhantemente, no seu derradeiro livro, Os Alemães, publicado em 1989, um ano antes de morrer, já nonagenário. Ali ele se pergunta, diretamente e sem rodeios, o que fez com que a Alemanha estivesse no coração das grandes tragédias modernas, a Primeira, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.
Tinha condições subjetivas para tanto: viveu uma experiência dolorosa como soldado na Primeira Guerra Mundial; judeu, teve de se exilar da Alemanha durante o nazismo; sua mãe foi trucidada em Auschwitz. Norbert Elias tinha também credenciais intelectuais para tentar explicar como a nação que sintetizou a era das Luzes, a pátria de Kant, Hegel e Goethe, tenha desenvolvido a indústria do extermínio: estudou medicina e psicanálise, doutorou-se em filosofia e foi professor de sociologia na Inglaterra.
Para ele, o desenvolvimento tardio do capitalismo na Alemanha, a ausência de uma revolução burguesa no país, a unificação nacional sob o tacão militar de Bismarck, o culto à organização, do qual o militarismo é o emblema mais ostensivo – tudo isso criou um caráter alemão. Esse caráter distingue a sociedade germânica de todas as outras, mesmo as europeias. Para Elias, não são apenas circunstâncias históricas que explicam o surgimento de Adolf Hitler. Isso é uma meia-verdade. As ideias monomaníacas que engendraram a bestialidade fascista talvez não tivessem acolhida sem a existência prévia do caráter alemão, nos termos definidos por Norbert Elias.
Os cientistas sociais costumam recuar ante tal tipo de análise. Têm receio de serem julgados preconceituosos. E, talvez, de se virem excluídos da interlocução com a ciência social alemã, uma das mais brilhantes fontes do pensamento filosófico-social em todos os tempos.
Mas é por um caminho “norbertiano” que pretendo investigar o caráter brasileiro. Penso que o peculiar modo nacional de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro.
Os clássicos do pensamento social brasileiro têm dificuldade em lidar com a questão do caráter nacional, que amalgama o subjetivo e o objetivo. Salvo, evidentemente, Gilberto Freyre. Mas o autor de Casa Grande & Senzalamascarou a sua investigação com a nostalgia de um tempo que nunca existiu, e com o enaltecimento da suposta – e ilusória – capacidade da metrópole lusitana em se adaptar aos trópicos coloniais.
Por isso, ele enxergou no Nordeste açucareiro, a primeira região importante na formação do Brasil – que o historiador Evaldo Cabral de Mello definiu como“açucarocrata” –, uma dominação “doce”. O sociólogode Apipucos construiu uma hipótese que serve de justificativa ideológica da sociedade decorrente da escravidão. A sua interpretação é, ela própria, uma das vertentes do jeitinho brasileiro.
Sérgio Buarque de Holanda enfrentou melhor a questão. O seu “homem cordial” – para quem as relações pessoais e de afeto (para o bem ou para o mal) se sobrepõem à impessoalidade da lei e à norma social – é a própria encarnação do jeitinho brasileiro.
Caio Prado Júnior não ofereceu nenhuma contribuição sobre o assunto. Embora o seu marxismo fosse criativo e original, ele ficou prisioneiro da objetividade, o mantra que impediu gerações de marxistas, aqui e alhures, de investigar o caráter das nações.
Antonio Candido, nosso clássico moderno, tratou do tema em “Dialética da malandragem”, o poderoso ensaio sobre Memórias de um Sargento de Milícias, romance de Manuel Antônio de Almeida que se passa no Rio de meados do século XIX. Ainda que se aproxime decididamente do jeitinho, faltou ao ensaio, a meu ver, um pouco de irreverência, para que ele correspondesse à ginga do malandro carioca. Candido respeita tanto o brasileiro pobre que aborda as figuras populares com uma reverência quase mística. Para ele, nossa sociedade é tão obscenamente desigual que qualquer crítica às classes dominadas não passa de preconceito – mais um – dos ricos.

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