Última flor do laço
Ricardo Semler* / Folha de S. Paulo
Exigir o domínio da língua culta, desenvolvida por, e para, as elites, é fator formador de castas NA EXPOSIÇÃO "6 Bilhões de Outros", no Masp, em São Paulo, há o depoimento de um soldado americano, que passou semanas conversando com dois afegãos, pai e filho -sem idioma comum, mas com alta compreensão mútua.
Na moral -sabe q tem dicionário irado com essas parada aí neles- demorô! "Irado" e "demorô" constam do Caldas Aulete. E tá prvdo q n prcsa de tds as ltrs pa entdr qq frase.
Conclui-se que a questão antropológica de comunicação não está em jogo quando um livro, como o "Por uma Vida Melhor", é assediado pelo patrulhamento multi-ideológico.
Evanildo Bechara, da embolorada ABL, defende, na "Veja", que a norma culta da língua continue cobrando pedágio de acesso ao mundo superior. Sem dúvida, negar o aprendizado da língua culta é inaceitável. Caberia só discutir o que é suficiente.
Convém lembrar que a quantidade de unidades lexicais do português demandaria o aprendizado de 350 delas por dia letivo, por cinco anos -são 350 mil no total!
Por outro lado, exigir o domínio da língua culta, desenvolvida a esse alto nível por, e para, as elites, é fator formador de castas. É assim na Inglaterra, onde o "Queen"s English" é ensinado nos internatos, na Alemanha, com seu "Hoch Deutsch" e, naturalmente, na Índia, onde só os brâmanes "falam direito".
É só observar como os médicos se protegem com um linguajar intransponível, os advogados começam frases com "priscas eras" e os engenheiros falam em "senoidal" para descrever um arco. Ninguém penetra nesses clubinhos sem passar na prova de compatibilidade tribal -e tem elitismo sim.
Li o livro aprovado pelo MEC e o achei bom -que exista e seja distribuído. Os alunos contemporâneos têm que discutir como se faz a adaptação de uma linguagem para que seja acessível e democrática, como os EUA fizeram com o inglês, que tem apenas 25 mil palavras cotidianamente usadas, contra 49 mil empregadas na Inglaterra.
O livro "Por uma Vida Melhor" aceita a concordância "errada", mas defende a norma culta e explica que o significado é compreensível mesmo com "equívocos".
Se nóis falemo errado, não é só questão de exigir melhores professores e policiamento intelectual; é também preciso reduzir as regras e as complicações para flexibilizar a língua. Isso permitiria maior acesso às profissões, bem como ascensão social, sem o preconceito do uso da linguagem exata.
Em vez de ficar em mãos de eruditos empoeirados, as novas normas linguísticas deveriam ser editadas por comissões paritárias do país.
Nada impede que os interessados continuem levando as preciosidades a patamares olímpicos, como forma de arte ou mesmo por masturbação mental.
O Mussolini era torcedor da Lazio, que é a região da Itália de onde saiu a última flor do latim a que o Bilac se refere, o português.
Como sabemos desde Mussolini e Stálin, sabedoria e norma culta não têm quase nada em comum. Isso seria bem lembrado nos chás das academias de vosmecês.
* Ricardo Semler é empresário. Foi scholar da Harvard Law School e professor de MBA no MIT, ambos nos EUA. Escreveu dois livros ("Virando a Própria Mesa" e "Você Está Louco") que venderam juntos 2 milhões de cópias em 34 línguas.
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