sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

causas ecológicas e antropológicas









Causa ecológica e causa antropólogica

Tão urgente quanto a ecológica, a causa antropológica é, por ora, pouco pensada.
Situação dramática. Uma tarefa crucial se impõe, portanto, aos que se aventuram em
invocá-la: é preciso se arriscar a propor pelo menos um rascunho de temas principais
suscetíveis de estruturar o pensamento da humanidade em perigo


por Lucien Sève





O planeta Terra, essa forma de designar nosso hábitat natural, vai mal a um ponto
alarmante; mas a consciência sobre o tema se ampliou e hoje não há formação política
que não inclua em seu discurso a causa ecológica. O planeta Homem, forma de designar
o gênero humano, está mal a um ponto também alarmante; porém, a consciência sobre o
tema ainda não é equivalente a seu nível de gravidade e não há formação política que
inclua a causa antropológica. Um contraste assombroso.

Pergunte aos menos politizados o que é a causa ecológica. Certamente, saberão dizer
que o aquecimento global causado pelos gases de efeito estufa produzirá uma era de
catástrofes; que a poluição da terra, do ar e da água atingirá níveis insuportáveis; que o
esgotamento dos recursos naturais não renováveis condena nosso modo de consumo
atual. Mais de um deles acrescentará as ameaças à biodiversidade para concluir sobre a
urgência de reduzir a pegada ecológica dos países ricos.

Como eles sabem disso tudo? Pelos meios de comunicação, em que a informação
ecológica é uma constante. Pelas experiências diretas, desde o clima até o preço do
combustível. Pelo discurso de cientistas e políticos que constroem esses saberes parciais
como visão globalizada e os convertem em programa político. Ao longo das últimas
décadas, assim foi construída uma cultura que dá coerência às mais diversas motivações
e iniciativas das quais é feito esse grande tema, a causa ecológica.

Pergunte agora aos menos politizados sobre a causa antropológica. Nenhum deles
entenderá exatamente do que se trata. Explicitamos: pense que a humanidade está tão
mal quanto nosso planeta, que a civilização do gênero humano está em verdadeiro
perigo, de modo que, para salvar a natureza com urgência – causa ecológica –, é
necessário, na mesma medida, salvaguardar a humanidade no sentido qualitativo do
termo – causa antropológica. A interpelação pegará o interlocutor desprevenido. Muitos
a considerarão excessiva. Certamente, a pessoa pensará em questões inquietantes, como
a duração das condições de existência, a onda crescente de individualismo, a
desmoralização da vida pública, as angústias em relação ao futuro. Mas a ideia de que
nossa humanidade estaria em perigo na mesma medida em que o planeta soaria, sem
dúvida, aberrante.

Insistimos. Em muitos sentidos, não estamos a caminho de um mundo humanamente
inviável? A velha máxima “o homem é o lobo do homem” não tende a ser lei? O
trabalho, exemplo maior, entrou em um declínio inquietante devido às dificuldades
crescentes de proporcionar atividades gratificantes e de qualidade, à competição








sistemática, à erradicação voluntária do sindicalismo, à pedagogia do “aprenda a
vender-se”, à gestão empresarial baseada no terror (a ponto de gerar suicídios nos locais
de trabalho), à ditadura onipresente da rentabilidade dos números, à voracidade
acionária, à inflação e ao patrão criminoso. Não se trata de uma verdadeira
desumanização em curso?

Até aí, não há nada de novo, à exceção da insólita apelação à causa antropológica.
Contudo, observamos que esses desvios sociais suscitam alertas, pesquisas, iniciativas.
E o drama do trabalho não passa despercebido. De fato, há um crescimento da
consciência global sobre os delitos do sistema que nos rege. As forças políticas unidas
da esquerda incitam a superação do capitalismo para levar adiante a emancipação
humana. Os verdes vinculam à causa ecológica fortes objetivos sociais e institucionais
de espírito democrático e solidário. Muitos economistas se opõem ao emprego do PIB
como indicativo de eficiência. Por todos os lados, movimentos sociais se organizam
para reumanizar o mundo. A causa antropológica – para seguir com essa linguagem –
não seria um tema de longa data conhecido e assumido?

Na verdade, não. E está longe disso. A crença no reconhecimento dessa causa omite o
terrível desprezo à sua ordem de grandeza. Essas causas civilizacionais certamente
remetem à política, mas a transcendem na aposta por escolhas éticas mais profundas que
as opiniões políticas no senso comum do termo. Perguntar-se não sem angústia para
onde vai o gênero humano não significa desqualificar a oposição esquerda/direita, e sim
desejar um futuro civilizado – para o qual as palavras esquerda ou direita, fortemente
desvalorizadas, parecem não contribuir muito. Que humanidade queremos ser? Essa é a
questão solene que subjaz na causa antropológica e que está longe de suscitar o
pensamento e as iniciativas que exige.

Por exemplo, o fato de a produção de bens e serviços não poder, salvo algum desastre,
ser pilotada sem a preocupação superior da produção de pessoas impõe a exigência
gritante de pensar a antropologia. Assim como o ecológico, o antropológico deve ser
considerado um saber que rege a forma de agir. E está tão longe de ser conhecido em
profundidade que ainda prevalece o conceito mistificador: “o homem”. Uma única
palavra para dar conta de realidades tão distintas: a espécie biológica Homo sapiens, o
gênero humano historicamente evoluído, a coletividade social, o indivíduo (que ademais
designa, em francês [e em português], tanto o sexo feminino como o masculino). Há
algum outro domínio do saber que se satisfaz com tal primitivismo conceitual? E, no
entanto, esse confusionismo verbal é fundamentado por seu uso quase universal, até em
autores frequentemente citados, como Nietzsche ou Heidegger. O único pensador
moderno que questionou radicalmente essa nociva abstração, o “homem”, foi (será
coincidência?) Marx.

Tão urgente quanto a ecológica, a causa antropológica é, por ora, pouco pensada.
Situação dramática. Uma tarefa crucial se impõe, portanto, aos que se aventuram em
invocá-la: é preciso se arriscar a propor pelo menos um rascunho de temas principais
suscetíveis de estruturar o pensamento da humanidade em perigo. O que segue é fruto
de uma tentativa de propor esses temas, publicada há três anos com a conclusão de um
livro.

O primeiro desvio civilizacional que salta aos olhos é a mercantilização generalizada do
humano. O capitalismo instaurou o reino universal da mercadoria. Ao transformar a








própria força de trabalho humano em mercadoria, esse sistema coisifica as pessoas e
personifica as coisas: Sua Majestade o Capital é considerado o “fornecedor de trabalho”
à “mão de obra”, quando na verdade é o salário que é forçado a dar trabalho gratuito ao
capitalista. Mas o fato novo cada vez mais devastador é que nada de humano escapa à
ditadura das finanças: tudo deve ser feito em função do lucro.

Nesse frenesi mercantil também figura outra tendência mortífera: a desvalorização
tendencial de todos os valores. Kant formulou-a em termos morais: reconhecer
dignidade ao ser humano é admitir que ele “não tem preço”; que tudo seja submetido a
uma avaliação em termos de dinheiro institui uma falta de dignidade geral. O preceito é
verdadeiro não apenas no âmbito moral, mas também cognitivo, estético, jurídico: sem
valores legítimos que atuem “por si mesmos e sem restrição”, não há mais humanidade
civilizada. Esse drama é vivido cotidianamente: a verdade, o justo, o digno são alvos de
depreciação e zombaria. A ditadura do rentável conspira para a morte do inestimável, do
desinteressado, do gratuito. Estamos no limiar trágico de um mundo onde o ser humano
não vale mais nada.1 É o que demonstra a proliferação dos “sem” – sem documentos,
sem emprego, sem moradia, sem futuro. Ao lado deles, estão os que “valem ouro” –
com salários estratosféricos, empregos dourados, caviar para cachorros. Tanto uns como
os outros contribuem para o mesmo fim: a abolição de qualquer escala de valores para
instituir um único “valor” que subjuga todos os outros, torna-se autorreferencial e,
paradoxalmente, sem valor. Essa liquidação de valores é menos grave que o
derretimento das calotas polares?

Sobre essa involução, observa-se um terceiro elemento de gravidade capital: o
incontrolável esvaziamento de sentido. Involução nova, pois por muito tempo o
capitalismo teve sentido: apesar de explorador, fez a humanidade progredir. Porém, com
a irrupção da economia financeira, forma desumanizada e extrema da riqueza, entramos
na era do nonsense universal: a acumulação de capital é cada vez mais sem fim nos dois
sentidos da palavra fim. O que vivemos é a falência histórica de uma classe monopolista
sem qualquer objetivo civilizado e que tenta nos condenar a esse “fim da história”. A
morte do sentido – propagada por todas as partes pelo curto prazo selvagem do retorno
sobre o investimento – impede qualquer projeto humano de respirar. Essa é a razão pela
qual a economia financeira é o fenômeno convulsivo de um “não mundo”, em que o
absurdo tende a invadir tudo com seu comparsa, o fanatismo religioso. E essa miopia
estrutural se agudiza justamente quando as enormes potencialidades que o gênero
humano começa a alcançar exigem a reflexão sobre o futuro, sob pena de morte.
Escapando de qualquer domínio coletivo, na carência colossal provocada pela
substituição da democracia pela ordem do privado, nossas criações materiais e
espirituais tornam-se forças cegas que subjugam e oprimem – alienação sem limites
perante a qual qualquer G8 é insignificante. Daí esse sentimento compartilhado de uma
humanidade sem piloto que se aproxima inexoravelmente do muro – muro ecológico,
tanto quanto antropológico. Se o gênero humano começar a se degenerar, o Homo
sapiens terá a mesma sorte. Estamos caminhando ladeira abaixo, prontos para acelerar.




Descivilização sem fronteiras

Mercantilização do humano, desvalorização de valores, desaparecimento do sentido –
arrisquemos a expressão: está em curso uma descivilização sem fronteiras. Os horrores








sociais e genocidas não contribuem para embelezar os últimos duzentos anos. Mas, com
a vitória total do “livre mercado” no fim do século XX, anunciou-se o reino definitivo
de uma democracia tranquila. Íamos, contudo, em direção a ditaduras da violência, da
qual uma das piores formas é a violência soft. Guerras sangrentas por todos os lados –
purificação étnica, pilhagem armada de países pobres, engenhosidade mortal do
terrorismo, oficialização da tortura, selvageria sufocante de diversos acontecimentos,
tudo o que um filósofo chama de “barbárie de um não mundo globalizado”.2 Ou ainda
as violências “limpas” (concorrência desenfreada de empresas, quedas bruscas das
bolsas de valores, policiamento e controle sofisticados em empresas e nas cidades),
entre as quais está a simbólica – consciências abusadas cotidianamente, fobias, o
cinismo dominante. A redução da consciência de classe ao ponto de mulheres e homens
não saberem o lugar que ocupam na sociedade é um retrocesso mental catastrófico.

A esses quatro aspectos mais amplos, soma-se um quinto que eleva o perigo ao
quadrado: a proscrição sistêmica de alternativas. Proscrição deliberada: a classe
dominante já sentiu o sopro do vento revolucionário e faz de tudo para que essa ameaça
não retorne – um exemplo é o tratamento dos meios de comunicação destinado à
“esquerda da esquerda”. E sobretudo proscrição espontânea pelas lógicas do sistema –
que, para Marx, produziria seus próprios destruidores (a massa crescente de proletários
e explorados). Otimista histórico hoje considerado bem aventuroso: a revolução dos
meios de produção atomiza os salários, a santificação da decisão financeira os desarma,
o peso do inexorável os desmoraliza; enfim, uma aspiração imensa de transformar tudo
tende a resultar em nada. Impotência repetida em todos os lugares – assim as mentiras
da política institucional nutrem, antes de qualquer outra coisa, a abstenção eleitoral. O
frenesi do rentável tende, dessa forma, a nos convencer da fatalidade do pior. O próprio
sistema cuja palavra-chave é liberdade tomou como máxima a frase de Margaret
Thatcher: “Não há alternativa!”. E, de fato, como será possível livrar-se da onipotência
dos mercados financeiros e das agências de classificação se a crise colossal de 2008 não
produziu nenhuma mudança notável no sistema? O clima atual de fim do Império
Romano, porém na era nuclear e da internet, não tem um gostinho de catástrofe
terminal?

Seria possível perguntar-se: se o perigo é tão grave como dito aqui, por que é tão menos
conhecido que o ecológico? Limito-me a uma observação crucial. Colocar a questão
antropológica é incriminar diretamente o abuso estrutural do ser humano pelo
capitalismo e ajudar a popularizá-lo. O pensamento ecológico se inscreve em uma
cultura diferente: sua ênfase está mais nas formas nocivas de consumo do que na forma
desumana de produção, na invasão da tecnociência do que na tirania das taxas de lucros,
nas irresponsabilidades sociais do que nos interesses de classe. É mais provável,
portanto, que a causa ecológica leve a uma reforma virtuosa do consumo do que à
revolução das relações de produção. A ecologia reduzida a esse princípio – a questão do
consumo – tende a não representar perigo para a CAC 40, as companhias abertas de
melhor performance financeira da França. Ela pode até gerar bons negócios e operações
políticas: o “pensamento verde” torna-se, assim, ecumênico. Contudo, o drama
ecológico está tão submetido quanto o antropológico ao mortal curto prazo do lucro
máximo. As duas causas são indissociáveis: o meio ambiente e o gênero humano não
poderão ser salvos um sem o outro. E uma ecologia que não considera o sistema de
produção e lucro capitalista não tem futuro. A aposta está em uma “ecologia de
esquerda”.










Indignação, premissa de uma política justa

Descrita dessa maneira, a situação atual do gênero humano parece extremamente
nefasta. Trata-se de uma visão unilateral? Não seria necessário considerar também as
pressuposições objetivas e iniciativas subjetivas empreendidas pela superação
indispensável do capitalismo? Sem dúvida alguma.3 Apesar da viva impressão da
“fatalidade do pior”, não devemos ceder. É possível inverter a tendência. Mas o sucesso
exige elevar a causa antropológica ao mesmo nível de importância da ecológica – e,
portanto, construí-la. A iniciativa tem hora marcada. Dos indignados da Europa aos
cidadãos norte-americanos que gritam em cólera contra Wall Street, observa-se a
impressionante carga ética dos protestos, em ressonância explícita com a dimensão ética
das causas civilizacionais defendidas. Algo de profundo está revolvendo a política. Dito
à maneira de Jaurès: um pouco de indignação afasta da política; muita, aproxima. Ou
pelo menos deveria levar a uma nova forma de ação – não à revolução à moda antiga,
com a transformação levada adiante pelas camadas dominantes, mas sim ao
engajamento – em todos os níveis – em formas inovadoras de iniciativa e organização
comum. O momento pede criatividade e invenção: esse é o preço da derrota da
fatalidade do pior. Aliar a mais realista consciência do possível à mais ambiciosa visão
do necessário: é isso que deve começar hoje, para a salvaguarda do gênero humano.


Lucien Sève é filósofo, autor de Penser avec Marx aujourd’hui. Tome 2: L’Homme, La
Dispute, Paris, 2008.

Ilustração:

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