domingo, 18 de dezembro de 2011

Eduardo Lourenço e o conceito de “colonialismo orgânico”


Eduardo Lourenço e o conceito de “colonialismo orgânico”
Desde “Europa ou o Diálogo que nos Falta”, de Heterodoxia I, publicado em 1949, que
a opção política de Eduardo Lourenço é indubitavelmente pelo sistema democrático. Em
1958, no texto analítico referente às Forças Armadas portuguesas, de novo se revigora a
pulsão democrática de Eduardo Lourenço, repetida no texto “A nova República deve
nascer adulta” publicado em 1959 no jornal paulista Portugal Democrático, onde o
autor apela para a construção de uma democracia europeia em Portugal. Em
“Contribuição para um «Debate Difícil»”
1
, “carta fechada às oposições portuguesas”,
escrito em 1969, na véspera das primeiras eleições para a Assembleia Nacional após a
subida a Primeiro-Ministro de Marcello Caetano, Eduardo Lourenço confessa o seu
apoio à CEUD – Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, influenciada pela
corrente socialista, que se opunha à CDE – Comissão Democrática Eleitoral,
influenciada por sectores particularmente ligados ao Partido Comunista Português
.
Assim, no interior de uma permanente opção pela democracia, podemos datar a opção
de Eduardo Lourenço pela corrente política do socialismo democrático do ano de 1969.
O livro de Eduardo Lourenço O Fascismo Nunca Existiu evidencia o empenho político
de Eduardo Lourenço após a revolução do 25 de Abril de 1974 em dois temas maiores,
bem como a sua opção político-ideológica. Os dois temas, disseminados ao longo dos
artigos, prendem-se, por um lado,  com a democratização geral de Portugal, ameaçada
pela avalancha revolucionária do Partido Comunista Português e de pequenos mas
aguerridos movimentos políticos trotskistas e maoistas, e, por outro, com a ingente
questão da descolonização. Em 1960, como vimos, interpretando a viagem a Portugal
do presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek no artigo “Brasil – caução do
colonialismo”, publicado no jornal oposicionista português de São Paulo, Portugal
Livre, Eduardo Lourenço considerara que, no interior do “irrealismo prodigioso”
desenvolvido pela “mitologia” heróica e patrioteira portuguesa do Estado Novo,
Portugal “não é acidental mas essencialmente colonialista, único no mundo (…)
                                               
1
 Cf. Eduardo Lourenço, “Contribuição para um «Debate Difícil»”, [1969], in O Fascismo Nunca Existiu,
Lisboa, D. Quixote, 1976, pp. 51 – 75.
2
 Para uma referência geral a estas eleições, cf. Dawn Linda Ray, A Resistência Antifascista em Portugal,
Lisboa, Ed. Salamandra, s/d., pp. 262 – 263.
Miguel Real


2
tragicamente conforme a essa vocação…”
3
. Agora, em 1974, três meses depois do 25 de
Abril de 1974, à beira do início da descolonização e consequente fim do Império,
Eduardo Lourenço alerta para a existência de ´”Africa”, isto é, para a ingente questão
colonial, como verdadeiro “centro da política portuguesa”
4
. Com efeito, face ao dilema
“autodeterminação” ou “independência” dos povos colonizados, Lisboa, capital do
Império, pressionada pelos movimentos de libertação das colónias, responde com o
arrastamento da situação política, que, breve, declara Eduardo Lourenço, se veria
impossibilitada de acautelar um duplo interesse português em África – o da
perpetuidade da língua portuguesa e o dos interesses da minoria branca nos novos
países:

… nenhum independentista branco está em condições está em condições de afiançar e
garantir de maneira absoluta a presença branca numa África independente. Ou só o está a
título de aposta que até hoje não foi ganha em parte alguma. É o colonialismo português
essa mítica excepção que permitirá pôr-lhe fim evitando a tragédia humana e política a que
deu lugar noutras latitudes e noutros contextos? Tanto os autodeterministas como os
independentistas partilham essa esperança que nalguns é da ordem da fé. Mas o que os
distingue é o grau de confiança nessa possibilidade. É porque o general Spínola [defensor
de uma política federalista para as colónias portuguesas assente na autodeterminação e, só
posteriormente, na independência] e aqueles que pensam como ele não estão seguros dessa
permanência no caso de concessão de independência sem processo estruturado de
autodeterminação, que recusam tal hipótese. E nenhum independentista pode asseverar que
ele se engane. Ao fim e ao cabo, a hipótese do general Spínola (vista a questão sempre do
lado português…) não é menos lógica que a do entreguismo concebido como nãoentreguismo
[tanto
se
arrasta
a
situação
1que
no
final
não
existe
outra
hipótese
que
entregar

as

colónias ao movimentos nacionalistas]. Trata-se de duas apostas que excluem a única
questão-tabu, aquela que nenhum político responsável ousa formular abertamente e menos
ainda fornecer-lhe uma resposta: que atitude deve tomar o País diante da perspectiva de
uma independência sem fatal presença branca?”
.

5
Segundo Eduardo Lourenço, Portugal deveria ter tomado primazia na iniciativa política,
não permitindo a radicalização acelerada dos movimentos de libertação das colónias, a
ponto de, breve, se tornar impossível a coexistência “que se quer salvaguardar”
 e de
nada haver a “negociar”
7
, passando-se aos factos consumados. Eduardo Lourenço
acertou. A independência das ex-colónias precipitou-se entre 1975 e 1976 e Portugal
teve de acolher cerca de 500 000 “retornados” através de uma das maiores pontes aéreas
da história. Em “Requiem para um Império que nunca existiu”, datado de Setembro de
1974, Eduardo Lourenço antevê este final abrupto e sem glória do Império português.
Com efeito, o Império fora vivido por via do “irrealismo histórico intenso” do regime
                                               
3
4
 Eduardo Lourenço, “Brasil – caução do colonialismo”, in O Fascismo Nunca Existiu, ed. cit., p. 44.
 Eduardo Lourenço, “Quantas políticas africanas temos nós?”, in O Fascismo Nunca Existiu, ed. cit., p.
78.
5
6
7
 Idem, ibidem, pp. 81 – 82.
 Idem, ibidem, p. 85.
 Idem, ibidem, p. 87.
6
do Estado Novo, criador de “uma das mais grotescas mitologias colonialistas de que há
memória ao equipar Angola e Moçambique ao Minho ou a Trás-os-Montes”
,
cristalizando assim, em profundidade, a noção delirante de Portugal não existir na
história como um país colonialista. Assim, porque nunca problematizámos
historicamente o Império, sempre nos sentimos tão portugueses quanto povoadores de
novas parcelas do mundo. Não havia que disfarçar, éramos portugueses como éramos
colonialistas e assim nos deveríamos assumir quando nos encontrávamos perto de
arriscar o Império. Porém, o novo poder democrático portava-se internacionalmente
como o antigo poder autoritário – como se o problema das colónias não existisse, no
passado porque estas se encontravam “naturalmente” integradas no território português;
actualmente porque, face a tão ingente problema como o da perda do Império, Portugal
parecia desconhecer que tem o dever de responsabilidades políticas, económicas,
culturais e, até, civilizacionais, isto é, portava-se como se o Império nunca tivesse
existido
9
. Tão entranhado está em nós a consciência de um Portugal imperial que,
verdadeiramente, “quer queiram, quer não, todos os portugueses são colonialistas até ao
fundo da alma”
10
 – reiteração, em 1974, da sua tese de 1960, que designa como
“colonialismo orgânico”, isto é, invisivelmente entranhado no corpo da nação. Assim,
sonhando, Portugal visava simultaneamente descolonizar e manter laços exemplares
com os povos descolonizados, o que a Bélgica, a Inglaterra e a França não conseguiram,
uma espécie de união pós-colonial sem “neocolonialismo”. Conseguirá Portugal?:

A descolonização é irreversível. Ela impõe o dever de descolonizar sem arrières-pensées,
quer dizer, em função dos interesses efectivos e inegáveis dos antigos colonizados e da
complexa situação que lhes foi criada pelos agentes da colonização. O que o Ultramar era
ou é constitui razão suficiente para o descolonizar, agora e antes. Não é lícito nem são
operar a descolonização na óptica do nosso interesse específico de metropolitanos que
precisam dela para poder construir a Democracia em casa. Em suma, não é legítimo
subordinar o processo descolonizador a imperativos que são ainda, em prioridade, os da
política metropolitana e, por conseguinte, do colonialismo voltado do avesso. Na realidade,
os autênticos interesses da descolonização são só, e apenas os dos antigos colonizados e por
isso mesmo nem é a nós que incumbe determinar a priori o seu perfil [político] futuro. Mas,
queiramo-lo ou não, e paralelamente, estarmos implicados mais do que num processo sem
dor de descolonização requeria, num contexto que comporta um segundo elemento, ou
questão, aquela que a presença branca representa.


                                               
8
11
 Eduardo Lourenço, “Requiem para um Império que nunca existiu”, in O Fascismo Nunca Existiu, ed.
cit., p.99.
9
 Idem, ibidem, p. 102.
10
11
 Idem, ibidem, p. 103.
 Idem, ibidem, p. 113.
8
Breve, o Império cairia e a “minoria branca”, santo e senha das trovas gloriosas do
colonialismo, fugiria do teatro de guerra, atropelada pela precipitação histórica de um
Império há muito à deriva, “mais sonho compensador do que verdade histórica”
.
Em 27 de Dezembro de 1976, no artigo “Apelo aos retornados”, publicado no Diário de
Notícias, Eduardo Lourenço relembra que nem antes nem depois do 25 de Abril de 1974
a descolonização fora elevada a questão central da política portuguesa, precavendo o
descalabro que seria (foi, de facto) a fuga em massa da minoria branca das ex-colónias:
“em função de urgências históricas que não estão provadas, os colonos foram pura e
simplesmente leiloados ou pouco menos, que a noite a que foram deixados, pagando por
todos um colonialismo orgânico, a nada mais se parece que a um leilão histórico, a um
atroz desfazer da feira imperial. A pedagogia da descolonização não mobilizou
seriamente ninguém e não o podia fazer quando os dados já estavam lançados no tapete
de um auto-ilusionismo que é o último e o mais funesto reflexo da colonização e do
colonialismo”
13
. Eduardo Lourenço continua: “tudo isto se passou [uma descolonização
impensada] como se não houvesse dificuldade de maior, nesta brutal indolência ou
incapacidade de prever os dias de amanhã, que parece ser uma das constante do
comportamento nacional”
14
. Com efeito, o “colonialismo diferente”
15
 que existia em
Portugal (o “colonialismo orgânico”) a todos vedava a real e normal dimensão
colonialista de Portugal, como se fosse invisível ou se assumisse inocente aos olhos da
História. Invisível para Portugal, mas bem visível para os povos sofredores do nosso
colonialismo e, neste sentido, Eduardo Lourenço prevê, em “Ressentimento e
colonização ou o complexo de Caliban”, publicado em 4 de Maio de 1976, após o auge
da descolonização, que a “forma mentis” da relação dos povos descolonizados para com
Portugal será durante longo tempo a do “ressentimento”, “labirinto de que ninguém sai
sem ajuda”
16
, em que só “a tragédia se estabelece (…) e só o sacrifício, como os Gregos
o souberam, restabelece a ponte entre o homem do ressentimento e aquele que é a sua
origem ou pretexto [o colonizado]”
17
. Acordámos tarde e violentamente para o processo
de descolonização e acordámos como se todo o processo tivesse sido pervertido pelos
povos africanos colonizados, esquecendo-nos – porque o nosso colonialismo nos vestia
                                               
12
13
14
15
16
 Idem, ibidem p. 114.
 Eduardo Lourenço, “Apelos aos retornados”, in O Fascismo Nunca Existiu, ed. cit., p. 186.
 Idem, ibidem.
 Idem, ibidem, p. 190.
 Eduardo Lourenço, “Ressentimento e colonização ou o complexo de Caliban”, in O Fascismo Nunca
Existiu, ed. cit., p. 241.
17
 Idem, ibidem, p. 242.
12
como uma segunda pele – da “incicatrizável ferida da negação absoluta de que [os
povos colonizados] foram objecto pelo facto mesmo da nossa colonização”
, que os
tornara povos não-existentes, por sós próprios rasurados da História. Neste sentido, a
nós, cabe-nos a compreensão sem lamentações do nosso passado histórico e aos povos
ex-colonizados o “ressentimento” de Caliban contra Próspero, seu criador, segundo o
drama A Tempestade, de Shakespeare.











Azenhas do Mar/Sintra,
Outubro de 2008.

Miguel Real, mestre em Estudos Portugueses, autor de "Eduardo Lourenço. Os Anos de
Formação (1949 - 1958)", "O Essencial sobre Eduardo Lourenço" (2003, Imprensa Nacional -
Casa da Moeda) e "Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa" (2008, Quidnovi). Professor do
ensino secundário.
                                               

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