segunda-feira, 20 de agosto de 2012

David Washbrook(DW) em conversa com o historiador português Diogo Ramada Curto(DRC)


in diálogos lusófonos
David Washbrook(DW) em conversa com o historiador português Diogo Ramada Curto(DRC)

O historiador Diogo Ramada Curto conversou com David Washbrook, um dos mais importantes historiadores da Índia. O inglês diz que o que lhe interessa é fazer história no presente. É dele a noção de que a dinâmica das castas favorece o aparecimento precoce do capitalismo na Índia.
David Washbrook, um dos mais profundos historiadores da Índia e da colonização imperial britânica, esteve em Lisboa para a conferência de encerramento do encontro da Associação Europeia de Estudos sobre a Ásia do Sul, que decorreu no ISCTE entre 25 e 28 de Julho.

Professor e investigador, estudou na Universidade de Cambridge, ensinou em Warwick, Harvard e Oxford. À beira da reforma, regressou ao Trinity College, onde se doutorara, para se poder dedicar exclusivamente à investigação. Prepara para publicação um livro, há muito esperado, sobre o Sul da Índia numa perspectiva de história global e também uma compilação dos seus artigos.

O conhecimento da sua obra pode ajudar a historiografia portuguesa a alargar os seus horizontes comparativos. Conforme argumentaram alguns dos participantes no encontro de Lisboa, a comparação entre regimes coloniais ou o recurso a olhares cruzados, desde que centrados num conhecimento local da Índia, renova os nossos modos de fazer história. Ora, só através da comparação com outros processos de expansão imperial, que teceram malhas de dominação a uma escala global, poderemos ultrapassar as leituras paroquiais e comemorativas do colonialismo português. Ao contrário, sem o confronto com outras historiografias, sem uma participação nos debates historiográficos por elas suscitados, corremos o risco de prolongar as interpretações da expansão imperial portuguesa meramente apostados em salvaguardar as suas características excepcionais.

Como historiador da Índia colonial britânica e elegendo como seu terreno de eleição a Índia do Sul, a começar pela denominada presidência de Madras, Washbrook tem contribuído de forma decisiva para três tipos de debates acerca dos modos de fazer história.

Em primeiro lugar, procurou fazer a história do império britânico sem perder de vista o quadro mais geral em que ele se inseriu, a saber, o do progresso do capitalismo, da modernização e de uma sociedade cada vez mais global. Essa preocupação foi acompanhada de uma perspectiva crítica e reflexiva e capaz de ter em conta a velha denúncia marxista perante as aspirações à universalidade do discurso do capitalismo europeu e ocidental - ou seja, nunca Washbrook derrapou no pecado de eurocentrismo.

Pelo contrário, a importância concedida ao modo como as elites e os poderes locais indianos colaboraram com os agentes do império colonial foi um dos seus principais laboratórios de análise. De igual modo, a atenção dada ao dinamismo dos grupos mercantis indianos, capazes de formar uma sociedade comercial e industrial, num período anterior ao da Revolução Industrial inglesa do século XVIII, destruíram a ideia de que o capitalismo foi uma mera construção europeia.

Depois, reencontrou na noção de casta uma das chaves para compreender as sociedades da Ásia do Sul. Claro que a sua reutilização da noção não pode ser confundida com a velha interpretação essencializada do conceito, que se inspirava nela para representar a Índia como uma sociedade estática na sua hierarquia, só abalada pela missão civilizadora ou exploratória do capitalismo britânico ou europeu. Tão-pouco a sua definição de casta reconhece que esta é uma simples construção dos poderes coloniais, logo, uma realidade imposta de cima que tendeu a inventar uma sociedade congelada no tempo e nas suas tradições. Para Washbrook, a casta resulta sem dúvida de uma tensão entre estruturas de estratificação existentes em qualquer sociedade e formas de auto-representação, mas está investida de um dinamismo permanente ao sabor dos conflitos que caracterizam as sociedades. Ora, é precisamente enquanto peça essencial de um enorme dinamismo que as castas indianas desenvolveram formas de especialização e de divisão do trabalho, que favoreceram de forma muito precoce o desenvolvimento do moderno capitalismo e da economia de mercado.

Em terceiro e último lugar, Washbrook sempre manifestou muitas dúvidas em relação às histórias mais fragmentadas do pós-modernismo, capazes de dar voz aos grupos mais marginalizados e de reconstituir na sua autonomia a cultura ou a economia moral dos subalternos. Porquê? Por considerar que tais modelos de análise histórica - fundados no individualismo metodológico, numa despolitizada separação do social dos domínios económicos, numa visão das relações sociais que é no fundo extremamente voluntarista - pouco ou nada têm de radical, subversivo ou emancipatório.

O encontro da Associação Europeia de Estudos sobre a Ásia do Sul, que decorreu no ISCTE entre 25 e 28 de Julho, em Lisboa com 400 participantes, muitos deles provenientes da Índia, do Paquistão e do Sri Lanka, os trabalhos da conferência decorreram sob a coordenação de Rosa Maria Perez. A qualidade alcançada pelas comunicações e o estimulante clima de debate fizeram com que muitos dos investigadores considerassem o encontro de Lisboa como um dos mais interessantes de todos até agora realizados.


 David Washbrook(DW) em conversa com o historiador português Diogo Ramada Curto(DRC) :
"As lutas da Índia actual guiaram-me nas investigações do século XVIII ao XX"
(DRC) Como foi possível a um historiador, que trabalhou toda a vida nas instituições mais consagradas do mundo académico anglo-americano, conservar viva a chama da inovação? É que, geralmente, o trabalho feito em instituições bem consolidadas tende mais à reprodução do que está feito e a servir a lógica de supostas escolas.
(DW) Penso que uma das formas de responder à questão se encontra no facto de ter sempre procurado situar os meus interesses para lá do campo mais restrito da história. Isto é, a interdisciplinaridade mobilizou-me. Por exemplo, a antropologia, que esteve bem representada no encontro de Lisboa por Chris Fuller e Jonathan Parry, e a literatura, nas análises de David Shulman, foram dois desses outros campos com os quais aprendi muito. Mas uma outra resposta à questão, porventura mais pertinente, diz respeito ao meu interesse em fazer história no presente. Ao contrário do que acontece com muitos historiadores, nunca procurei estudar o passado em si mesmo. O meu comprometimento com as lutas e os conflitos que a Índia coloca, na actualidade, guiaram-me sempre nas minhas investigações do século XVIII ao XX.

(DRC) Percebo. Mas não me parece que na sua obra resvale para uma espécie de ciência política...
(DW) De modo algum. A ciência política - com as suas preocupações excessivas de criação de modelos formais, com os seus chavões centrados exclusivamente no Ocidente (liberalismo, democracia, etc.) e com um modo de entendimento do político donde se tendem a excluir os conflitos - tem para mim pouca ou nenhuma capacidade analítica. Ela própria não consegue reconhecer as formas de representação que acontecem na Índia, onde existem índices de participação nas eleições que ultrapassam em muito o que sucede nas democracias ocidentais.

(DRC) De qualquer modo, o seu interesse pelas ciências sociais fez com que, desde o seu livro sobre a construção do Estado colonial britânico no Sul da Índia, houvesse um equilíbrio original entre conceptualização e análise empírica. Será que é esta uma das características essenciais da denominada Escola de Cambridge de história da Índia que representa?
(DW) Haveria muito a dizer acerca da existência de uma Escola de Cambridge. Esta parece-me ser mais uma entidade inventada por historiadores e intelectuais de Calcutá, ligados ao grupo de estudos sobre a subalternidade. Ora, da mesma forma que me parece redutor encerrar os historiadores de Cambridge numa escola, com características uniformes, também acho que a produção historiográfica sobre a Índia tem muitas outras dimensões. Por outras palavras, não reconheço a antinomia Cambridge contra Subalternos, nem me revejo no interior dessa oposição.

(DRC) Insisto: mas o leitor que está minimamente informado dos debates relativos à história da Índia colonial deixa-se muitas vezes tentar pela antinomia: a colaboração entre as elites locais e britânicas na construção de um Estado colonial, defendida pelos historiadores de Cambridge, em oposição às formas de resistência, mais ou menos dissimuladas, de uma história feita a partir de baixo, exploradas pelos membros dos "Subaltern Studies".
(DW) Pois é, conheço bem esse esquema, mas chamo a atenção para os múltiplos interesses que as histórias da Índia têm revelado e que põem em causa simples antinomias. Quatro áreas têm demonstrado particular dinamismo. Primeiro, a renovação dos estudos históricos e antropológicos sobre o sistema de castas tem revelado que estas, longe de traduzirem uma sociedade estática e hierárquica, são produto de uma configuração social extremamente dinâmica, capaz de se especializar, logo, de se modernizar economicamente, e dotada dos mecanismos de representação que canalizam a conflitualidade inerente a qualquer sociedade. Segundo, os estudos sobre a primeira modernidade, feitos em paralelo com as investigações sobre a história da China de Ken Pomeranz (que você vai publicar na colecção "História e Sociedade" das Edições 70), têm revelado o dinamismo em curso na Índia, no período anterior à criação do império colonial britânico e à Revolução Industrial inglesa. Em terceiro lugar, os estudos de história intelectual, muitos deles centrados no papel de grandes figuras, quebraram definitivamente a noção de que as ideias associadas à modernização teriam sido transferidas da Europa para o resto do Mundo. E, por último, o enorme dinamismo dos estudos de género, sobretudo em relação ao papel das mulheres, como bem exemplificam as investigações de Tanika Sarkar (que proferiu a conferência inaugural do encontro de Lisboa).

(DRC) Dado o enorme atraso português em estudos de género, quais as condições em que estes se têm desenvolvido em relação à Índia?
(DW) Uma análise dessas mesmas condições deveria começar por constatar que a intensificação de estudos sobre género corresponde a uma certa feminização da profissão. Na Índia, as famílias de classe média orientam para as áreas científicas e tecnológicas os seus filhos, permitindo apenas que algumas das filhas desenvolvam a sua vocação ou o seu gosto pela história. Esta tendência tem levado a que o ensino e a investigação sobre a Índia, tanto naquele imenso país, como nos principais campos universitários norte-americanos, se aproximem do seu público interessado nas questões das diferenças de género.

(DRC) No seu trabalho de campo na Índia, nas estadias em tantas universidades daquele país ou nos debates com colegas indianos, alguma vezes se sentiu desautorizado na sua condição de estrangeiro, ainda por cima representante do antigo poder colonial?
(DW) Não, nunca. Tanto mais que nasci depois da independência da Índia e, posso sem equívocos, dizer que também reivindico para mim uma posição de anticolonial.
(DRC) Desde o seu estudo mais monográfico sobre o governo colonial de Madras, ao seu interesse pelas grandes questões colocadas pela expansão colonial, orientadas sobretudo para desafiar ideias feitas acerca da modernização e do desenvolvimento do capitalismo, sem esquecer os interesses mais recentes pelas abordagens de uma história global, qual o fio condutor da sua obra?
(DW) Não sei se conseguirei responder à pergunta. O fio condutor do que fui escrevendo correspondeu muitas vezes a situações contingentes... Mas de uma coisa tenho a certeza: o facto de me ter dedicado ao estudo da Índia permitiu-me conviver com outras áreas disciplinares, porventura de forma mais intensa que muitos historiadores dedicados a campos mais especializados. Retomo, assim, a já referida ideia acerca da importância da interdisciplinaridade para o trabalho dos historiadores. Penso que foi com esta abertura que consegui conciliar análises situadas em diferentes escalas (do mais local ao mais global), com uma atenção tanto às perspectivas económicas e sociais como aos campos do político, da religião ou da produção intelectual; e articular interesses com uma forte base empírica com questões mais teóricas e conceptuais. Espero, pois, que o meu próximo livro sobre o Sul da Índia, numa perspectiva de longa duração, exemplifique bem todos os meus interesses cruzados - da Índia ao colonialismo, do recurso ao método comparativo a uma história global.

Fonte : http://static.publico.pt/pesoemedida/noticia.aspx?id=1557544&idCanal=548

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