quarta-feira, 1 de agosto de 2012

natália correia uma voz contra as opressões


Natália Correia: uma mulher contra as opressões

A mediocridade e o compadrio, o nepotismo e os malabarismos do poder, que começavam a surgir às claras, sem pudor, sem escrúpulo e sem vergonha, mereciam-lhe arrochadas verbais que não esqueciam, sequer, os seus próprios amigos.
Lembrei-me, não sei porquê, de Natália Correia, ao ouvir Passos Coelho dizer, num jantar com deputados do PSD, "as eleições que se lixem." O propósito do dito talvez fosse meritório, mas caiu mal. Claro que nem ele, nem nenhum político desejam que as "eleições se lixem." E a Natália veio-me à memória porque pensei o que diria ela, que gazetilha improvisaria sobre a extraordinária afirmação do primeiro-ministro.
Faz-nos falta e à sociedade portuguesa, a grande poetisa (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, 13. Setembro. 1923 - Lisboa, 16. Março. 1993). Cá em casa recordamo-la com frequência. A minha mulher e ela conversavam muito, trocavam ideias sobre o mundo, a família, e o que estava a acontecer. Ela gesticulante e em alta grita, previa negros dias para todos nós. A mediocridade e o compadrio, o nepotismo e os malabarismos do poder, que começavam a surgir às claras, sem pudor, sem escrúpulo e sem vergonha, mereciam-lhe arrochadas verbais que não esqueciam, sequer, os seus próprios amigos.
Estive com ela e com o marido, Dórdio Guimarães, poucas horas antes da sua morte. Eu frequentava o Botequim, na Graça, onde se jantava, bebia, conversava, cantava, dizia atoardas e recitava poesia até altas horas. Foi, o Botequim, a última tertúlia literária e política, animada por ela e pelo seu extraordinário talento. O Manuel da Fonseca, que tinha casa na Penha de França, telefonava-me, eu morava mais abaixo, em Alfama, e encontrávamo-nos no Botequim. Pouca ou nenhuma ideia se faz hoje do alvoroço que se vivia naquele espaço de cordialidade, de crítica e de mal-dizer.
Anda muito esquecida, a Natália, talvez porque ainda hoje esteja a pagar o compromisso que fizera com a verdade, o gosto de dizer o que pensava fosse o que fosse e a quem quer que fosse, e o fascínio de ser livre até aos limites de tudo. Que pensaria ela deste tempo lúgubre e infausto, que nos está a destruir lentamente e a amolgar a nossa alma?, que pensaria?
É impressionante o volume da bibliografia desta mulher invulgar, que quis sempre ter uma palavra a dizer sobre tudo o que concernia à nossa sociedade. Foi ela que estimulou os amores de Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis. É um episódio ainda por contar e esclarecer. Ela acreditava na força imperiosa do amor e isso talvez justificasse tudo, ou muito do seu comportamento e das suas acções. Relacionava-se com pessoas de todos os quadrantes políticos e de todos os azimutes estéticos. Dizia que gostava de revoluções e dos surrealistas. O conformismo e a quietude de espírito não eram, decididamente, as notas do seu piano. E fora uma mulher de rara beleza, que a idade não aniquilou. Era amiga de Mário Soares, a quem chamava "le roi soleil", soltando enormes gargalhadas. A sátira que consagrou ao deputado do CDS, João Morgado, o qual afirmara, no Parlamento, em 5 de Abril de 1982, entender a prática do sexo como meio de procriação, e nada mais, tornou-se um clássico da mordacidade e do vitupério. Eis o que escreveu Natália Correia:
Já que o coito, diz Morgado,
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino,
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção
ficou capado o Morgado.
Era um regalo ouvi-la falar do mundo e dos homens. Nunca as palavras da Natália eram destituídas de significado nem vazias de sentido. E usava-as com sabedoria, entendimento e fulgor. Certa ocasião, a um conhecido crítico e ensaísta que a cumprimentara reverente, depois de quase a insultar num texto inclassificável, a Natália sacudiu-o pelas abas do casaco e gritou-lhe: "Um verme nunca saúda uma senhora!"
Envolveu-se em movimentos e conspirações contra o fascismo; esteve sempre presente onde a sua voz e o seu talento eram precisos; foi condenada a três anos e meio de prisão, com pena suspensa, pela publicação da "Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" (1966); e processada pela responsabilidade editorial das "Novas cartas Portuguesas", de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta.
Vejam só ao que as extraordinárias palavras de Pedro Passos Coelho conduziram: à memória de uma mulher incomum, que nunca se calou nem cedeu a vez. Uma mulher que a cultura dominante e o esquecimento deliberado de muitos intelectuais empurraram para o limbo. Pessoalmente, lembro-a com saudade e emoção.
Baptista Bastos, jornalista e escritor português, assina coluna no jornal Negócios.

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