Conversa
Os ilhéus são um
bocado bazofeiros
talvez por viverem
rodeados de mar
O escritor picopedrense conversa com Eduardo Brum sobre a sua obra, os Açores, Coimbra, a ilha do Pico, S. Miguel, o liceu de Ponta Delgada, as humilhações da infância e da adolescência...
A tua obra “Raiz Comovida” não gerou consenso quando foi inicialmente publicada…
Para além da surpresa de ter utilizado, como escrita literária, o léxico da Ilha, houve quem se entretivesse a discutir, teoricamente, se o livro caía no domínio do romance ou não. A chamada discussão sobre o sexo dos anjos… Havia dúvidas quanto à classificação clássica, que distingue entre romance, novela e conto. Gaspar Simões, o crítico mais semanal da imprensa portuguesa, escreveu que se tratava de um colar de pérolas ao qual faltava o fio! (Risos). Foi um grande elogio, sobretudo porque, além de vir de quem vinha, o crítico debruçava-se sobre outros dois escritores micaelenses, Dinis da Luz e Manuel Ferreira, e a apreciação sobre ambos não era muito favorável. A partir daí gerou-se a dúvida. E eu passei a fintar os críticos: romance ou o que lhe queiram chamar… novela em espiral… conto a que se acrescenta um ponto, etc.
Incomodavam-te as classificações?
As classificações não me incomodavam, porque já se não usam, foi chão que já deu muitas uvas. Já reparaste quão estúpido e difícil se torna distinguir entre conto e novela? Pelo número de páginas? Nunca soube nem curo de saber. No que me diz respeito, essa classificação ou destrinça que o crítico achava por bem fazer ocupava muito espaço antes de entrar no livro propriamente dito…
Quando olhas para trás, hoje, fazes um “balanço” da tua escrita?
Balanço em que sentido?
Que vês na tua escrita observando de longe?
Que vejo na minha escrita? Sou a pessoa menos indicada para discretear sobre este assunto. Normalmente, o escritor é o que sabe menos sobre a sua obra, por mais paradoxal que possa parecer... Mas, se insistes, vejo sobretudo narrativas e outras lérias sem classificação, além de uma poesia péssima, de que não me envergonho por ter sido, como qualquer outro dos meus livros, arrancada de mim… Só que o meu modo de expressão não era esse. Há quem diga que a minha prosa tem mais poesia que os versos. Falando há dias com o tradutor italiano de “Passageiro em Trânsito”, livro tão mal-amado e zurzido por uma luminária da crítica micaelense, dizia-me ele, modéstia à parte, que o livro parece-lhe que tem mais a ver com a poesia do que com a prosa…
És perfeccionista?
Não tenho pejo em afirmar que sou um grande perfeccionista ou narcisista, creio que tanto faz. Escrevo como quem pratica onanismo... Escrevo, emendo, corto, modifico, acrescento, até ficar com a cabeça num labirinto ou num “lavarinto”, como se diz na ilha… Então, quando manuscrevia, era o cabo dos trabalhos, porque não conseguia ver, no papel, emendas: tinha de reescrever tudo e, na reescrita, ia alterando, podando, uma verdadeira enxaqueca daquelas que se sofre durante o pós-guerra…
Corrigir é uma forma de bem escrever…
Pode não ser. Às vezes perde-se a frescura e o encanto das primeiras palavras que o escritor vai descobrindo… Só alguém alheio à criação poderá ver a diferença. O escritor, ao substituir, já está cansado daquelas palavras, podendo muito bem estar a substituí-las por outras com menos frescura… Miguel Torga, na ânsia de aperfeiçoar a sua escrita até ao osso, foi muitas vezes acusado disso. O meu mais recente livro, “Catarse”, foi terminado em Janeiro de 2011, mas em Março ainda estava a ser reescrito, o que não significa que seja uma obra-prima de escrita…
Que vês, então, olhando para trás?
Vejo-me viajante de uma narrativa interior, a viagem mais autêntica que o escritor pode empreender.
Mas há um discurso açoriano na tua escrita?
Com certeza. Um discurso micaelense, talvez seja mais correcto dizer. Açoriano é um adjectivo que não diz nada ou diz muito pouco, uma vez que temos nove realidades distintas no nosso Arquipélago. Não se fala açoriano! Fala-se micaelense, terceirense, etc.. Não se nasce numa ilha em vão. Há uma marca de origem. E é essa marca que vai entroncar na escrita portuguesa dos séculos XVI e XVII. Veja-se os termos “chamatão” e “pêloei”, discreto, no sentido de inteligente (provém do verbo discernir) entre muitíssimos outros, que já caíram em desuso na matriz, mas que ainda se utilizam nos locais mais afastados dos grandes centros, onde a língua se vai adulterando... Agora, com a rapidez dos meios de comunicação, houve uma espécie de nivelamento por baixo, o que leva muita gente a repetir as asneiras linguísticas que os locutores, os políticos e outros figurões vai debitando sem nenhum respeito pela língua, a nossa Pátria, como bem disse Fernando Pessoa.
A ilha de S. Miguel tem um discurso rico?…
O mais rico de todas as ilhas! Alentejano, transmontano… A nossa pronúncia é que nos trai. Comem-se as sílabas, e não raro não se entende. Mas o discurso escrito é rico no léxico e em certos achados linguísticos. Daí que a pronúncia não se pode nem deve confundir com o léxico, que é riquíssimo.
Há uma cultura açoriana bastante estendida no tempo que penetra muito na cultura portuguesa e que não é reconhecida como tal…
Açoriana, portuguesa… Não concordo com a distinção. Acho que a cultura portuguesa é que penetrou na nossa. É natural que tivesse havido muitas adaptações derivadas do meio, do clima, da actividade sísmica (veja-se o Espírito Santo, que se mantém vivo em todas as ilhas, enquanto na matriz de onde proveio há apenas resquícios), e foi essa actividade sísmica que fez perdurar, no tempo, o culto do Espírito Santo.
O estereótipo da cultura açoriana está muito associado a nomes como os de Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Correia…
Mas a cultura açoriana não se resume a esses nomes. Haverá, porventura, alguma coisa que lembre a Ilha na obra de Antero? Em Natália Correia, só muito no fim, porque, antes, quando ela deslumbrava toda a Lisboa do seu tempo, não queria, não gostava que lhe lembrassem a sua origem ilhoa. Respondia que tinha daqui saído muito novinha (cinco anos) e não se considerava filha cultural da Ilha onde nasceu… Mais tarde, era chique ser das ilhas, escrever livros ou poemas com fundo ilhéu, mesmo que fosse a martelo, isto é, de fora para dentro. A ilha não fazia parte do sangue. Nemésio, Roberto Mesquita, esses sim. Espelham o viver rodeado de mar por todos os lados… Aqui há uns anos, houve um concurso literário da Secretaria Regional da Cultura, a que podiam concorrer residentes, não residentes, mas cá nascidos, e todos os que falavam a Língua Portuguesa que nunca cá viveram (ridículo!). E mais ridículo ainda era o facto de para os residentes e os açorianos que viviam noutras partes o tema ser livre (jogos florais). Para os não naturais, o fundo das obras tinha de reflectir a ambiência das ilhas (magnífico!) Ganhou, nesse ano, uma escritora coimbrã, com um romance de setenta páginas, sendo o prémio de oitocentos mil escudos, mais de mil por página. Li o livro, tenho-o aqui à minha frente: uma “novelada” (intitula-se novelos), escrito a partir de folhetos turísticos para que houvesse cheirinho a hortênsia, a bosta de vaca, a “bedume” de polpa e a pasto… E o júri composto por altas pensâncias de Lisboa caiu na esparrela como canarinho…
A tua escrita veio “desenterrar” o discurso da cultura açoriana mais profunda…
Não desenterrei coisíssima nenhuma, não fiz investigação linguística e, se o fizesse, a naturalidade da escrita ia-se... Tratava-se de uma questão estética. Eu falava assim, ouvia falar do mesmo modo, e queria transformar o nosso léxico em linguagem literária… Se o consegui, ou não, não me compete dizer.
Se não desenterraste, acabaste por explorar, potenciar…
Como me interesso muito pela Língua Portuguesa, procurava saber por que é que se diz isto, por que é que se diz aquilo… e verifiquei que boa parte do que dizemos em S. Miguel é português arcaico.
A tua escrita tornou-se uma espécie de “ponte” entre vários tempos da cultura portuguesa…
“Raiz Comovida” era incompreensível para Gaspar Simões, mas em regiões como Bragança, Trás-os-Montes em geral, Beira Alta, há pessoas que o entendem e utilizam muitos desses termos incompreensíveis para os salões lisboetas, onde se pronuncia “insêto”, e outras estupidezes... Repara no termo “pitafe”, que se usa também no Alentejo (a nossa matriz linguística) e se aplica a qualquer coisa que tem defeito – esta sopa tem “pitafe”… Provém do termo “epitáfio”. Os açorianos levaram a Língua Portuguesa para o Brasil (a primeira leva de emigrantes que saiu das nossas ilhas para o Brasil data de 1677). No Brasil, fala-se um Português por vezes muito mais correcto do que o que lhe deu origem, sobretudo nos particípios passados dos verbos e na abertura das vogais. Camões recitado por um declamador brasileiro é mais musical, até a métrica fica mais marcada… Não admira. Ficou ilhado, sem receber influências, tal como as nossas ilhas, Trás-os-Montes, Alentejo… Se, por exemplo, quisermos ouvir falar como se falava há cinquenta anos no Pico da Pedra e em Rabo de Peixe só temos de nos deslocar a Fall River, nos EUA. As pessoas não se integraram na cultura norte-americana, formaram um grupo à parte, e congelaram a língua que da ilha trouxeram. Agora o cenário está a mudar por causa da RTP Internacional. Todavia, não advogo que todos falem da mesma maneira. O que dá profundidade cultural a um país é a diversidade.
Há todo um peso cultural que transita para a tua escrita…
Nunca tive pejo de assumir a minha origem de ilhéu micaelense, ao contrário de alguns outros escritores que, só depois da “fundação” da chamada literatura açoriana, principiaram a ter orgulho na sua origem, porque só assim poderiam ficar no retrato de uma novel literatura.
De certa maneira, pareces ser a literatura em forma de pessoa… Ou se a literatura tivesse uma forma humana poderia ser a tua forma…
Não exageremos. Sou um escritor, mais nada. Há um mecanismo de criação que desconhecemos ou que desconheço. Quando estou a escrever, vêm-me à cabeça coisas que em estado de vigília não surgiriam.
É o discurso do inconsciente… discurso do irracional.
É preciso que haja um pretexto para que o inconsciente se manifeste ou exploda.
Qual o teu pretexto?
A guerra, a infância, a adolescência, a ilha, a freguesia onde fui parido, as pessoas que me marcaram, negativa e positivamente, o liceu que, durante nove anos, me marcou e me deixou algumas alegrias e muitas tristezas e amarguras…
O liceu daquele tempo foi uma humilhação?
No liceu, tive duas fases: a da humilhação e a da glória, embora esta última fosse falsa. Se não tivesse ido estudar para Coimbra e tivesse acreditado no que me diziam alguns dos meus mestres de Português, teria ficado convencido de que era um sábio. Ficar na ilha é por vezes uma maneira de julgarmos que somos os maiores do planeta e arredores… Na minha freguesia, fui mesmo humilhado em certas fases da minha vida. Por exemplo, quando chumbei dois anos seguidos no antigo terceiro ano do Liceu. Tuteavam-me quando passava no caminho, mas, quando me tornei bom aluno, nunca ninguém teve o alvedrio de me dar uma palavra de estímulo… Santa freguesia!
E Coimbra?
Em Coimbra, aprendi muito dentro e mais ainda fora da Universidade… Aprendi também a humildade, que era uma atitude que não tinha. Não admira. Era ilhéu, e os ilhéus, como se sabe, sabem tudo... Quando lá cheguei, na companhia de Viriato Madeira, dissemos um ao outro: “Mas nós não sabemos nada! Esta gente fala de outra maneira”. E não era uma questão de sotaque. Vi jovens que avançavam para uma Assembleia Magna e que abordavam os assuntos de forma desassombrada e assombrosa, num discurso que se podia escrever… Manuel Alegre era um deles! O choque foi tal que, a certa altura, quis mesmo vir embora e escrevi uma carta à família com esse intuito. Se fosse hoje, tinham-me respondido: “Vem, querido filho, que aqui estás no teu cantinho, sossegado, fora dessas babilónias de pecado…”
É como se viver na ilha limitasse a capacidade de reflexão ou de expressão?
Não é só isso. É que todos os ilhéus são um bocado bazofeiros, talvez por viverem rodeados de mar. Julgam que o centro do mundo se instalou ou passa pelo seu umbigo... Resolvem tudo… sabem tudo. Até há quem diga: “Se eu fosse primeiro-ministro, punha este país de pé num zape…”, ao que apetece responder: “Muito bem falas, Manel, mas como irás pôr o país em pé, se nem sabes governar a tua casa?”
Há muita falta de humildade…
Com certeza. E o medo de ser frontal. Quem porventura o é pode sofrer alguns amargos de boca… Ser crítico é ser má-língua, ter um feitio insuportável, intransigente, casmurro, explosivo, e tudo de mau que existe debaixo da rota do Sol… Tal como eu, como dizem Onésimo, Daniel de Sá, e outros ilustres intelectuais da nossa praça, o Campo de São Francisco… Custa-me a entender que alguns intelectuais vão ao ponto de criticar quem tem coragem de assumir certas posições diferentes do politicamente correcto. Só conseguem falar por trás, é mais seguro, dá milhões, é-se bem-visto pelas autoridades culturais, dá viagens e outras benesses…
Não será que as pessoas estão “formatadas” para funcionarem segundo determinadas regras, já que nos meios pequenos a noção do outro é muito mais forte do que nos meios maiores? Nas ilhas, há uma noção de vizinhança muito acentuada. Vai-se ao café e o empregado diz-nos: “Que vai ser, vizinho?...”
A vizindade sempre foi muito importante. Ser vizinho é, por vezes, pertencer à mesma família, mas se há malquerenças, é o diabo entre as couves. Já diz o povo: “Antes ter um mau ano que um mau vizinho”.
A proximidade do outro tem muita influência no dia-a-dia…
É verdade. Mas, por vezes, caímos nos estereótipos. Por vezes perguntam-nos: “Como está, como tem passado? Muito bem, obrigado”. Mas se a pergunta for – “estás bem?” – e a resposta – “Não, estou muito mal”, a reacção que obtenho é: “Isso não é nada, isso passa…”, e a pessoa que indagou dá meia volta e vai-se embora. Bebe uns copos, vais ver que ficas rijo! A resposta esperada, sacramental, seria: “Estou muito bem, obrigado!” Ora, isto não é nada, isto não é convivência.
Tu não és assim?
Não sou e por isso apanho cada dissabor…
Essa tua fuga à regra cola-te a uma imagem de conflito e de polémica…
E dizem que perco mais do que ganho com estas coisas. Ganhar o quê? O apreço de medíocres? Tenho escrito em jornais sobre assuntos com os quais discordo. Na ilha do Pico houve pessoas que deixaram de falar comigo por essa razão, algumas delas por medo. É que naquela ilha ainda se fala da justiça da noite…
Como surge o Pico na tua vida?
Eu conhecia o Pico muito mal (fui lá pela primeira vez, durante uma simples manhã, na viagem de finalistas do 7º ano do liceu). Em 1996, juntei, em Coimbra, um grupo de 29 pessoas e combinámos ir ao Pico por 15 dias: sete dias no Pico, dois na Terceira e os restantes em São Miguel. Principiámos pelo grupo central porque tinha a minha fisgada: quando chegássemos a São Miguel seria a apoteose! Quando lá chegámos, fomos percorrer a Ilha e ver os locais mais consabidos… Todos gostavam muito, mas logo a seguir comentavam: “É muito bonito… mas o Pico…”. Um dizia-o, o outro repetia-o e eu próprio dei por mim também a dizer: “É muito belo, mas o Pico…”. Há qualquer coisa naquela ilha que nos atrai…
É verdade.
Até pode ser magnético. Numa noite limpa, as estrelas brilham mais sobre o pico do Pico. Decidi fazer lá uma casa. Ali, eu sentia o arquipélago. É que a ilha em frente, segundo Raul Brandão, é muito importante. Dá-nos a sensação de que há mais mundo, de que não estamos desacompanhados…
É uma sensação completamente diferente de viver em S. Miguel…
É verdade. Para mim, a ilha em frente era a Serra de Água de Pau… Santa Maria só muito raramente se mostrava como uma sombra no horizonte, e quando assim acontecia, tínhamos chuva pela certa. Mas tive sorte. Quando entrei para o liceu, em 1951, as camionetas da Ribeira Grande eram bastante irregulares e avariavam em quase todas as viagens. E então ficou decidido que eu ficaria alojado numa pensão, em Ponta Delgada. Nessa pensão, tive o privilégio de encontrar jovens estudantes de todas as ilhas, mais velhos do que eu, e passei a dar-me conta da geografia, pronúncias e maneiras de pensar diferentes. Só conhecias as ilhas pelo mapa…
Não te esqueças de que estávamos a falar da tua decisão de fazer uma casa no Pico…
Ah, pois. Arranjei um terreno, em S. Miguel Arcanjo, de onde se via a ilha de S. Jorge de ponta a ponta! Era um pasto. Perguntei ao vizinho se a propriedade estava para venda. “Não sei”, respondeu ele. “Isso é de um senhor que está no Canadá. Mas, se quiser saber, pode falar com a cunhada, que mora aqui mais acima. É procuradora e contacta com ele todas as semanas”. E assim fiz. Dias depois, soube que o proprietário estava na disposição de vender o terreno. Aceitei o preço, não regateei, e fechei negócio. Disseram-me que era muito caro, mas eu não quis saber. Comecei logo a fazer a casa. À moda antiga do Pico, de acordo com as leis anti-sísmicas
Miguel Torga é importante na tua vida…
É, com certeza. Tem uma escrita telúrica, na qual arranca às pedras de Trás-os-Montes aquela concisão, aquela secura… aquele não desperdício de palavras.
Em tempos, li bastante da sua obra, mas hoje não o voltaria a fazer…
Uma pessoa também não pode estar sempre agarrada ao mesmo escritor… O que é preciso é saber se a nova geração o lê ou não.
Eu deixei de ler o Torga, mas não deixei de ler o Eça…
Torga reflecte na sua escrita um Portugal que, em parte, já não há, mas a mentalidade do povo continua: os seus vícios, defeitos, manhas, esperteza saloia, comuns a todos os povos. Por isso, a sua obra continua válida (pelo menos para mim) e universal.
Torga não deu o salto para a contemporaneidade…
Não sei muito bem o que é a modernidade. Badala-se tanto sobre ela, que acabo confundido. Será a modernidade sinónimo de tecnologia avançada, comunicações instantâneas? E o homem, como se encontra nos seus instintos? Teria evoluído a par de toda essa parafernália tecnológica? Ou terá ficado, no íntimo, igual ao seu antepassado das cavernas? Mata-se hoje em dia com a mesma crueldade com que se fazia há milhares de anos. Talvez haja mais requinte derivado da modernidade e das suas consequências. É evidente que a escrita e a arte em geral devem acompanhar esse desenvolvimento. Mas, se reflectem o Homem na sua humanidade, os temas são sempre os mesmos: a morte, o amor, o ódio, e tudo o resto que o ser humano carrega dentro de si desde que apareceu à face da Terra…
Hoje, prefiro ler um livro teu do que um livro do Torga. Tens uma capacidade de abertura que ele não tem.
Não sei aonde pôr as palavras com essa tua afirmação! Torga é Torga e eu, à sua ilharga, sou um pigmeu. Convivi com o Torga durante um ano e tal. Todos os dias ia buscá-lo ao consultório para irmos dar uma volta por Coimbra ou arredores. “Ó Cristóvão, podemos ir ali a cima?” Eu percebia o que ele queria. “Vamos ali àquele miradouro…”. Lá íamos. Tinha com certeza um poema a pedir para nascer… Vivia única e exclusivamente para a literatura. Transformava tudo em literatura. Disse à mulher em vésperas do casamento: “Vou procurar ser um bom marido, mas digo-te com toda a franqueza – em qualquer circunstância, troco-te por um verso!” Disse-o e escreveu-o. Esta era a sua têmpera. Quis ser escritor por vontade e fazia da escrita um sacerdócio laico. Um dia, contei-lhe certos passos da minha vida. Ouviu-me com muita atenção. Quando terminei, disse-me: “Por que não escreve tudo o que me contou? Talvez desse uma espécie de “Criação do Mundo…” Salvo as devidas proporções, digo agora eu.
Durante vários anos, Torga chegou a ser candidato ao Nobel…
Estou muito contente por termos um Nobel da Literatura português, mas penso, sinceramente, que o prémio tinha ficado muito mais bem entregue a Miguel Torga do que a Saramago. A sua escrita tem muito lugar-comum…
Saramago é um lugar-comum…
Pois…
Terminemos, voltando à terra onde nasceste: que representam os Açores, hoje, para ti?
Os Açores, para mim, hoje… são uma memória afectiva. Sou um misto de Açores e de Coimbra, embora eu não queira nem consiga distinguir entre ambos. Quando uma pessoa sai da sua terra desenraíza-se…
Deixa de ter pátria…
Passa a ter raízes aéreas. Perde o chão. E nunca está bem em parte nenhuma. Agora, estou mais calmo, mas no tempo de estudante, quando estava de férias em São Miguel, cheguei a voltar mais cedo para Coimbra. Todavia, uma vez lá chegado, arrependia-me! Havia uma dualidade, um conflito interior. Mas houve uma coisa interessante que aconteceu comigo: vim a São Miguel em 1994 e não fui ao Pico da Pedra. Nessa altura, senti-me muito melhor na ilha.
O Pico da Pedra era uma opressão…
Exactamente. A causa do meu mal-estar era o Pico da Pedra da minha infância e da minha adolescência. Comparando com a actualidade, eu diria que o Pico da Pedra tinha os seus talibãs! Ir estudar para Coimbra foi a oportunidade que tive para me desligar de tudo isso.
CRISTÓVÃO DE AGUIAR
Escritor
Natural de S. Miguel, residente em Coimbra e Pico
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