A memória inventada num tempo de guerra
/Vamberto Freitas
África Frente e Verso, os poemas de Urbano Bettencourt retirados da sua vivência antes, durante e depois da guerra colonial (Guiné-Bissau), e acabado se sair, contém alguma da mais subtil, fina e irónica escrita alguma vez produzida entre nós, e falo aqui na literatura portuguesa em geral que dessa experiência brotou abundantemente durante as décadas recentes. É certo que alguns destes poemas e prosa (poética, sempre) já tinham circulado noutros livros seus e nalgumas das mais conhecidas antologias nacionais, mas a verdade é que agora reunidos em sequência e por ordem cronológica resultam não só em brilhantes instantes memorialistas desse conturbado tempo vivido e sobretudo sofrido, mas sim num grande livro que passa a requerer um espaço destacado nas nossas estantes, ao lado dos romances sobre a mesma temática escritos por José Martins Garcia, João de Melo, Álamo Oliveira e Cristóvão de Aguiar. Note-se que falo aqui, propositadamente, só de autores açorianos, pois foram eles alguns dos primeiros escritores do nosso país que tiveram a coragem e a arte de transfigurar, com toda a originalidade formal e temática, os anos de violência e miséria por eles próprios vividos em várias frentes de combate, com os quais pouco se identificavam como cidadãos; eram, pelo menos na sua ficção e poética-outra, os que iam quase sempre com a missão de matar, ou pelo menos travar, o outro. Ainda hoje me é difícil imaginá-los de G3 na mão, mas também noutros países aconteceria o mesmo, especialmente nos EUA com a longa passagem nada menos trágica pelo Vietname. Se existe uma farta “literatura de guerra” só quem a viveu seria capaz de a criar; qualquer outro escritor soaria falso e demasiado dramático na reinvenção da mais extrema contingência humana, que é, uma vez mais, matar e morrer com toda a “legalidade” em nome de um Estado, ou por causas abstractas quando não de todo injustas, proclamadas em certos períodos históricos pelas classes dominantes. Resta-nos, como que por obrigação de cidadania nada menos do que pelo gosto intelectual e artístico, lê-los como quem olha espantado e em êxtase a incomparável Guernica de Pablo Picasso. Nem sequer a fealdade absoluta e a mentira assassina resistem à beleza da arte, pura ou denunciadora.
Relembra-nos Urbano Bettencourt em Voltando atrás, a nota introdutória de África Frente e Verso, que estes poemas e narrativas surgiram após a publicação do seu primeiro livro, raiz de mágoa, publicado em 1972, assim como deveremos saber que nessa altura já andara ele na recruta em Mafra, com a guerra ensombrando esses dias de toda uma geração, “os fantasmas”, como diz, “de uma geração aflita”. Cada poema, cada outro texto de prosa-poética, alguns deles já escritos na frente de combate de 1972 a 1974, fala não necessariamente do pavor da guerra e da ideologia que a ordenava e sustentava, mas sim da solidão, dos medos e da consciência da futilidade que é sair de uma ilha pobre para negar a outro povo o seu direito à terra e à vida. Ao ler estes poemas, não nos lembramos nem nos temos de lembrar da contínua luta pela liberdade e dignidade daquele povo: a injustiça torna-se numa violência muito mais dolorosa da que poderá atingir o corpo, e pôr fim à vida, é a violação in extremis do espírito ou do “coração humano”, como escreveria outro grande escritor de guerra do século passado, William Faulkner, “em conflito consigo próprio”. Eis alguns versos do poema de abertura da primeira sequência: arquipélago de desejos massacrados/aqui teu corpo antegozado/rio de promessas e viagens. Mais adiante, no texto poético “Da ilha carn(av)al”, escrito na Guiné em 1973, o autor regressa a esse sentimento de dor e raiva, agora tomando outra fala e forma. Não restam dúvidas sobre a quem o poeta se dirige nessas palavras: estava numa guerra sem esquecer a chamada frente interna. Creio ser este o texto que domina ou dá o tom a todas as outras palavras em África Frente e Verso, o próprio título do livro introduz essa dualidade complexa de missão e angústia de pertença na terra distante, o seu berço de nascença — e igualmente terra “ocupada”.
“É difícil construir uma ilha com portos de chegada (em vez de esgotos) aonde os barcos regressem sempre, cheios de mãos e corpos em movimento pelas baías dentro, como quem nunca partiu definitivamente os laços que o prendem aos vulcões vivos e explodindo providencialmente quando se torna necessário defender a ilha dos corsários e dos vagabundos, até porque a ilha é por definição este pedaço de lava que bebeu o sal e o sol sem se curvar ou engravidar, e se algum dia se houver de fazer o elogio fúnebre da ilha bastará dizer que resistiu enquanto pôde, com a certeza de que a única filosofia válida é não acreditar em filosofias e para além de tudo amar as coisas até ao fim do prazer e do sabor, como quem sabe que há um dia para tudo ser destruído e então a ilha há-de ser lentamente violada pelo sexo dos aldrabões e dos aventureiros sem escrúpulos…”
Belo momento este em que Urbano Bettencourt decidiu juntar alguma da sua mais significativa escrita a partir do início da sua carreira literária até dias bem recentes, e seguindo quase de imediato Que Paisagem Apagarás. Do humor por vezes abertamente sarcástico e da fina ironia que sempre caracterizaram em primeiro plano toda a sua vasta obra em volta das questões identitárias prementes, regressamos agora ao combate intelectual dentro e fora do nosso próprio país, regressamos com a força inata do escritor que nada esquece e nada perdoa, um escritor cuja fase combativa em nada retira a beleza linguística com que elabora cada poema ou texto — mesmo ensaístico, o outro campo onde sempre se sentiu à vontade, e contribuindo exemplarmente para o esclarecimento da literatura saída dos Açores ao longo dos séculos. Muito pelo contrário, esta é a hora certíssima para reavivar a memória do tempo vivido entre o fogo e a esperança, entre a denúncia e a reafirmação de como perdurou dignamente um povo então acossado pelas mais desavergonhadas forças no seu país, seguido tudo de outra prosa e versos bem mais serenos, mas nada menos acutilantes na desmontagem crítica inerentes às melhores páginas literárias, particularmente numa cultura como a nossa, ainda e sempre profundamente inundada pela beatice e hipocrisia sem limites das velhas e novas classes que nunca deixaram de dirigir a sua sociedade quase exclusivamente em proveito próprio – como redescobrem nos nossos dias outras gerações também entaladas entre o Nada e o Nada. Neste sentido, o texto verdadeiramente antológico que é “Noite”, que relembra um camarada tombado em combate, contém em si toda a verdade de como fomos e somos.
“…Vais regressar a um país de bufos e beatas. Uns vão querer saber como anda a pátria por estes lados. As outras hão-de perguntar-te se os pretos vão à missa e se deixaste algum filho atrás. Aqueles poucos da tua idade que escaparam a África e à América farão, um dia, a pergunta desde sempre fisgada, ‘E as pretas’? Vais dizer o quê? Onde começarás a mentir para comprar o teu sossego? Quando precisares de fugir, talvez o regresso a este tempo seja o teu último refúgio, a forma de proteger o espaço íntimo a que tens direito.”
África Frente e Verso era o livro de Urbano Bettencourt que (nos) faltava, despeja força e sangue, raiva e amor numa consistente e volumosa obra que no seu todo me parece um clarão que ilumina como poucas toda uma sociedade, e a (pouca) sorte de sucessivas gerações. Faz parte de uma literatura cuja arte maior tem sido sempre a coragem de desconstruir os meandros submersos da nossa sociedade, ante as forças mais arcaicas que até há poucos anos nos dominaram, essas que apontam sempre o estrangeiro para quem não estava ou está satisfeito, ou não conseguia nem consegue meter-se nos seus espertíssimos esquemas de enriquecimento, ou sequer numa vida de mera sobrevivência quieta e legítima. Poderá ser que a poesia e prosa deste autor não patenteie ordinariamente “ideologias”. Será a sua serenidade e hábeis recursos literários que primeiro nos fazem admirar a sua beleza e originalidade – e só depois digerir as suas ideias. Qualquer leitor mais atento irá inevitavelmente além do puro prazer do texto. O resto está escondido no subtexto, tão actuante como a palavra a preto e branco.
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