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Catarina de Albuquerque: jurista portuguesa presidiu à elaboração do novo Tratado dos Direitos HumanosNo dia 4 de Abril deste ano, quando o texto do Protocolo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais foi aprovado em Genebra - após quatro anos de intensas negociações - Catarina de Albuquerque "estava nas nuvens". Diz que andou assim, "feliz", durante um mês, apesar de saber que aquele dia, foi apenas o princípio. A jurista portuguesa tinha todas as razões para se sentir realizada: foi ela quem presidiu o grupo de trabalho que redigiu o Protocolo, um grupo formado por representantes dos quase 200 Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), além de ONG’s e de organizações internacionais. O documento, que será submetido este mês à aprovação do Conselho dos Direitos Humanos, em Genebra, e posteriormente junto da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, é, na realidade, um novo Tratado de Direitos Humanos que passará a permitir aos cidadãos de todo o mundo apresentarem queixas à ONU em casos de alegadas violações de direitos fundamentais, como o direito ao trabalho, à alimentação, à saúde, à água, entre outros. O processo, que foi durante quatro anos liderado pela jurista portuguesa, nasceu dapersistência de um país que é uma referência na área dos direitos humanos, no cenário internacional: Portugal…
Portugal é uma referência na área dos direitos económicos, sociais e culturais? Foi Portugal que avançou com este processo. Foi uma questão de persistência, de «teimosia», mas também de pessoas. Começou com o embaixador português junto das Nações Unidas em Genebra, o embaixador Costa Lobo, que tinha a Ana Gomes como seu braço direito na área dos direitos humanos. Foi aí que o processo começou, nos anos 80, quando aconteceu a Perestroika, a queda do Muro de Berlim, quando os países da Europa de Leste começaram a desinvestir nos direitos económicos, sociais e culturais. Acho que o raciocínio do embaixador Costa Lobo era «para que é que interessam os direitos civis e políticos, se eu não tenho o que comer?». E foi aí que se começou este trabalho de formiguinha: de levar à Comissão dos Direitos Humanos, uma resolução sobre a protecção dos direitos económicos, sociais e culturais. Foi um trabalho de pessoas e depois, o testemunho foi sendo passado. O embaixador António Ricoca Freire também levou esta «chama», assim como o embaixador José Júlio Pereira Gomes, que foi quem a passou a mim. Depois, eu levei avante as negociações desta resolução. Fiquei com «o bebé nos braços» no momento certo, quando as conversações já estavam maduras o suficiente para se negociar um tratado. Ter direitos nomeadamente à alimentação, ao trabalho e à saúde, ao mesmo nível dos direitos civis e políticos: essa é a alteração de maior relevância? Do ponto de vista simbólico, é. Em 1948, há 60 anos atrás, a Declaração Universal dos Direitos Humanos deu ao mundo a mensagem incontornável de que todos os direitos deveriam ser tratados em pé de igualdade. E a Declaração Universal consagra-os a todos, tanto aos civis e políticos, quanto aos económicos, sociais e culturais. Mas depois, com a Guerra-Fria e com a «associação» dos direitos económicos, sociais e culturais ao chamado Bloco de Leste, o mundo ocidental passou a ser visto como o defensor dos direito civis e políticos. Começou, a partir de então, a haver um tratamento diferenciado de um bloco de direitos, relativamente a outros. E é verdader que, do ponto de vista simbólico, este Protocolo volta a fechar o círculo e a pôr tudo como estava há 60 anos atrás. Foram muitos anos. Além da questão simbólica, vem colocá-los em pé de igualdade, pelo facto de, para as violações dos direitos civis e políticos - liberdade de expressão, prisões arbitrárias, torturas, etc - já haver há décadas, mecanismos de queixas nas Nações Unidas e para a pessoa que sofre de má nutrição crónica, falta de cuidados de saúde, falta de acesso a medicamentos indispensáveis à sua sobrevivência, não há nada. Diz que este protocolo vem fechar um ciclo e que a Guerra Fria terá sido a principal causa dos direitos económicos, sociais e culturais não estarem até hoje ao memos nível dos direitos civis e políticos. Foi realmente apenas a Guerra Fria, não terá havido falta de vontade política? Durante um tempo foi a Guerra Fria. Estive a ler as discussões levadas a cabo nos anos 40, pro causa da Declaração Universal e depois, nos anos 50 e 60, a propósito dos dois tratados – o de direitos civis e políticos e o de direitos sociais, económicos e culturais – e, por aquilo que li, acredito que havia da parte do mundo ocidental um verdadeiro medo em consagrar os direitos económicos, sociais e culturais de uma maneira mais forte, em dar mais poder às pessoas para reivindicar os direitos. Acho que havia o verdadeiro medo, de alguns países, de «cairmos» no comunismo, que isso desse depois azo a um intervencionismo exacerbado do Estado na vida da sociedade. Agora, pode dizer que a queda do juro de Berlim foi há quase 20 anos, e, então, o que aconteceu nos últimos 20 anos? Tem razão, acho que aí, assentou «como uma luva». Entretanto, começaram a ser desenvolvidas teorias - que já tinham sido desenvolvidas nos anos 70 - que vinham defender que os direitos sociais, económicos e culturais, são substancialmente diferentes dos direitos civis e políticos e que têm que ser tratados de uma maneira diferente. E isso não é verdade. Em que se baseou essa diferença? Porque uma pessoa tem direito a não ser torturada, mas não tem, ao mesmo nível, direito a não passar fome? Aquilo se dizia - e ainda há autores hoje em dia que o dizem - era que os direitos sociais, económicos e culturais, necessitam de uma acção, por parte do Estado, para se tornarem efectivos. E os direitos civis e políticos, necessitam da abstenção do Estato. Podemos dar o exemplo da tortura. Eu, Estado, o que tenho que fazer para respeitar a proibição de tortura? - Não torturar. É uma obrigação de abstenção. Mas isso também é uma mentira, porque, se calhar, o mais natural será os nossos polícias, se não forem formados, torturarem. Portanto, tem que se investir, e não é pouco, na formação de polícias, de guardas-prisionais, etc, para que saibam que existe essa proibição, para que saibam fazer interrogatórios, para que saibam que quando prendem alguém que estava a roubar, não lhe podem bater. Isso custa milhões. Ter prisões que respeitem os padrões exigidos pela Convenção para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa, custa milhões. Isto tudo necessita de uma intervenção activa do Estado. Em Portugal temos a Inspecção-Geral da Administração Interna que é financiada por dinheiros públicos, para fiscalizar a administração interna, nomeadamente, a actuação dos polícias. Isto custa dinheiro e necessita de uma intervenção activa e de acções positivas por parte do Estado. Mas a visão tradicional é de que os direito civis e políticos não custam dinheiro e já os sociais, económicos e culturais custam dinheiro e são de realização progressiva. Não haverá por parte dos Estados um certo «temor» em relação às denúncias sobre o não cumprimento de direitos sociais, económicos e culturais, pelo facto da falta desses direitos ser mais abrangente e mais comum? E afectam toda a gente. Voce e eu, quando é que nos confrontamos com uma situação de tortura? Espero que nunca. Mas todo o resto, as condições de saúde, de trabalho, etc, afectam-nos a todos. Portanto, ainda mais aberrante é a situação que se prolongou estes anos todos: para determinados direitos com os quais nos confrontamos só em situações extremas, temos mecanismos de queixa. Para os outros, que nos afectam no dia-a-dia e que têm a ver com a nossa sobrevivência, não temos. Para responder à pergunta, acho que há um medo generalizado dos Estados, de que venham a ser vítimas de queixas massiças. Porque, a partir do momento em que este instrumento esteja em vigor, que as pessoas saibam da sua existência e que comecem a recorrer ao mesmo... Este é um Protocolo que «incomoda» governos de países desenvolvidos, que podem vir a ser confrontados com queixas de cidadãos e organizações, relacionadas com situações de fome, ou falta de assistência, por exemplo? Foram os países desenvolvidos, os países mais ricos, os maiores opositores do Protocolo. E acho que muitas vezes os países mais ricos «escondem-se» atrás das estatísticas, ou seja, vê-se tudo no computo geral, qunado se compara a Suécia com Zimbábue, ou a Finlândia com Moçambique, por exemplo. Agora, se olharmos para dentro da Finlândia, para dentro da Suécia, também vemos disparidades. E é verdade que este protocolo vai permitir àqueles que estão «na mó de baixo» nesses países, apresentarem queixas. Vai obrigar os países a repensarem as suas políticas à luz dos direitos humanos. E vai obrigá.los a pensar de que maneira a política que estão a implementar - e que se calhar tem muita lógica do ponto de vista económico e das contas públicas - vai afectar os direitos humanos da população. Sendo que, todos têm direito ao acesso a cuidados de saúde, ao acesso a medicamentos, ao acesso à educação, ao acesso a trabalho. Mas também vai levar juízes e advogados, a nível nacional, a terem informação, o que não existe hoje em dia. Eu costumo dizer que nas faculdades de direito não há formação em matéria de direitos humanos, não aprendem nada sobre os tratados internacionais em matéria de direitos humanos: Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tratados a nível das Nações Unidas, etc. Como é que um advogado português pode aconselhar um cliente a ir bater à porta das Nações Unidas, se nunca aprendeu? Precisamos de uma pequena-grande revolução. Sabe quantas queixas há de cidadãos portugueses a mecanismos da ONU? Uma. Entre milahres de queixas que têm sido apresentadas na ONU, há uma única de Portugal. É por não termos cá problemas de tortura ou de lentidão da justiça? Claro que não. Por acaso, a pessoa que apresentou a queixa é um advogado e conhecia o mecanismo. Nos outros casos, as pessoas não conhecem, não sabem que esses mecanismos existem e eles acabam por ser um bocado uma realidade virtual. As pessoas têm que saber que estes são direitos que existem e não uma benesse concedida pelo Estado que lhes pode ser retirada a qualquer momento. E que não é só o Estado português que as protege, também há instâncias supra-nacionais que as protegem e que podem condenar o Estado no caso desses direitos serem violados. E nas faculdades tem que se aprender isso. Após a aprovação do Protocolo, de que forma um Estado pode ser sancionado se uma queixa, seja ela apresentada por um indivíduo ou por grupos de indivíduos, for validada? Que «poder» terá a ONU para pressionar um determinado Estado? A ONU tem um comité de peritos independentes, formado por 18 pessoas do mundo inteiro que vão analisar as queixas recebidas e determinar se existe ou não a violação de um determinado direito. Se chegarem à conclusão que há uma violação, condenam o país e recomendam a adopção de determinadas medidas com vista a ressarcir as vítimas, a colmatar uma lacuna que possa existir. Agora, se me perguntar se há sanções, não as há no sentido mais jurídico do termo. Acontece porém que muitos países dizem que esssas recomendações, por parte do comité, servem como se fossem verdadeiras sanções, porque é assim que as interpretam, é assim que as analisam e é dessa maneira que depois as põem em prática. Porque o peso político que recai sobre um determinado país que não está a cumprir com essas recomendações, é muito grande. O comité poderá, por exemplo, entrar no país e verificar a procedência da queixa? Ao abrigo deste Portocolo, o comité de peritos independentes, ao reagir a uma queixa e chegar à conclusão, através de informações que recebe, que existe fome crónica no país por exemplo, pode deslocar-se a esse país e investigar. Isso chama-se Mecanismo do Inquérito: os peritos deslocam-se ao país para indagar sobre a situação de uma violação maciça, sistemática, grave, de um determinado direito. As negociações que foram difíceis? Participaram os quase 200 Estados-membros da ONU, além de centenas de ONG’s e de organizações internacionais. O princípio foi difícil. Regularmente quem preside a este tipo de negociações são embaixadores, normalmente do sexo masculino, com bastantes cabelos brancos. Eu tinha 33 anos e tenho uma nacionalidade para a qual muitos países em vias de desenvolvimento olham com desconfiança. Não é por ser portuguesa - o que até é bom - mas por ser da União Europeia. Os países em vias de desenvolvimento olham para a UE com desconfiança, acham que tem a sua agenda e que quer (levar avante) as suas coisas. Foi um trabalhodifícil fazer com que os representantes de países, nomeadamente os africanos, percebessem que eu estava lá para os ouvir, para lhes dar atenção, que acreditava que as suas preocupações eram dignas de atenção. Quando elaborei o documento de reflexão e depois o primeiro projecto de protocolo tive sempre em conta as preocupações e pretensões, por exemplo, dos países africanos. E eles perceberam que eu os ouvia. Houve um trabalho árduo para ganhar a confiança deles. No início dos trabalhos de elaboração do Protocolo, recebeu o apoio imediato dos países da América Latina e logo depois de África. Estava à espera que isso fosse acontecer? Da América Latina, de alguma maneira até esperava. Não me espantou porque a América Latina teve sempre um papel muito construtivo e pró-activo nas Nações Unidas, na área dos Direitos Humanos. Pode-se dizer que é o continente com o qual a União Europeia trabalha melhor. O Brasil, foi fantástico. Desde o início das negociações foi fantástico, muitíssimo activos, intervenientes, sempre a ajudar. Mas em relação a África fiquei espantada, positivamente espantada. Ainda agora, em Abril, quando as negociações terminaram, havia representantes de países mais desenvolvidos que me vinham perguntar como aconteceu isto de África estar a apoiar. Para eles também foi um mistério. Se calhar estava à espera que, em países onde a opinião pública é mais forte, onde as ONG’s colocam os governos mais sobre pressão, houvesse logo um apoio, e não houve. De alguns houve, como por exemplo a Alemanha, que começopu reticente e acabou como um dos maiores apoiantes. Se calhar foi a pressão da opinião pública e das ONG’s. Mas houve países europeus e do mundo ocidental muitíssimo reticentes. O Canadá, por exemplo. Os Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) foram apoiantes desde o início? Não. Infelizmente, o que acontece com os Palop é que têm poucos recursos económicos e têm as missões diplomáticas junto da ONU, com muito pouca gente. Portanto, não têm disponibilidade de pessoas para enviar a este tipo de negociações. Quer isto dizer que, dos Palop, tive um país representado - Angola. O que deseja ver realmente mudado com este Protocolo ao Tratado? Desejo que as pessoas sintam que a realização destes direitos – ao trabalho, à habitação, aos cuidados de saúde, à segurança social – não é uma benesse que o Estado dá e retira quando quer. Que se trata de um direito que nos é dado por sermos seres humanos, pelos simples facto de nascermos e que não nos pode ser retirado aleatoriamente. E que temos direito a exigir o seu respeito. Espero que as pessoas sintam que têm direito a estes direitos, e que os governos, antes de adoptarem políticas, pensem na maneira como aquelas políticas vão ter impacto sobre os direitos humanos. Pensem nas políticas não só em termos económicos, mas também do seu impacto nos direitos de todos. |
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