As circunstâncias, o processo e os protagonistas, mas também...
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PORQUÊ um acordo ortográfico e porquê este?
Fernando Cristóvão
Universidade de Lisboa / Clepul
Finalmente, após vinte e cinco anos de ter sido aprovado por unanimidade, pelos representantes de todos os países lusófonos, o Novo Acordo Ortográfico está a entrar em vigor.
Não parece que no conjunto das leis e de outros diplomas legais portugueses, após cinco anos de ampla discussão pública, de aprovação para ratificação pela Assembleia da República em 4 de junho de 1991, do decreto do Presidente da República Mário Soares, n.º 43/91 de 23 de agosto de 1991, da publicação no Diário da República (n.º 193, de 23/8/1991), tenha havido tamanha e tão longa discussão / contestação arrastada por longos vinte anos!!!
Foi um espetáculo triste esse arrastar de confusões, sem que os principais responsáveis pelo Novo Acordo – A Academia das Ciências, os Ministérios dos Negócios Estrangeiros, da Educação e da Cultura, a CPLP e o obscuro, ou inexistente, IILP –, tenham saído em sua defesa.
No entanto, era absolutamente inaceitável, nacional e internacionalmente, que a nossa língua continuasse a ter duas ortografias, correndo o risco de, com o tempo, vir a ter quatro, cinco ou sete ortografias diferentes. Em nome de quê? Saudosismo, conservadorismo, neo-colonialismo?
Com razão, Malaca Casteleiro caracterizou esta situação quixotesca como a “nova Guerra dos Cem Anos”, pois tendo sido feita a primeira reforma ortográfica em 1911, cem anos depois, em 2011, ainda se mantinham os mesmos preconceitos. Até ao ponto de ainda persistirem os “orgulhosamente sós”.
O mais caricato desta situação, mesmo não considerando as vantagens da unidade na diversidade das várias normas cultas nacionais, é que a totalidade das centenas de autores que são a glória da nossa língua nunca escreveram nesta ortografia de 1945, julgada pelos seus defensores com o intangível: nem Fernão Lopes, nem Gil Vicente, nem Camões, nem Vieira, nem Camilo, nem Ramalho, nem Eça, nem Pessoa, etc., nenhum deles escreveu nela.
Será que não foi acertado que na primeira República se tivesse procedido, em 1911, à primeira reforma ortográfica, simplificando uma complicada ortografia que só servia a eruditos, sem consideração pela massa populacional em grande parte analfabeta. Valeu a pena facilitar, assim, a alfabetização? Com as sucessivas campanhas de alfabetização e a democratização do ensino, é mais que óbvio que a ortografia tinha de fazer a passagem da primazia do etimológico, tão do agrado dos eruditos, para a dominância do fonético, que o povo prefere, e mais favorece a aprendizagem.
E também a comunicação dentro da lusofonia, na internacionalização dos contactos e das novas tecnologias.
Se continuássemos a resistir às reformas ortográficas, ainda teríamos de escrever como antes de 1911 (phosphoro, diphthongo, pharmácia, phrase, archivo…) É certo que Pessoa ficou com saudades dessas erudições aristocráticas (“orthographia sem ípsilon, como escarro directo”), mas até por respeito para com a sua obra genial, é bom perdoar-lhe uns tantos desacertos e exageros de opinião.
Os tempos mudaram: a língua é cada vez mais do povo, de vários povos, e a alfabetização e sua aprendizagem são melhor servidas pelo critério fonético do que pelo que das saudosas etimologias. Já o Padre Fernão de Oliveira, na sua Gramática de Lingoagem Portuguesa, de 1536, no capítulo XXXVIII, notava que, no território português, era diferente a pronúncia do norte em relação à do sul: “Porque os da Beira têm umas falas e os do Alentejo outras, e os homens da Estremadura tão diferentes são dos de Entre-Douro-e-Minho, porque assim como os tempos, assim também as terras criam condições e conceitos”[1].
E se já eram notórias as diferenças da língua e da pronúncia no século XVI no reduzido território nacional, em que a população não chegava a milhão e meio de habitantes, que dizer do tempo atual em que cerca de 270 milhões de pessoas, espalhadas por todos os continentes, falam a língua de Camões com as mais diversificadas pronúncias: de europeus, africanos, americanos, especialmente brasileiros, asiáticos, etc., influenciadas pela cultura, clima, hábitos articulatórios adquiridos no contacto como outras línguas?
E se, cada vez mais, nas reformas ortográficas o critério fonético é o adotado, e sendo grande a diversidade de pronúncias, porque temos de somar as diversas nacionais às diversas dos outros países lusófonos, é mais que óbvio que a ortografia, para as respeitar a todas, deve obedecer a uma opção convencional, em que se elejam umas formas gráficas em detrimento de outras também aceitáveis ou possíveis; para servir a língua, a ortografia deve ser, assim, unificada, e, como tal, essa unificação só será possível se resultar de um acordo, de uma convenção. De outro modo, cairíamos no absurdo de para cada um dos quatrocentos mil vocábulos da língua termos de admitir cinco, dez, vinte, formas gráficas diferentes para cada palavra, porque são diversificadas as pronúncias. Se evolui a língua, forçosamente a ortografia sua serva terá de evoluir também. Maximamente no tempo em que a língua portuguesa foi adotada por vários povos, formando a lusofonia, tendo nós passado de donos da língua para sermos um dos seus condóminos.
A confusão desastrada que alguns fomentaram entre língua e ortografia, com o agravamento do natural desconhecimento das pessoas pouco informadas, foi certamente a grande responsável por esta inacreditável guerrilha, fazendo crer que a ortografia modificava a língua, quando, pelo contrário, é a língua que obriga a ortografia a modificar-se em função da evolução cultural dos seus usos e dos novos desafios do intercâmbio internacional.
É já clássico saber-se, e não convém esquecer, que povos houve que, apercebendo-se disso desde muito cedo, e sem mudarem a língua e respetiva identidade, conteúdos, estilo, pronúncia, alteraram, de maneira radical, a sua ortografia. Ou melhor, substituíram-na por outra mais capaz de facilitar o ensino, de funcionar internacionalmente no intercâmbio, no comércio, no turismo, etc. Foi o caso, por exemplo, da Albânia, em 1908, ter substituido os carateres gregos do seu alfabeto pelos latinos; o mesmo fazendo a Turquia em 1928, deixando a escrita árabe e adotando também a latina, para não falar já no Vietname do século XVI que, por influência do português Frei Francisco Pina, trocou os caracteres chineses pelos latinos. E não parece que em qualquer desses países e culturas os poetas, os romancistas, os escritores em geral, por isso, tenham deixado de escrever ou tivessem de modificar os seus pensamentos e a sua expressão.
Como é possível que, no século XXI, a pequena cosmética ortográfica do novo acordo tenha gerado tanta confusão?
Importa, pois, mais uma vez, lembrar definições de língua e ortografia para melhor se entender a sua interligação. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra “língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da consciência de uma coletividade, a língua é um meio por que ela concebe o mundo que o cerca e sob ele age. Utilização social da faculdade da linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que a criou”[2].
Se a língua está em “perpétua evolução”, também a ortografia, sua serva, deve obedecer à mesma deriva.
Por isso, assim Herculano de Carvalho define a ortografia: “Ortografia é a forma de representar corretamente, por escrito, a palavra falada de uma determinada língua por meio de um sistema de sinais gráficos de natureza alfabética (letras, grafemas)”.
Parece, pois, evidente que a mudança ortográfica tem de acompanhar a mudança linguística.
Um inexplicável ciúme neo-colonialista ainda foi aparecendo e persiste em alguns: “então agora vamos falar como os brasileiros, sendo a língua nossa?”
Descontando o que já atrás foi referido, que a língua é uma coisa e a ortografia é outra, e que é a língua que manda na ortografia e não o contrário, este preconceito, para além de xenófobo, é historicamente errado.
A razão é bem simples: as principais modificações do atual acordo já há praticadas pelos brasileiros, com destaque especial para o primado da fonética e a supressão das consoantes mudas, já foram reivindicadas pelos portugueses no século XVIII, antes dos brasileiros. Assim, em 1746, o nosso Luís António Verney voltava a repetir: “digo que os portugueses devem pronunciar como pronunciam os homens da melhor doutrina da província da Estremadura, e, posto isto, devem escrever a sua língua da mesma sorte que a pronunciam (…) sendo a pronúncia a regra da ortografia, ainda assim houvessem homens prezados de cultos que embrulhassem a Ortografia, com a preocupação de quererem seguir a derivação e origem”[3].
Quanto à supressão das consoantes mudas: “daqui fica claro que devem desterrar-se da língua portuguesa aquela letras dobradas de que nada servem: os dois SS, dois LL, dois PP etc… Na pronúncia da língua não se ouve coisa alguma que faça dobrar as ditas consoantes”[4].
E, no caso dos grupos consonânticos: “pela mesma razão da pronúncia se deve desterrar das palavras portuguesas ou aportuguesadas o Ph em lugar do F”, etc., da mesma maneira que reprovava a escrita de Architectura, Machina, Archanjo, Chimica...
E quanto ao tão polémico H inicial: “não condeno quem escreve Homero, Heródoto, Herodes, etc., ainda que estes três e outros semelhantes que estão já muito em uso podem mui bem escrever-se sem H, o que até os nossos italianos já fazem”[5].
E como em resposta direta aos temerosos da influência brasílica dos nossos dias, um recado muito direto lhes dirige ele sobre uma palavra que tem sido grande pomo de discórdia, o famoso “acto”: “Ato é mui boa palavra e todos a entendem!”[6].
Torna-se assim bem claro que não foram os brasileiros os primeiros a propor estas simplificações, pois as primeiras gramáticas brasileiras que foram elaboradas, a do Padre António da Costa Duarte, de 1829, Compendio da Grammatica Portugueza, para uso das Escolas de Primeiras Letras[7] e, sobretudo, o Compêndio da Gramática Nacional, de 1835, de António A. Pereira Coruja, que, segundo Antenor Nascentes, “inaugurou a nossa gramaticografia”, só surgiram oitenta e três ou oitenta e nove anos depois de Verney…
Será ainda necessário encarecer as vantagens de uma ortografia unificada, possibilitando a todos os países lusófonos qualquer edição, em qualquer matéria, de obras que assim podem circular sem recusas ou emendas no vasto mercado populacional que é o nosso, de 270 milhões pessoas?
E que dizer da vantagem de, nas organizações internacionais, qualquer texto proveniente de um país lusófono poder ser aceite sem modificações em todo o espaço multicultural, respeitando-se rigorosamente a especificidade linguística de todos os países que falam o português?
Mais ainda, com a ortografia unificada fica mais fácil o apoio pedagógico e cientifico dentro do espaço lusófono, sobretudo aos menos desenvolvidos, pela edição de textos tanto literários como científicos para uso escolar, e sem entraves, com grandes vantagens de economia na edição.
Uma palavra ainda sobre a autoria do texto do Acordo que, recolhendo larga preparação em Portugal e no Brasil, já estava pronto para discussão em 1975, e que, só por não ser essa a melhor data para ser divulgado, foi adiado para debate em 1986, até ser, finalmente, aprovado.
Pela parte portuguesa, a delegação enviada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e pela Academia das Ciências de Lisboa integrou os seguintes especialistas, cuja competência dificilmente alguém poderá contestar ou apresentar melhor: os especialistas em filologia portuguesa Lindley Cintra (já se esqueceram dele?) e Malaca Casteleiro; em língua grega, em razão da tradição etimológica, Maria Helena da Rocha Pereira; em língua latina, por razões ainda maiores, Costa Ramalho; em literatura, pelo relacionamento da ortografia com a língua, Maria de Lurdes Belchior. E por ser então presidente do Instituto Camões, então chamado Icalp, também fiz parte desta equipa com a tarefa de difundir o texto por toda a rede de leitorados em universidades estrangeiras e outras escolas espalhadas pelo mundo. Incumbência essa realizada pela publicação da Revista Icalp, de 5 de Julho de 1986 (“Bases analíticas da ortografia simplificada da língua portuguesa de 1945, renegociada em 1975 e constituídas em 1986”).
[1] Fernão de Oliveira, Gramática da Lingoagem Portuguesa, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981, cap. XXXVIII.
[2] Celso Cunha, Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 1984, p.1
[3] Luís António Verney, O Verdadeiro Método de Estudar, vol. I, Lisboa, Sá da Costa, 1949 [1746], p.48.
[4] Idem, ibidem, p.46.
[5] Idem, ibidem, p. 59.
[6] Idem, ibidem, p. 56.
[7] Padre António da Costa Duarte, Compendio da Grammatica Portugueza, para uso das Escolas de Primeiras Letras, Maranhão, Typographia Nacional, 1829.
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