Cidade Velha, viveiro de mestiçagem
Dez/2011
Na ilha cabo-verdiana de Santiago, a Cidade Velha passou a integrar a lista de património da UNESCO com merecimento, sobretudo por aquilo que significa em termos de berço de um caldeamento de povos das mais díspares origens e culturas que ali se encontraram e se misturaram e se miscigenaram
A Ribeira Grande de Santiago, em Cabo Verde, foi recentemente elevada à dignidade de património da Humanidade. É de se admitir que a UNESCO, instituição prestigiada que é, não tenha tomado essa importante deliberação eventualmente como um reconhecimento e exaltação do legado arquitectónico da cidade, na realidade hoje praticamente desaparecido ou em ruínas.
É facto que a Cidade Velha, como é nostálgica e carinhosamente conhecida e tratada, teve fortes, muitos fortes, todos com nomes dos santos mais diversos. Teve a imponente fortaleza de São Filipe, arrasada pela acção do tempo e do pirata francês Jacques Cassard mas felizmente reconstruída por obra do governo espanhol; tem ainda as chamadas “ruínas consolidadas” do que foi a grandiosidade da Catedral, e tem também o renovado convento de São Francisco e a igreja que foi de Nossa Senhora dos Escravos, sem contar as muitas reminiscências ou resíduos de umas quantas igrejinhas e capelas que pareciam surgir do chão ao sabor de cada promessa feita a um qualquer santo.
Não obstante, não é por nada disso que a Cidade Velha merece ser tida como património da Humanidade e como tal venerada. É sobretudo por aquilo que significa em termos de berço de um caldeamento de povos das mais díspares origens e culturas que ali se encontraram e se misturaram e se miscigenaram, acabando por criar uma espécie de “raça humana” feita em todas as cores. Os seus elementos reconhecem-se e identificam-se como o mesmo povo, não apenas pela língua comum, o crioulo de Cabo Verde, mas especialmente na particular forma de estar e enfrentar o mundo nunca encarado como hostil e cujo centro não pode ser outro senão o arquipélago onde nos encontramos.
E, no entanto, a história leva-nos a acreditar numa simples obra de acaso a possibilitar o surgimento da sociedade cabo-verdiana. É que inicialmente terá sido ambição de Portugal proceder à colonização de Cabo Verde nos mesmos moldes que tinha acontecido relativamente às ilhas ditas adjacentes, isto é, com povos predominantemente de raça branca. Porém, com as ilhas do Cabo Verde tão próximas da África e a necessidade de “desmamar” os cativos da sua terra-mãe antes de serem enviados para novas paragens, era inevitável servirmos de entreposto no comércio de escravos. A isso acresceu que os colonos mandados para Cabo Verde preferiam de longe trabalhar com escravos africanos que com trabalhadores vindos de Portugal cheios de exigências, queixavam-se aqueles, vontade de rapidamente enriquecer e regressar à terra antes de serem mortos pelas doenças dos trópicos e os maus ares que a ilha de Santiago era acusada de possuir.
Acresce que a pobreza das ilhas não atraía europeus em busca de fortuna, ficando reservadas quase exclusivamente para os degredados e outros criminosos desterrados. Assim, quando no reinado de D. Maria I, e certamente por causa dos desmandos de governação do arquipélago pela Companhia do Grão Pará e Maranhão, a Coroa olhou finalmente para Cabo Verde e encontrou as ilhas praticamente povoadas de pretos.
Ou é história ou simples lenda, mas o que se diz é que a ideia encarada inicialmente pelo poder foi a de os devolver a todos à África-Mãe. E depois de abandonada por de todo impraticável, pois já se tinham passado mais de 300 anos sobre a chegada das primeiras levas de escravos, houve que cuidar da sua efectiva cristianização. Tanto mais que, conforme anunciava o cronista João de Barros, vivido entre 1496-1570 e tido como o primeiro grande historiador português, a finalidade dos descobrimentos não era outro senão “atrair as bárbaras nações ao jugo de Cristo”. Ideia essa confirmada em 1611 por um padre jesuíta residindo na ilha de Santiago, onde aliás a sua congregação desempenhou importante papel a nível da educação dos indígenas, que escreveu que, “com as pregações, doutrinas, confissões e práticas espirituais, se vão desarreigando desta terra as muito e mui grandes superstições que nela há” todas trazidas da mãe África pelos povos dela desenraizados.
No entanto, essa tarefa, a princípio considerada simples e fácil de executar, revelou-se de todo impossível. Isso porque as “muito e mui grandes superstições que nela há” só na aparência foram sendo desarreigadas, camufladas que ficaram, e depois a pouco e pouco sincretizadas com elementos e ritos e ornamentos colhidos da dominante religião católica oficial, única cuja prática era livremente permitida e consentida.
Assim, por exemplo, em 1762, um escandalizado ouvidor-geral das ilhas, de nome João Vieira de Andrade, queixava-se em carta dirigida ao rei de Portugal, D. José, dos muitos erros que aqui vinha observando no que dizia respeito à religião católica e seus dogmas, e que cuja necessidade de sanar considerava de grande urgência.
Entre diversos erros notórios, mas eventualmente menos chocantes, Vieira de Andrade identificou e privilegiou como bárbaros e ofensivos dos hábitos cristãos, primeiro o que chamou de “o costume da Esteira”, que descreveu em pormenor: morre alguém numa casa (ou mesmo fora dela sendo parente consanguíneo), e logo o dono da casa, e portanto do morto, manda estender a esteira perto da porta, o que significa franquear a entrada na casa a toda e qualquer pessoa. Este convite é iniciado no dia em que acontece a morte e prolonga-se por 15 dias, às vezes até 30, tudo conforme as posses do enlutado. E durante esse período encarregam o defunto de levar recados aos que antes dele faleceram, entregar cartas que lhe metem no interior da mortalha, tudo no meio de grande alarido que incomoda toda a vizinhança. E assim passam todos esses dias, que terminam com grandes banquetes que fazem ao jantar, com muita gula, muito álcool e também muita luxúria que se prolonga pela noite adentro.
Mas o que mais espantou e escandalizou o ouvidor, foi constatar que esse primitivo costume era observado por todos os moradores da ilha de Santiago, a começar pelos eclesiásticos, passando pelos seculares nobres, até chegar aos plebeus mais insignificantes.
Houve uma segunda aberração que muito impressionou Vieira de Andrade e que era a festa do Reynado. O Reynado, conta ele, é uma festa anual que começa recatadamente com uma solene e devota missa católica, mas que termina numa verdadeira orgia pagã, onde as mulheres, sejam casadas, solteiras, donzelas ou corruptas, se fecham numa casa e ali são procuradas e escolhidas pelos homens que, a troco de uma garrafa de aguardente, ficam autorizados a sair com elas para o exterior com vista à consumação do “torpíssimo exercício” longe de olhares indiscretos. Falou também o ouvidor da quarta-feira de Cinzas, chamada de foro ou mel, dia em que todos os homens, casados, solteiros, libertos, cativos, graves ou vis, tinham por indispensável obrigação oferecer uma porção de mel à sua mulher ou concubina, mel esse a que chamam foro; e a seguir com ela dormir, sob pena de irremissível divórcio ou repúdio.
Bem, passados quase 300 anos sobre as invectivas do ouvidor que se vangloria de pessoalmente muito ter contribuído para reprimir essas práticas indecorosas, a verdade é que com mais ou menos matizes esses costumes continuam presentes em quase todas as ilhas do arquipélago, ainda que já esvaziados dos conteúdos descritos e repudiados por Vieira de Andrade. De modo que se quisermos começar a aproximar da actual realidade cultural cabo-verdiana, um bom caminho será acompanhar Bentley Duncan quando sintetiza com sabedoria e fino espírito de análise que do ponto de vista social, as ilhas de Cabo Verde tiveram na sua formação a grande influência do tráfico de escravos, instrumento que fez das dispersas ilhas um campo de coligação e também de cooperação entre africanos e europeus que acabaram entrando numa série de interacções complexas envolvendo opressão e colaboração, crueldade e concubinagem e também ligações por casamento, mas que a final viriam a dar origem a uma sociedade miscigenada, se não completamente na cor da pele, pelo menos nas diversas expressões da cultura.
Preto e branco deu castanho, escreveu alguém ao falar de Cabo Verde, e é verdade que a cultura cabo-verdiana, particularmente quando expressa pelo seu maior instrumento, o crioulo, representa um eloquente acordo entre os elementos africanos e europeus. “A língua crioula, embebida na formação emocional e psicológica do cabo-verdiano, apesar de essencialmente portuguesa quanto ao vocabulário, sintaxe e gramática, é também africana na entonação e no sentimento interior, tendo tido a sua origem e desenvolvimento nas exigências da situação do africano da costa ocidental”, escreve Duncan.
Um exemplo expressivo pode ser encontrado na nossa panaria, uma amálgama da cultura cabo-verdiana no próprio e perfeito sentido do termo, pois que formada ninguém sabe exactamente com elementos provenientes de que partes do mundo, mas que aqui acabaram adquirindo uma como que unidade à volta da pobreza das ilhas. Para caracterizar essa fusão de elementos europeus e africanos que desde cedo nos identificou, Duncan refere com graça que o cabo-verdiano cultiva o milho, uma planta americana, com métodos africanos mas em terrenos preparados de acordo com as técnicas portuguesas, e pila-o com instrumentos europeus e africanos; marca ritmos africanos com ferrinhos portugueses e nas suas estórias populares, o lobo da lenda europeia aparece com uma máscara semi-africana.
Mas se é verdade que o africano foi europeizado no arquipélago, não deixa de ser igualmente verdade, como bem mostram os lamentos do ouvidor Vieira de Andrade, que também o europeu acabou sendo africanizado. E dessa miscigenação, desse encontro biológico e cultural, resultou o mulato que viria a ser o homem cabo-verdiano, produto de uma terra inóspita, temperado pelas agruras das secas mas alegre e eternamente crente num amanhã de fartura que não é menos certo pelo facto de continuar retardado.
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