in diálogos lusófonos
O Brasil e Portugal revelam muitas afinidades entre as suas identidades. Passo um estudo que realça numa breve análise os aspectos identitários mais profundos que marcam a formação social brasileira e as afinidades com Portugal. O autor começa por citar um texto de ANTÓNIO TABUCHI(nascido na Itália, em 1943, escritor e professor catedrático de Literaratura Portuguesa em Pisa), grande conhecedor da alma portuguesa, porque preferiu o "olhar europeu sobre os lusitanos e, por extensão, sobre o que no Brasil se fará em termos de projeto político, do que qualquer outro a partir da península ou antigos prolongamentos de ultramar".Diz Gisálio Cerqueira Filho que a comparação com o texto de António Tabuchi permite conjugar os registros da tríade Real/Simbólico/Imaginário inscrita no famoso Seminário de Jacques Lacan(1) , psicanalista francês, para evocar o nosso atual (des)conhecimento do Brasil. (1)Jacques Lacan propôs a noção freudiana de objeto perdido e enfatizando a importância da significação fálica, define a falta de objeto como uma operação articulada em três níveis – Real, Simbólico e Imaginário – nos quais três fatores entram em jogo: o sujeito, o objeto e o Outro, como agente da operação O BRASIL NÃO CONHECE O BRASIL Gisálio Cerqueira Filho,Doutor em Ciência Política, docente e pesquisador Senior na UFF. Professor Titular de Sociologia. E-mail: gisalio@antares.com.br Trabalho apresentado no Forum Ciência e Cultura da UFRJ Para Josué de Castro in memorian Carta de D. Sebastião de Aviz (1554/1578), rei de Portugal, ao pintor Francisco Goya (1746/1828) - segundo construção literária ficcional de Antonio Tabucchi, in “Os Voláteis do Beato Angélico”, Quetzal Editores, Lisboa, 1989 - “ (...) Da nossa península, a vossa terra tem uma virtude quintessencial, nas linhas, na fé, na fúria: a partir delas escolherei algumas figuras do símbolo que, como signo heráldico de um país único, poreis como sigla na margem do quadro que vos encomendo. Fareis à direita o Sagrado Coração de Nosso Senhor; e há-de ser gotejante e envolto em espinhos como nas imagens que os cegos e os feirantes vendem nos adros das nossas igrejas. Mas deverá ser uma reprodução fiel da anatomia do homem, porque para padecer na cruz Nosso Senhor se fez homem e o seu coração sangrou humanamente e foi trespassado enquanto músculo de carne. Assim o fareis, muscular e latejante, túrgido de sangue e dor: com o desenho das veias, as artérias retalhadas e a minuciosa textura da membrana que o envolve, aberta como a casca de um fruto. Deveis cravar-lhe no coração a lança que o transpassou: a sua lâmina terá a forma de um gancho, de forma a produzir um rasgão do qual o sangue jorrará, copioso. Na outra margem do quadro, a meia altura, de forma a que necessariamente se situe no limiar do horizonte, pintareis um pequeno touro. Fá-lo-eis agachado sobre as patas posteriores e com as anteriores graciosamente estendidas para a frente, como um cão doméstico; e os seus cornos serão diabólicos, e o seu aspecto ameaçador. Na fisionomia do monstro exercitareis com profusão a arte desses caprichos em que sois exímio, e, assim, o seu focinho será percorrido por um riso escarninho: mas os olhos serão ingênuos e quase pueris. O tempo será brumoso e a hora a do crepúsculo. Uma sombra de fim de tarde, piedosa e lânguida, virá já caindo e velando a cena. Por terra haverá cadáveres, muitíssimos cadáveres, numa nuvem densa como de moscas. Assim os fareis, como só vós sabeis fazê-los, incongruentes e inocentes como são os mortos. E junto deles, e por entre os braços deles, pintareis as violas e as guitarras que levaram por companhia para a morte. No meio do quadro e bem acima, entre céu e nuvens, fareis uma nau. Não será uma reprodução do real, mas algo como um sonho, uma aparição ou uma quimera. Porque será ao mesmo tempo todas as naus que levaram a minha gente por mares nunca dantes navegados em direção a costas longínquas, mergulhando-as nos abismos infinitos dos oceanos; e também todos os sonhos que a minha gente sonhou das falésias do meu país voltado para o mar; e os monstros que ela criou em seu imaginar, e as fábulas, os peixes, os pássaros deslumbrantes, os lutos e as miragens. E será ainda os meus próprios sonhos, que herdei dos meus antepassados, e a minha silenciosa loucura. Ornando a proa desta nau, que terá feições humanas, fareis um semblante vivo que faça vagamente lembrar meu rosto. Sobre ele poderá perpassar um sorriso, mas que seja incerto ou um tanto inefável, como a saudade irremediável e sutil de quem sabe que tudo é vão e que os ventos que fazem inchar as velas dos sonhos mais não são do que ar, ar, ar (...) ”. Esta citação do escritor Antonio Tabuchi será tomada como peça discursiva singular para realçar breve análise dos aspectos identitários mais profundos que marcam a formação social brasileira. Por que Antonio Tabuchi? Nascido na Itália, em 1943, escritor e professor catedrático de Literaratura Portuguesa em Pisa, trabalhou na editoração italiana da obra de Fernando Pessoa, sobre a qual escreveu inúmeros artigos, ensaios e críticas, além de ter trabalhado na tradução da poesia de Carlos Drummond de Andrade em “Sentimento do Mundo”. Entre muitos livros, publicou “Réquiem” (Lisboa, 1991) e, já em 1987, ganhara, na França, o premio Médicis para livro estrangeiro. O autor, escritor consagrado e articulista em diversos jornais da comunidade européia, é considerado profundo conhecedor da “alma” portuguesa. Preferimos este olhar europeu sobre os lusitanos e, por extensão, sobre o que no Brasil se fará em termos de projeto político, do que qualquer outro a partir da península ou antigos prolongamentos de ultramar. A peça discursiva de Antonio Tabuchi, uma carta ficcional do rei D. Sebastião de Aviz encomendando um quadro ao pintor Francisco Goya, (de resto impossível de ser escrita porque envolve temporalidades muito distantes), permite conjugar os registros da tríade Real/Simbólico/Imaginário inscrita no famoso Seminário de Jacques Lacan para evocar o nosso atual (des)conhecimento do Brasil. O enigma interpretativo alude à composição “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso), conhecida mundo afora, mas também e sobretudo às “Querelas do Brasil” (Maurício Tapajós e Aldir Blanc), uma outra composição musical, esta última interpretada por Elis Regina. Para não falar das querelas propriamente ditas no âmbito do pensamento social no Brasil. Na aludida música, Elis repete, poeticamente e como num sintoma, o refrão “o Brasil não conhece o Brasil”. Conheçamo-lo pois a partir de uma aproximação estética onde imagens, estilos, idéias, fantasias, associam-se num delírio de mando na demanda de um suposto signo heráldico que permita captar o conjunto de virtudes que o define. Aqui, na nossa interpretação, o Brasil não se distingue propriamente de Portugal; antes o resume e o assume nos seus traços mais marcantes, íntegros e profundos, capazes de esculpir a alma brasileira. Se por um lado, a memória cultural embaralha a distância geográfica; por outro lado, a memória geográfica embaralha a distância cultural, permitindo ambos os embaralhamentos a busca do fio de Ariadne capaz de nos conduzir à identidade nossa de brasileiros. Realçamos assim as implicações éticas e estéticas da onipresença do simbólico em nossas vidas mas cravejado de fantasmas e impulsos fantasísticos que se oferecem à nossa imaginação delirante num esforço inaudito de preenchimento dos espaço vazios do desejo. |
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