http://www.portuguesetimes.com/Ed_1713/Cronicas/cartadecalif.htm
cARTA DA CALIFÓRNIA
Eduardo Mayone Dias
Judeus nos Açores
É bem provável que se houvessem fixado judeus nos Açores desde os primeiros
tempos do povoamento. Tradicionalmente envolvidos por essa época no comércio
do açúcar, poderiam ter sido eles os promotores das não muito bem sucedidas
tentativas da introdução da cana-de-açúcar no arquipélago. No entanto, como
afirma o Professor Francisco dos Reis Maduro Dias, não existe qualquer
documentação sobre esta presença.
As primeiras referências concretas ao estabelecimento de famílias judaicas
nas ilhas datam da segunda década do século XIX. Originárias de Marrocos, de
onde saíram devido a restrições económicas que lhes haviam sido impostas,
foi em 1818 que as primeiras dessas famílias chegaram, via Gibraltar e Faro.
Recorde-se que por esses anos já se achava muito desvanecido o poder da
Inquisição, finalmente extinta em 1821, logo após o advento do regime
liberal.
Não seria improvável que alguns dos recém-chegados tivessem uma remota
ascendência portuguesa. Entre os judeus que então habitavam Marrocos
contavam-se nomes como Cardoso-Nunes, De Mattos, Dias, Monteiro ou Peres.
Quanto aos Pinto, Medina ou Miranda, seria factível admitir também uma
origem espanhola.
Os judeus radicaram-se em várias ilhas. No caso de São Miguel criou-se em
1818 na cidade de Ponta Delgada uma pequena comunidade hebraica que trinta
anos depois atingiria cerca de 250 membros, então a mais numerosa do
arquipélago. Para Angra veio um certo número de famílias dedicadas ao
comércio, que contribuíram para fazer da cidade um importante elo de ligação
entre a Europa e a América.
Em 1836 um grupo de judeus de Ponta Delgada adquiriu um já secular edifício
situada na Rua de Brum, com o fim de aí ser instalada uma sinagoga, que
recebeu o nome de Sha¹ar ha-Shamaïn (Porta do Céu). Na zona de Santa Clara
foi igualmente criado um cemitério israelita. Outra sinagoga havia sido
construída cerca de 1830 em Vila Franca do Campo. Também em Angra se
fundaram uma sinagoga e o cemitério Campo da Igualdade que contava em 1936
com 133 sepulturas, por anos em completo estado de abandono.(1) Na Horta
foram criados na primeira parte da década de 1850 uma sinagoga e um
cemitério judaico, chegando este a contar com 17 sepulturas.
Das cinco sinagogas que existiram em São Miguel, Terceira e Faial, apenas a
de Ponta Delgada subsiste, embora hoje inactiva. Não há que esquecer que as
sinagogas, para além de templos, funcionavam também (e ainda funcionam) como
escolas, locais de reunião e juntas administrativas.
A mais poderosa presença judaica no arquipélago é representada pela família
Bensaúde, como foi a fundo estudado pela professora micaelense Fátima
Sequeira Dias, que a este clã dedicou a sua dissertação de doutoramento pela
Universidade doa Açores.
O patriarca da família, Abraham Nathan Ben-Saúd, vindo de Marrocos com mais
cinco correligionários, estabeleceu residência em Ponta Delgada no ano de
1818. Começou por vender fazendas e quinquilharias mas em breve se tornou um
próspero negociante. Foi ele quem fundou o Banco Lisboa e Açores, lançando
assim as bases para a actividade bancária nas ilhas.(2)
Desde os primeiros tempos a família revelou um fervoroso interesse pela
educação e pela cultura, o que levou vários dos seus membros a abandonar,
pelo menos em parte, a actividade mercantil e a enveredar por profissões
liberais.
Das duas únicas meninas que em 1843 frequentavam as Aulas Régias em Ponta
Delgada, uma era Raquel Bensaúde, filha de Abraham e de sua esposa Esther
Amiel. Um irmão de Raquel, José, nascido em 1835, amigo e companheiro de
escola de Antero de Quental, distinguiu-se como estudante, sobretudo nas
matérias de Matemática e Inglês, e mais tarde como poeta. Com outros jovens
fundou em 1857 o Grémio Literário da cidade.
José Bensaúde criou a Fábrica de Tabacos Micaelense. Esteve também ligado a
vários sectores, como os do chá(3), açúcar, ananás, exportação de
laranja(4), navegação e construção do porto artificial de Ponta Delgada.
Para além destes brilhantes empreendimentos, continuou ligado à cultura e
empenhou-se em dar a seus filhos, Alfredo e Joaquim, aplicados escolares,
tal como o pai havia sido, uma esmerada educação. Para isso teve contudo de
recorrer a universidades estrangeiras. O caso era que, firmes na sua crença
mosaica, os dois jovens viam barrada a sua admissão à Universidade de
Coimbra, a única então existente em Portugal. De facto, ao tempo era exigido
aos alunos um juramento de profissão de fé católica. Só em 1910, logo após a
proclamação da República, se verificou a secularização da Universidade.
Alfredo Bensaúde, nascido em 1856, o primogénito, doutorou-se em 1881 no
campo de Mineralogia na Universidade Técnica de Götingen, na Alemanha. Em
1884 tornou-se professor de Mineralogia e Geologia no Instituto Industrial
e Comercial de Lisboa e em 1910 foi convidado para organizar e dirigir na
capital o então fundado Instituto Superior Técnico.
Grande autoridade no campo da Mineralogia, manteve-se nesse lugar até 1922,
ano em que regressou a São Miguel para, após a morte de seu pai, administrar
a empresa da família. Faleceu nessa cidade em 1941.
Alfredo Bensaúde havia contraído matrimónio com uma autora de livros
infantis, Jeanne Eleonore Oulman, de origem alemã. Uma filha do casal,
Mathilde Bensaúde (1890-1969), nasceu em Ponta Delgada e formou-se em
Ciências Biológicas pela Sorbonne. Especialista em Fitopatologia e autora de
vários livros sobre este tema, foi desde 1931, em Lisboa, directora da
Inspecção dos Serviços Fitopatológicos.
Um irmão de Alfredo, Joaquim Bensaúde (1859-1952), completou os seus estudos
de Engenharia Civil de igual modo na Alemanha. Desempenhou depois o cargo de
vice-director da Queen's Dock, em Londres, dirigiu a construção das docas de
Sète, em França, e fez parte do grupo de engenheiros que levaram a cabo o
alargamento das instalações portuárias de Lisboa.
Tornou-se também um atento investigador das ciências náuticas, em especial
cartografia e astronomia portuguesas ao tempo dos descobrimentos. Foi um dos
fundadores da Academia Portuguesa de História. Viveu em França, tendo
regressado a Portugal quando os alemães ocuparam Paris em 1940.
Através de sucessivas gerações, os Bensaúde nunca na realidade se integraram
no ambiente insular. Não demonstraram grande interesse pela vida de
sociedade e manifestaram-se indiferentes a reuniões, jantares, banquetes,
bailes e de um modo geral a convívio fora do grupo. O prestígio social não
foi decididamente uma das suas prioridades. Também, aliás em consonância com
a tradição judaica, não se inclinaram à aquisição de terras e portanto a
atingirem o estatuto de latifundiários, ainda que à escala insular.(5)
Por outro lado, com toda a frequência buscavam casamento fora das ilhas e a
princípio sempre com membros de famílias judaicas, ligadas ao comércio como
os Amzalak ou os Abecassis. Mais tarde começaram a registar-se alianças com
famílias cristãs, como os Pinto Basto, fundadores da conhecida fábrica de
cerâmicas Vista Alegre, estabelecida perto de Ílhavo.
A este nível, uma nota curiosa é que Abraham Nathan Ben-Saúd foi tetravô do
actual Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio. Uma filha de
Abraham, Helena (também conhecida como Reyna), teve um filho chamado Arão,
que por sua vez foi pai de Sara Bensaúde.
Esta converteu-se ao catolicismo para casar com o futuro General Fernando
Branco. O casal teve uma filha, Fernanda Bensaúde Branco, que se consorciou
com Arnaldo de Sampaio. O filho destes foi o Dr. Jorge Sampaio. Embora
declare o seu agnosticismo, o Presidente é pois geneticamente judeu. Como se
sabe, a qualidade de judeu transmite-se apenas por via feminina.
Também nos seus negócios a família, embora sempre com base nos Açores,
estendeu os seus empreendimentos por várias partes do mundo. Os Bensaúde
estabeleceram escritórios em Lisboa, Porto, Lagos, Londres, Manchester e
Liverpool e por muitos anos mantiveram relações comerciais com Marrocos. Ao
longo de já quase dois séculos, diversificaram-se enormemente nas suas
actividades económicas. Envolveram-se assim na indústria do tabaco, no
cultivo do chá, do linho e do ananás.
De Ponta Delgada, de Angra e da Horta o seu cosmopolitismo levou-os à
exportação de cereais e de laranja, ao transporte de emigrantes, à
importação de bacalhau canadiano, aos seguros e aos transportes marítimos e
aéreos. Não se olvide que foi esta família quem em 1941 criou a Sociedade
Açoriana de Transportes Aéreos (SATA), que iniciou os seus serviços em 1947.
Também a empresa Bensaúde Turismo conta agora nos Açores com seis unidades
hoteleiras, que dispõem de um total de 636 quartos, com 1272 camas: o Hotel
Açores Atlântico, o Hotel Avenida, o Terra Nostra Garden Hotel, o S. Miguel
Park Hotel, a Estalagem dos Clérigos e o recente Terceira Mar Hotel. Hoje em
dia a família constitui um verdadeiro empório comercial, estendido por
vários países.
Membros da família adquiriram de igual modo residências em Lisboa. A Quinta
da Saudade, na Rua Saraiva de Carvalho, com um palacete construído nos anos
20, foi propriedade de Fortunato Bensaúde Abecassis, nascido em 1875. A
família comprou também à Ordem Franciscana outra quinta em Lisboa, perto do
actual Estádio da Luz. Mais tarde vendida ao Estado, foi aí inaugurado em
1993 o Parque Bensaúde.
A maior parte dos Bensaúde converteu-se ao catolicismo durante a Segunda
Guerra Mundial, possivelmente por receio de uma expansão do anti-semitismo
promovido pelo regime de Hitler.(6)
A partir de 1870 a comunidade hebraica dos Açores começou a diluir-se. Uma
das razões deste decréscimo foi representada pela crise económica resultante
do termo do ciclo da laranja. Muitos judeus procuraram então fixar-se no
Continente português ou em países estrangeiros. Por outro lado, o casamento
fora do grupo, ao princípio fortemente repudiado, conduziu a um esbatimento
da identidade judaica.
Em 1998 Jorge Delmar, um negociante de Ponta Delgada por algum tempo
estabelecido em Manchester, descendente de um dos pioneiros de 1818,
considerava-se o último judeu dos Açores. Trinta anos antes, dizia, existiam
ainda 16 famílias judaicas em S. Miguel. Celebravam-se serviços religiosos
na sinagoga e respeitavam-se os dias santos. Depois tudo desapareceu. Ele
próprio exemplifica essa dispersão. Casado com uma senhora católica, os seus
filhos já não são judeus pela lei mosaica.
A sinagoga de Ponta Delgada é agora o mais marcante vestígio da presença
judaica nas ilhas. Desactivada desde os anos 60 devido ao progressivo
decréscimo da congregação, o seu edifício foi por alguns anos mantido por
duas irmãs judias. Em seguida esta incumbência passou para as mãos do avô de
Jorge Delmar, Salom, até à morte deste em 1990.
Apesar do aspecto degradado da fachada, o interior ainda representa uma
atraente estrutura com paredes pintadas a azul claro contrastando com o tom
escuro da madeira dos bancos e da bima, a plataforma de onde o celebrante lê
passos da Tora.
A Arca, sacrário coberto com uma cortina onde se guardam a Tora e as tábuas
dos Dez Mandamentos, conteve até há pouco objectos cerimoniais. Em algumas
áreas o soalho e o tecto ameaçam ruína. Os livros sagrados, os talessim,
mantos de oração com franjas nos quatro cantos e os tefilim, pequenas tiras
de pergaminho onde estão escritos quatro parágrafos da Tora, contidas em
caixinhas de couro que se podem usar sobre a cabeça ou amarradas com
correias desde a parte superior do braço até à mão, foram-se
progressivamente deteriorando. A Tora e seis candelabros preservaram-se em
casa de Jorge Delmar e outras alfaias de culto enviaram-se à Sinagoga
Sha¹are Tikvah, em Lisboa.
Apesar de repetidas tentativas de restauro e mesmo de certos esforços de
conservação, o templo continua num desolador estado de incúria. Dependendo
da jurisdição da Comunidade Israelita de Gibraltar, têm sido longas e
penosas as negociações com esta organização levadas a cabo pela Comunidade
Israelita de Lisboa com o fim de efectuar reparações.
É de esperar que muito em breve se chegue a um acordo. Seria doloroso que
tudo acabasse em desatenção, já que a sinagoga constitui o símbolo mais
visível de uma longa trajectória de conseguimentos da comunidade judaica dos
Açores.
NOTAS
(1) Por iniciativa da família Bensaúde, este cemitério foi recentemente
mandado limpar.
(2) Abraham Ben-Saúd adquiriu a nacionalidade portuguesa em 1830.
(3) No século XIX chegaram a existir em São Miguel mais de dez fábricas de
chá. A mais importante delas, a Gorreana, fundada em 1883 e hoje a única
deste género na Europa, não constituiu uma iniciativa da família Bensaúde.
(4) Por três quartos de século floresceu esta actividade. No entanto, em
dois anos uma epidemia destruiu todos os laranjais da ilha.
(5) Até à conversão em massa e forçada, ordenada em 1497 por D. Manuel I,
não era permitida aos judeus portugueses a posse de terra.
(6) Tal como no Continente, durante a Segunda Guerra Mundial, os Açores
acolheram por algum tempo refugiados judeus que procuravam passagem para as
Américas.
cARTA DA CALIFÓRNIA
Eduardo Mayone Dias
Judeus nos Açores
É bem provável que se houvessem fixado judeus nos Açores desde os primeiros
tempos do povoamento. Tradicionalmente envolvidos por essa época no comércio
do açúcar, poderiam ter sido eles os promotores das não muito bem sucedidas
tentativas da introdução da cana-de-açúcar no arquipélago. No entanto, como
afirma o Professor Francisco dos Reis Maduro Dias, não existe qualquer
documentação sobre esta presença.
As primeiras referências concretas ao estabelecimento de famílias judaicas
nas ilhas datam da segunda década do século XIX. Originárias de Marrocos, de
onde saíram devido a restrições económicas que lhes haviam sido impostas,
foi em 1818 que as primeiras dessas famílias chegaram, via Gibraltar e Faro.
Recorde-se que por esses anos já se achava muito desvanecido o poder da
Inquisição, finalmente extinta em 1821, logo após o advento do regime
liberal.
Não seria improvável que alguns dos recém-chegados tivessem uma remota
ascendência portuguesa. Entre os judeus que então habitavam Marrocos
contavam-se nomes como Cardoso-Nunes, De Mattos, Dias, Monteiro ou Peres.
Quanto aos Pinto, Medina ou Miranda, seria factível admitir também uma
origem espanhola.
Os judeus radicaram-se em várias ilhas. No caso de São Miguel criou-se em
1818 na cidade de Ponta Delgada uma pequena comunidade hebraica que trinta
anos depois atingiria cerca de 250 membros, então a mais numerosa do
arquipélago. Para Angra veio um certo número de famílias dedicadas ao
comércio, que contribuíram para fazer da cidade um importante elo de ligação
entre a Europa e a América.
Em 1836 um grupo de judeus de Ponta Delgada adquiriu um já secular edifício
situada na Rua de Brum, com o fim de aí ser instalada uma sinagoga, que
recebeu o nome de Sha¹ar ha-Shamaïn (Porta do Céu). Na zona de Santa Clara
foi igualmente criado um cemitério israelita. Outra sinagoga havia sido
construída cerca de 1830 em Vila Franca do Campo. Também em Angra se
fundaram uma sinagoga e o cemitério Campo da Igualdade que contava em 1936
com 133 sepulturas, por anos em completo estado de abandono.(1) Na Horta
foram criados na primeira parte da década de 1850 uma sinagoga e um
cemitério judaico, chegando este a contar com 17 sepulturas.
Das cinco sinagogas que existiram em São Miguel, Terceira e Faial, apenas a
de Ponta Delgada subsiste, embora hoje inactiva. Não há que esquecer que as
sinagogas, para além de templos, funcionavam também (e ainda funcionam) como
escolas, locais de reunião e juntas administrativas.
A mais poderosa presença judaica no arquipélago é representada pela família
Bensaúde, como foi a fundo estudado pela professora micaelense Fátima
Sequeira Dias, que a este clã dedicou a sua dissertação de doutoramento pela
Universidade doa Açores.
O patriarca da família, Abraham Nathan Ben-Saúd, vindo de Marrocos com mais
cinco correligionários, estabeleceu residência em Ponta Delgada no ano de
1818. Começou por vender fazendas e quinquilharias mas em breve se tornou um
próspero negociante. Foi ele quem fundou o Banco Lisboa e Açores, lançando
assim as bases para a actividade bancária nas ilhas.(2)
Desde os primeiros tempos a família revelou um fervoroso interesse pela
educação e pela cultura, o que levou vários dos seus membros a abandonar,
pelo menos em parte, a actividade mercantil e a enveredar por profissões
liberais.
Das duas únicas meninas que em 1843 frequentavam as Aulas Régias em Ponta
Delgada, uma era Raquel Bensaúde, filha de Abraham e de sua esposa Esther
Amiel. Um irmão de Raquel, José, nascido em 1835, amigo e companheiro de
escola de Antero de Quental, distinguiu-se como estudante, sobretudo nas
matérias de Matemática e Inglês, e mais tarde como poeta. Com outros jovens
fundou em 1857 o Grémio Literário da cidade.
José Bensaúde criou a Fábrica de Tabacos Micaelense. Esteve também ligado a
vários sectores, como os do chá(3), açúcar, ananás, exportação de
laranja(4), navegação e construção do porto artificial de Ponta Delgada.
Para além destes brilhantes empreendimentos, continuou ligado à cultura e
empenhou-se em dar a seus filhos, Alfredo e Joaquim, aplicados escolares,
tal como o pai havia sido, uma esmerada educação. Para isso teve contudo de
recorrer a universidades estrangeiras. O caso era que, firmes na sua crença
mosaica, os dois jovens viam barrada a sua admissão à Universidade de
Coimbra, a única então existente em Portugal. De facto, ao tempo era exigido
aos alunos um juramento de profissão de fé católica. Só em 1910, logo após a
proclamação da República, se verificou a secularização da Universidade.
Alfredo Bensaúde, nascido em 1856, o primogénito, doutorou-se em 1881 no
campo de Mineralogia na Universidade Técnica de Götingen, na Alemanha. Em
1884 tornou-se professor de Mineralogia e Geologia no Instituto Industrial
e Comercial de Lisboa e em 1910 foi convidado para organizar e dirigir na
capital o então fundado Instituto Superior Técnico.
Grande autoridade no campo da Mineralogia, manteve-se nesse lugar até 1922,
ano em que regressou a São Miguel para, após a morte de seu pai, administrar
a empresa da família. Faleceu nessa cidade em 1941.
Alfredo Bensaúde havia contraído matrimónio com uma autora de livros
infantis, Jeanne Eleonore Oulman, de origem alemã. Uma filha do casal,
Mathilde Bensaúde (1890-1969), nasceu em Ponta Delgada e formou-se em
Ciências Biológicas pela Sorbonne. Especialista em Fitopatologia e autora de
vários livros sobre este tema, foi desde 1931, em Lisboa, directora da
Inspecção dos Serviços Fitopatológicos.
Um irmão de Alfredo, Joaquim Bensaúde (1859-1952), completou os seus estudos
de Engenharia Civil de igual modo na Alemanha. Desempenhou depois o cargo de
vice-director da Queen's Dock, em Londres, dirigiu a construção das docas de
Sète, em França, e fez parte do grupo de engenheiros que levaram a cabo o
alargamento das instalações portuárias de Lisboa.
Tornou-se também um atento investigador das ciências náuticas, em especial
cartografia e astronomia portuguesas ao tempo dos descobrimentos. Foi um dos
fundadores da Academia Portuguesa de História. Viveu em França, tendo
regressado a Portugal quando os alemães ocuparam Paris em 1940.
Através de sucessivas gerações, os Bensaúde nunca na realidade se integraram
no ambiente insular. Não demonstraram grande interesse pela vida de
sociedade e manifestaram-se indiferentes a reuniões, jantares, banquetes,
bailes e de um modo geral a convívio fora do grupo. O prestígio social não
foi decididamente uma das suas prioridades. Também, aliás em consonância com
a tradição judaica, não se inclinaram à aquisição de terras e portanto a
atingirem o estatuto de latifundiários, ainda que à escala insular.(5)
Por outro lado, com toda a frequência buscavam casamento fora das ilhas e a
princípio sempre com membros de famílias judaicas, ligadas ao comércio como
os Amzalak ou os Abecassis. Mais tarde começaram a registar-se alianças com
famílias cristãs, como os Pinto Basto, fundadores da conhecida fábrica de
cerâmicas Vista Alegre, estabelecida perto de Ílhavo.
A este nível, uma nota curiosa é que Abraham Nathan Ben-Saúd foi tetravô do
actual Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio. Uma filha de
Abraham, Helena (também conhecida como Reyna), teve um filho chamado Arão,
que por sua vez foi pai de Sara Bensaúde.
Esta converteu-se ao catolicismo para casar com o futuro General Fernando
Branco. O casal teve uma filha, Fernanda Bensaúde Branco, que se consorciou
com Arnaldo de Sampaio. O filho destes foi o Dr. Jorge Sampaio. Embora
declare o seu agnosticismo, o Presidente é pois geneticamente judeu. Como se
sabe, a qualidade de judeu transmite-se apenas por via feminina.
Também nos seus negócios a família, embora sempre com base nos Açores,
estendeu os seus empreendimentos por várias partes do mundo. Os Bensaúde
estabeleceram escritórios em Lisboa, Porto, Lagos, Londres, Manchester e
Liverpool e por muitos anos mantiveram relações comerciais com Marrocos. Ao
longo de já quase dois séculos, diversificaram-se enormemente nas suas
actividades económicas. Envolveram-se assim na indústria do tabaco, no
cultivo do chá, do linho e do ananás.
De Ponta Delgada, de Angra e da Horta o seu cosmopolitismo levou-os à
exportação de cereais e de laranja, ao transporte de emigrantes, à
importação de bacalhau canadiano, aos seguros e aos transportes marítimos e
aéreos. Não se olvide que foi esta família quem em 1941 criou a Sociedade
Açoriana de Transportes Aéreos (SATA), que iniciou os seus serviços em 1947.
Também a empresa Bensaúde Turismo conta agora nos Açores com seis unidades
hoteleiras, que dispõem de um total de 636 quartos, com 1272 camas: o Hotel
Açores Atlântico, o Hotel Avenida, o Terra Nostra Garden Hotel, o S. Miguel
Park Hotel, a Estalagem dos Clérigos e o recente Terceira Mar Hotel. Hoje em
dia a família constitui um verdadeiro empório comercial, estendido por
vários países.
Membros da família adquiriram de igual modo residências em Lisboa. A Quinta
da Saudade, na Rua Saraiva de Carvalho, com um palacete construído nos anos
20, foi propriedade de Fortunato Bensaúde Abecassis, nascido em 1875. A
família comprou também à Ordem Franciscana outra quinta em Lisboa, perto do
actual Estádio da Luz. Mais tarde vendida ao Estado, foi aí inaugurado em
1993 o Parque Bensaúde.
A maior parte dos Bensaúde converteu-se ao catolicismo durante a Segunda
Guerra Mundial, possivelmente por receio de uma expansão do anti-semitismo
promovido pelo regime de Hitler.(6)
A partir de 1870 a comunidade hebraica dos Açores começou a diluir-se. Uma
das razões deste decréscimo foi representada pela crise económica resultante
do termo do ciclo da laranja. Muitos judeus procuraram então fixar-se no
Continente português ou em países estrangeiros. Por outro lado, o casamento
fora do grupo, ao princípio fortemente repudiado, conduziu a um esbatimento
da identidade judaica.
Em 1998 Jorge Delmar, um negociante de Ponta Delgada por algum tempo
estabelecido em Manchester, descendente de um dos pioneiros de 1818,
considerava-se o último judeu dos Açores. Trinta anos antes, dizia, existiam
ainda 16 famílias judaicas em S. Miguel. Celebravam-se serviços religiosos
na sinagoga e respeitavam-se os dias santos. Depois tudo desapareceu. Ele
próprio exemplifica essa dispersão. Casado com uma senhora católica, os seus
filhos já não são judeus pela lei mosaica.
A sinagoga de Ponta Delgada é agora o mais marcante vestígio da presença
judaica nas ilhas. Desactivada desde os anos 60 devido ao progressivo
decréscimo da congregação, o seu edifício foi por alguns anos mantido por
duas irmãs judias. Em seguida esta incumbência passou para as mãos do avô de
Jorge Delmar, Salom, até à morte deste em 1990.
Apesar do aspecto degradado da fachada, o interior ainda representa uma
atraente estrutura com paredes pintadas a azul claro contrastando com o tom
escuro da madeira dos bancos e da bima, a plataforma de onde o celebrante lê
passos da Tora.
A Arca, sacrário coberto com uma cortina onde se guardam a Tora e as tábuas
dos Dez Mandamentos, conteve até há pouco objectos cerimoniais. Em algumas
áreas o soalho e o tecto ameaçam ruína. Os livros sagrados, os talessim,
mantos de oração com franjas nos quatro cantos e os tefilim, pequenas tiras
de pergaminho onde estão escritos quatro parágrafos da Tora, contidas em
caixinhas de couro que se podem usar sobre a cabeça ou amarradas com
correias desde a parte superior do braço até à mão, foram-se
progressivamente deteriorando. A Tora e seis candelabros preservaram-se em
casa de Jorge Delmar e outras alfaias de culto enviaram-se à Sinagoga
Sha¹are Tikvah, em Lisboa.
Apesar de repetidas tentativas de restauro e mesmo de certos esforços de
conservação, o templo continua num desolador estado de incúria. Dependendo
da jurisdição da Comunidade Israelita de Gibraltar, têm sido longas e
penosas as negociações com esta organização levadas a cabo pela Comunidade
Israelita de Lisboa com o fim de efectuar reparações.
É de esperar que muito em breve se chegue a um acordo. Seria doloroso que
tudo acabasse em desatenção, já que a sinagoga constitui o símbolo mais
visível de uma longa trajectória de conseguimentos da comunidade judaica dos
Açores.
NOTAS
(1) Por iniciativa da família Bensaúde, este cemitério foi recentemente
mandado limpar.
(2) Abraham Ben-Saúd adquiriu a nacionalidade portuguesa em 1830.
(3) No século XIX chegaram a existir em São Miguel mais de dez fábricas de
chá. A mais importante delas, a Gorreana, fundada em 1883 e hoje a única
deste género na Europa, não constituiu uma iniciativa da família Bensaúde.
(4) Por três quartos de século floresceu esta actividade. No entanto, em
dois anos uma epidemia destruiu todos os laranjais da ilha.
(5) Até à conversão em massa e forçada, ordenada em 1497 por D. Manuel I,
não era permitida aos judeus portugueses a posse de terra.
(6) Tal como no Continente, durante a Segunda Guerra Mundial, os Açores
acolheram por algum tempo refugiados judeus que procuravam passagem para as
Américas.
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