quarta-feira, 6 de junho de 2012

Ramalho Eanes "Os políticos desprezam os militares

Ramalho Eanes
"Os políticos desprezam os militares" 28/02/2007
Entrevista de José Pedro Castanheira
Fotografias de Rui Ochôa
Esta é a primeira entrevista do Doutor António dos Santos Ramalho Eanes.
Após uma década de estudo, o ex-presidente doutorou-se em Novembro pela Universidade de Navarra.
"Os políticos desprezam os militares"
Escritório. O general rodeado de fotografias de estadistas com quem privou enquanto Chefe de Estado

EXPRESSO
sábado
27 JAN 07
sábado
27 JAN 07
Sábado, 27 de Janeiro
O general, que completou 72 anos na quinta-feira, dia 25, rompe um longo silêncio – a última grande entrevista foi em 1991 – e abre o livro da sua vida.

Deixou de ser Presidente da República (PR) há 21 anos. O Estado não poderia utilizar melhor a sua experiência e capacidade? A sua e de outras pessoas.No caso dos ex-Presidentes, a colectividade e o Estado "investiram" neles muito, durante muitos anos. Têm o direito de não os utilizar - uma utilização omissa. E têm o direito de os utilizar, aproveitando as suas relações, conhecimentos e capacidades. Qualquer destas posições do Estado é legítima, embora a segunda possa produzir mais benefícios para o Estado.
Nunca se sentiu desaproveitado?Nunca me senti aproveitado! Mas nunca senti problemas de consciência por isso, porque manifestei sempre toda a disponibilidade para colaborar.
Alguma vez integrou comitivas de Estado?Duas ou três vezes. Quando foi da atribuição do Prémio Nobel a D. Ximenes Belo e a Ramos Horta; para a transição de Macau; e ao funeral do Papa.
Os convites foram de .....Jorge Sampaio. Foram as únicas vezes que fui convidado, e aceitei. Embora entenda que um ex-PR poderia ter sido utilizado em acções menos protocolares e de maior efeito e interesse para o país.
"Os políticos desprezam os militares"
Ramalho Eanes em Tróia.
O general foi o primeiro ex-Presidente da República a fazer um doutoramento universitário
Como, por exemplo?Quando houve o conflito na Guiné, poderia ter sido aproveitada a experiência de um ex-chefe de Estado de língua portuguesa para tentar resolver ou impedir que aquela situação acabasse por ter o desfecho dramático que teve. Não estou a dizer que fosse eu, mas obviamente que eu estaria disponível.
Nos EUA, o ex-presidente Jimmy Carter tem sido chamado a desempenhar algumas missões especiais.Não é possível comparar, nesta questão, os EUA e Portugal. Mas é evidente que um ex-PR, sobretudo depois de concluir o mandato, tem condições para desempenhar funções internacionais especiais de importância para o Estado.
O seu apoio à candidatura de Cavaco Silva, como presidente da comissão de honra, é um regresso à vida política?Não. O meu afastamento da acção política é definitivo. O que, obviamente, não significa afastamento cívico. Quando aceito escrever, dar conferências, participar - como aconteceu na regionalização -, estou a fazer uma acção política em que a determinante é a responsabilidade social. É minha obrigação prestar esse serviço à colectividade. Mas voltar à política, no sentido de conquista e uso do poder, não. Embora faça parte da acção cívica exigir que os políticos sejam competentes, verdadeiros e mediadores eficazes entre o presente e o futuro, e, se necessário, tomar posição pública relativamente à coerência e eficácia da sua acção, criticando-a ou apoiando-a.
Fora de Belém, nunca deixou de ser um observador muito especial, como se vê pelo seu doutoramento. Há mais democracia agora do que há vinte anos?Eu diria que a democracia, hoje, está mais normalizada. A democracia representativa só é democracia crescente quando procura implicar cada vez mais os cidadãos na acção política. E sabemos que a participação dos portugueses é muito pequena.
Tem vindo a diminuir?Creio que sim. Tem havido uma diminuição progressiva no associativismo, quer institucional, quer de outra natureza.
A sociedade civil está mais frágil?Está menos participativa, e, portanto, menos capaz de defender as suas posições e interesses perante o poder, mais incapaz de fiscalizar o poder.
Falemos então da sua vida. Em criança, chegou a pensar em ser médico ou sacerdote. Acabou por ser militar, que também é, um pouco, uma função de missão.Sim, quando bem encarada. E digo bem encarada porque na sociedade portuguesa há um certo preconceito contra os militares.
Acha que há?Claramente. O próprio Eduardo Lourenço o diz, no livro "Os Militares e o Poder". E a Natália Correia também o dizia.
Isso não foi resolvido com o 25 de Abril?Não! Basta ver o que se passa com a instituição militar agora. E o tratamento dado aos militares.
Acha que o poder político tem desprezado os militares?Sim, de alguma maneira. Isso acontecia já no meu tempo. A população portuguesa, hoje, não sente que haja uma ameaça externa ao País.
E não há!Não há. Como não sente nenhuma ameaça externa, ela tem uma certa dificuldade em perceber a necessidade das Forças Armadas (FA). Como a população não sente essa necessidade, mas o Estado sente, levanta-se uma certa contradição. A que o Estado responde retirando visibilidade às FA e determinadas condições. Ora, o Estado devia dizer claramente para que quer as FA, qual a sua finalidade. E discutir com a população esse grande propósito - inclusivamente através de uma consulta popular.
Acha que devia haver um referendo sobre o futuro das FA?A democracia representativa está em crise, porque ela é só e pouco representativa. É muito fechada às elites que se cooptam e se reproduzem, não se abre convenientemente à sociedade civil e aos cidadãos, que devem ser obrigados a participar na decisão sobre as grandes questões.
"Os políticos desprezam os militares"
Jardinagem.
Desde que Eanes deixou o Palácio de Belém, há 21 anos, este é um dos seus hóbis preferidos. Aqui, em Tróia
O que acha, em concreto, que o país deveria ser chamado a referendar em matéria de FA?Dizer para que quer as FA. Para serem um instrumento de acção política externa dos Estado, em acções humanitárias, etc.
Que medidas foram tomadas que, a seu ver, revelam um apoucar das FA?Basta ver o sentimento das FA, aliás expresso em manifestações, não só desnecessárias como indevidas, para ver que as coisas não funcionam bem.
Não está de acordo com essas manifestações?Estou perfeitamente contra.
Mas revelam um mal-estar.Revelam. Quando um comando anda à frente das reivindicações razoáveis das FA, a instituição militar não se manifesta. Quando isso não acontece, a instituição militar obviamente que se manifesta. E um comando só pode andar à frente das reivindicações reais se tiver o amparo oportuno do poder político.
Há um divórcio entre o comando e a instituição?Vários erros têm sido cometidos, erros passíveis de alienar a ideologia formal das FA (hierarquia, disciplina, unidade). Aliás, eu tive ocasião de demonstrar, quando vetei a lei de Defesa Nacional, que havia erros e situações que não eram institucionalmente aceitáveis. Como sabe, tive que promulgar a lei, porque ela depois foi reaprovada por uma maioria de dois terços da Assembleia da República. Os meus sucessores, nomeadamente o presidente Sampaio, tiveram ocasião de confirmar que aquela lei de Defesa não se ajusta bem à actual realidade militar e política.
A lei de Defesa Nacional foi o primeiro veto político de um presidente, em 1982. Acha que foi ajustado?Muito ajustado e perfeitamente pertinente.
Em 1953 entrou para a Escola do Exército, onde teve colegas que viriam a acompanhá-lo durante anos e anos.Toda a vida: Melo Antunes, Garcia dos Santos, Loureiro dos Santos, Pimentel, Monteiro Pereira, Silvestre Martins, dezenas de outros. Naquela altura, talvez pelo facto de haver guerra, criou-se entre nós uma amizade muito forte.
Em 1958, foi para Goa. É a sua primeira comissão. Levou consigo um exemplar dos Lusíadas, de 1876.Exacto. Goa foi, para mim, uma grande escola. Aprendi ali muito de bom e muito de mau (de mau porque condicionou, durante muito tempo, a minha visão colonial). Vivia numa companhia comandada por um tenente natural de Goa, que era mais uma família que uma unidade; os soldados e os sargentos eram goeses. Goa era um microcosmos histórico e político muito distinto e distintivo. Para ser um Estado de facto, só lhe faltava o poder político. Todas as grandes funções eram exercidas por goeses - só o governador e o comandante militar não o eram. O meu comandante e 2º comandante de companhia eram goeses. A Administração, mesmo a superior, era goesa, os juízes dos tribunais supremos eram goeses; a escola médico-cirúrgica era dirigida por goeses...
Está a dizer que Goa tinha condições para ser independente?Estou. Havia todas as condições, pois tínhamos realizado ali uma coisa que, como depois tive a ocasião de constatar, não realizámos em mais parte nenhum. Criou-se uma cultura que não era a nossa, mas que não era a indiana. Goa tinha uma personalidade cultural própria. Recentemente, o professor Fausto Quadros comparou Goa a Timor; acho que tem uma certa razão. Aquilo poderia ter sido, não o Estado português da Índia, mas o Estado de Goa.
Goa poderia ter sido independente a seguir à independência da Índia, outorgada pela Grã-Bretanha?Acho que sim. Salazar, depois da II Guerra Mundial, teve todas as condições para conceder a independência a Goa.
Está a responsabilizar Salazar pela invasão de Goa?Responsabilizo inteiramente Salazar por não ter sido capaz de ler a situação geopolítica determinada pelo fim da II Guerra Mundial, em que as colónias não tinham cabimento. Salazar não percebeu isso e acabou por nos condenar à descolonização inglória que produzimos. É o primeiro e grande responsável por isso.
Em todo o caso, o senhor ainda se ofereceu como voluntário, quando da invasão de Goa.Várias vezes me perguntaram em Goa o que pensava sobre o futuro. Jovem tenente, convencido ainda que Portugal ia do Minho até Timor, que podia ser um exemplo no mundo, disse-lhes que Portugal estava para ficar e que eles eram tão portuguesas como eu. Quando se deu a invasão, entendi que, embora sem mentir, os tinha enganado - e que o mínimo que podia fazer era oferecer-me como voluntário.
"Os políticos desprezam os militares"
Casal António e Manuela Eanes na casa da Madre de Deus, em Lisboa.
O general continua a ser um observador atento da política
Não aceitaram?Não. Aquilo foi muito rápido. Não foi ninguém. Nem sequer foram armas nem munições indispensáveis.
Alguma vez voltou a Goa?Não. Tinha aceite um convite para visitar a Índia - e naturalmente iria visitar Goa - quando a senhora Indira Ghandi foi assassinada [EM 1984].
Em 1962, foi para Macau, que não tem nada a ver com Goa. Macau também teria condições para ser independente?Nunca. Macau era realmente um território chinês. Enquanto em Goa havia uma elite, que não era portuguesa, mas também não era indiana - era goesa -, em Macau havia chineses e portugueses. Em Goa, Afonso de Albuquerque determinou o casamento de nobres indianas com portugueses.
A miscigenação...... que demonstra que nós, no fundo, não somos racistas.
Acha que os portugueses não são racistas?Acho. Embora tenham, por vezes, manifestações de racismo. Por razões diversas. Mas não são racistas. A carta do Pêro Vaz de Caminha é uma maravilha; ali não se diz que encontrámos uns tipos escuros e despidos; ele só consegue ver o que eles têm de belo e de diferente em termos culturais. Um indivíduo culturalmente racista tem um outro olhar - não tem aquele olhar.
Mas em Macau não houve miscigenação.É verdade. Uma das minhas grandes decepções, ao chegar, foi ver que, afinal, o modelo de Goa não era o nosso modelo.
Era uma excepção.Não percebi logo que Goa era uma excepção. O que percebi é que aquele não era o nosso modelo - senão teríamos tentado aplicá-lo em todo o lado, em Macau, também.
Macau era uma espécie de reverso da medalha.Era. E para um jovem capitão era claro que Macau poderia ter sido uma coisa totalmente diferente. Poderíamos ter feito de Macau aquilo que os ingleses fizeram de Hong Kong. Mas em Macau não havia nada - era uma aldeia, muito engraçada e bonita...
Uma aldeia de contrabandistas.E de pescadores e comerciantes.
Em 1963, terceira comissão: Moçambique. Saí de Macau para Moçambique, fiquei perto de Nampula, uma área do algodão. Ainda não havia guerra, mas havia já notícias, sobretudo na área de Cabo Delgado.
É a terceira experiência de uma presença colonial diferente.Confirmei que o modelo goês não era um modelo, era uma excepção. Ali tive a ocasião de ver como os colonos portugueses se tinham ajustado à terra e à vida. Havendo uma certa influência dos ingleses, sobretudo da Rodésia, havia também sinais claros de uma certa distinção no relacionamento com os negros. Havia algum paternalismo, que, se quiser, é uma certa forma de racismo, mas é uma forma mitigada, temperada, positiva, em que há muito afecto e mesmo um germe fortíssimo de fraternidade.
Creio que esteve duas vezes em Moçambique?A segunda foi de 1966 a 1968, como oficial de operações, no Norte de Moçambique, em tenente Valadim. Foi aí que capturei o célebre régulo Mataca, que viria a ser libertado pelo Samora. Era uma das grandes figuras gentílicas daquela área. Fizemos uma operação nocturna contra a base e capturámo-lo.
Na altura, era oficial de um batalhão de Caçadores. Esteve em acções de combate?Participei em acções contra bases do inimigo, em operações de recolha de viaturas e levantamento de mortos e noutro tipo de confrontos.
Fazer esta pergunta a um militar é sempre um pouco estranho: tem a sensação de que matou alguém?Tenho.
"Os políticos desprezam os militares"
Livro.
A tese de doutoramento vai ser publicada este ano. O general em Tróia
Sensação ou certeza?A sensação. Nessas operações, quer eles quer nós tudo fazíamos para não deixar mortos para trás. Por duas ou três vezes, uma força nossa abandonou viaturas e mortos, que depois fomos lá tentar levantar. O que é sempre uma situação extremamente delicada, porque se admite que, antes de retirarem, tenham armadilhado os mortos e as viaturas, ou preparado emboscadas, porque sabem que uma outra força há-de regressar.
Quando se dispara, é a sensação de ou ele ou eu?Sim, claramente.
Não se pensa duas vezes?Não, não.
Matar um inimigo nunca lhe tirou o sono?Julgo que o que tirará o sono são situações em que se actua de maneira emocionada, em que se odeia. Tive sempre o cuidado pessoal de, sobretudo depois das operações, pensar que o que eles faziam resultava muito do ambiente de guerra. Tentava fazer como que um exame de consciência, para ver o que tinha feito e evitar ser estimulado por determinadas coisas que tinha visto da parte deles. De maneira que nunca houvesse ódio da minha parte.
Teve muitos mortos entre os seus homens?Vários.
Antes de uma operação, rezava ou benzia-se?Normalmente não. Mas depois das operações, muitas vezes um indivíduo sente que tem a obrigação de dar graças. O que leva um indivíduo a pensar mais na vida e na morte é a morte inopinada de homens ou o assistir aos seus últimos momentos - que é uma situação de extremo desgaste, traumática.
Em 1970 vai para a Guiné. É uma quarta experiência.É realmente uma situação totalmente diferente, porque a colonização na Guiné não foi feita pelos portugueses - foi pelos cabo-verdianos. Era muito estranho que, sendo a colonização feita pelos cabo-verdianos, fossem estes os líderes políticos da guerrilha.
Esteve em combate?Nunca estive propriamente numa unidade combatente. Estive em situações de combate várias vezes, acompanhando operações. Fui a convite de Spínola e fiquei na 5ª Repartição, no Departamento de Radiodifusão e Imprensa, que tinha a seu cargo, para simplificar, a propaganda e contra-propaganda. O que implicava, por vezes, a reportagem na própria acção militar, mas a minha missão não era combater. Depois, fui para Teixeira Pinto substituir o major Passos Ramos - um dos três majores assassinados pelo PAIGC. Spínola tinha tentado uma aproximação com o PAIGC militar. Os três majores envolvidos acabaram por ser mortos, naquela que seria a reunião decisiva.
Esse episódio podia ter mudado o rumo da guerra?Acho que não. O que podia ter mudado era o entendimento de Spínola com o PAIGC, que chegou a esboçar-se através de Senghor - mas que Marcelo Caetano não sancionou.
Foi um assassínio a sangue frio?Sim, sim. Na tradição da Guiné e daquela área dos manjacos.
A unidade que assassinou os majores e os condutores das viaturas que os transportavam era comandada por André Pedro Gomes. Alguma vez se cruzou com ele?Não. Quando visitei a Guiné pela primeira vez, falaram-me dele, mas eu disse que não o queria ver. Se calhar sem razão, mas ainda hoje sinto uma certa repulsa pela sua atitude.
Foi um golpe à traição. Uma traição. A guerra, hoje, não tem regras. A prova é a chamada justiça dos vencedores.
Mas sempre houve!Nem sempre. Houve uma deriva que se manifesta, de maneira indiscutível, depois da II Guerra Mundial. Até aí, havia um certo respeito pelas regras e pela honra dos vencidos. Há aquele célebre quadro de Velázquez, "A Rendição de Breda", extremamente interessante: o vencedor, quando recebe a chave da cidade, faz uma vénia ao vencido.
Mas essa era uma guerra de cavalheiros.Quando a guerra começa a ser total, deixa de ser de cavalheiros. Na II Guerra Mundial, o nazismo cometeu crimes hediondos, que não podem ter justificação nem atenuante. Mas os aliados também cometeram crimes: os bombardeamentos de Dresden e os bombardeamentos atómicos, por exemplo, não visaram objectivos militares. A guerra total visa a destruição do "inimigo", no qual se englobam o seu aparelho militar e a sua população.
Os portugueses também cometeram os seus vandalismos.Não digo que não. A guerra é, por força da sua natureza, uma situação de excessos, em que o homem revela aquilo que tem de melhor e de pior. Isso muitas vezes nem depende propriamente de um comando incorrecto, mas de um medo incontrolável. O homem quando tem medo e quer sobreviver é capaz de tudo. Incluindo actos que são perfeitamente inaceitáveis. E nós, tal como o adversário - e não só na Guiné -, também tivemos actos reprováveis e condenáveis.
Nas primeiras eleições, a 25 de Abril de 1975, votou em quem?
Votei no PS.
Ficou surpreendido com os resultados?
Sim. Estava convencido que o país estaria mais à esquerda.
Já aí, o povo deu...
... deu uma grande lição. Costuma dizer-se que o povo sabe o que quer e nunca se engana. Não é verdade. Mas um povo muito velho como o nosso acaba por ter, por razões de cultura e de subconsciente colectivo, uma grande sabedoria. Em alturas difíceis e complicadas, essa sabedoria manifesta-se e eu julgo que as primeiras eleições foram uma prova de que assim é.
Quando conheceu Mário Soares?
Foi em 1975, antes das eleições, depois de ter deixado a televisão. Aliás, até posso dizer que Mário Soares esteve em minha casa com o Cunha Rêgo. Ele vinha pedir-me que fizesse um estudo para montar um serviço de informações no PS. Respondi-lhe que não podia fazer isso, porque, estando sem funções, continuava no activo; mas que ia pedir a um camarada meu, especializado no assunto e na reserva, que o fizesse. O que, aliás, aconteceu. Até fiz uma coisa um pouco imprudente: ele forneceu-me o estudo, e eu, em vez de o mandar dactilografar, entreguei o trabalho com a letra dele.
Quem era?
Ele depois voltou ao activo.
Houve ainda contactos com Edmundo Pedro, que viria a estar envolvido na distribuição de armas a civis, nas vésperas do 25 de Novembro.
Sempre disse que a distribuição das armas foi da minha responsabilidade. Era eu quem estava à frente do posto de comando e, portanto, tenho de assumir tudo aquilo que o posto de comando estabeleceu. As armas foram distribuídas por responsabilidade minha, mas através do Estado Maior do Exército.
Quantas eram?
Relativamente poucas. Foram entregues ao PS.
Mas a quem, no PS?
Como não fui eu quem que as mandou entregar directamente, não sei quem as recebeu. Sei que terão sido entregues por um general e um coronel.
Que também não quer mencionar...
Já morreram os dois.
Participou em algumas manifestações?
Nunca participei em manifestações.
Também teve encontros com o PPD?
Sobretudo com Castro Caldas, que era um homem muito ousado e empenhado.
E com o MRPP?
Com o MRPP tinha uma ligação privilegiada, que era o Arnaldo Matos, que tinha sido meu alferes em Macau. Eles forneceram-nos muita informação de alta valia. Tinham muita gente nos CTT.
Faziam escutas telefónicas?
Estou convencido que sim. Aliás, naquele período valia tudo.
Obtiveram informações por essa via de grande valia?
Do MRPP sim, muitas.
Houve também contactos com o MDLP.
O MDLP contactou comigo, para me convidar a assumir o comando de uma zona operacional que englobava Lisboa. Respondi que não era possível, porque tinha um compromisso com o "grupo dos nove".
Quem o convidou? Passaram mais de trinta anos e não é possível fazer a história sem nomes...
Costumo dizer que foi um período de grande instabilidade. Muitas pessoas tomaram atitudes por receio ou por motivos ideológicos, e depois mudaram de posição. Tenho um certo receio em estar a apontar nomes. Já uma vez contei que, nas presidenciais, recebi da mesma pessoa três cartas num mês, a exprimir três posições distintas em relação à minha candidatura. E, no contexto de então, percebi e desculpei.
O MDLP foi um aliado objectivo dos moderados.
Mas nunca tive nenhum contacto operacional com eles. Não é que repudiasse inteiramente essa hipótese - não senti necessidade disso. Mas há uma grande diferença entre o MDLP e o ELP. Sendo os dois responsáveis por acções terroristas, o MDLP tinha como líder formal Spínola; o ELP era diferente.
Não era uma espécie de braço armado do MDLP?
Não é a minha opinião. Eram organizações distintas e até certo ponto conflituantes.
Meia dúzia de meses depois do 25 de Novembro, o chefe operacional é candidato à Presidência da República. Alguma vez lhe passou pela cabeça este cenário?
Nunca.
O primeiro líder a avançar com o seu nome foi Sá Carneiro. Como reagiu?
Entendi que havia ali um certo desejo de aproveitamento. A minha ligação afectiva até era com o PS, de maneira que aquela atitude não me agradou muito. Mas não pude repudiá-la.
A sua eleição em 1976 foi apoiada por um leque muito amplo, do CDS ao MRPP. Não era um bloco contraditório?
Contraditória era, mas não numa perspectiva conjuntural. Eu apareci como o homem que tinha liderado a resposta militar contra o PC e a extrema-esquerda e isso justificava este conglomerado tão diversificado.
O seu mandatário nacional foi Raul Rêgo, que viria a ser grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. Significou um apoio formal da maçonaria?
Sempre me preocupei mais com os homens do que com as organizações a que pertencem. O facto de pertencer à maçonaria não teve qualquer influência. Tinha pelo Raul Rêgo estima (que aliás se manteve), pela sua coerência, intransigência e fidelidade a valores - e foi isso que me levou a escolhê-lo.
O mandatário da sua segunda candidatura, em 1980, voltou a ser um destacado elemento da maçonaria, Adelino da Palma Carlos.
Por pura coincidência. Tive uma relação de grande amizade com Palma Carlos; era um homem muito semelhante eticamente a Raul Rêgo.
Aos 41 anos, tornou-se seguramente num dos mais jovens presidentes portugueses. Sentia-se com experiência e capacidade suficientes para o cargo?
Com toda a sinceridade e distanciação que a vida me ensinou, devo dizer que nunca se está preparado para bem governar uma organização, seja ela a família, uma unidade, uma empresa, um país.
Tinha essa noção quando tomou posse?
Tinha a noção de que havia lacunas graves na minha preparação e na de todos os políticos na altura, que era necessário compensar através do estudo e da reflexão, com uma preocupação muito importante: não se tomar decisão nenhuma sem se analisarem todos os vectores, custos e consequências. Pedindo colaborações, com toda a humildade, tentando até uma interacção provocatória com outros que pensam de maneira diferente. Fiz isso sistematicamente. Sem receio de aceitar os conflitos quando eles eram necessários. Nunca entrei num conflito por gosto, mas também nunca recusei assumir responsabilidades para evitar um conflito.
Spínola regressou a Portugal em 1976. A iniciativa foi sua?Obviamente que entendia que o general Spínola devia regressar. E tomaria essa iniciativa, quando entendesse que havia condições. O que aconteceu foi que fui alertado, pelo major António Ramos, que Spínola se ia apresentar no dia tal. Disse ao major Ramos que tinha muito gosto em que ele viesse, mas não naquele momento, porque não estava nada preparado. Mas já não havia nada a fazer e Spínola apareceu. Falei depois com o Governo, com Mário Soares e Almeida Santos; a conversa foi muito simpática, mas obviamente nada fizeram; Mário Soares explicou-me de maneira muito delicada que o problema era meu.
Era seu porquê?
Porque eu era o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Todos os militares que tinham vindo depois de eu ser eleito eram presos, ouvidos e depois libertados. Eu tinha uma relação especial com Spínola, desde a Guiné, mas enquanto Presidente não podia estar a olhar para os cidadãos consoante as minhas amizades. Assim, Spínola, a quem teriam prometido que iria ser recebido com palmas, chegou - e foi preso.
Uma enorme humilhação!
Sim. Spínola falou depois com Palma Carlos, que fora seu primeiro-ministro, a quem transmitiu que tinha havido um equívoco, de que ele não era responsável. É que alguém lhe teria dito que viesse.
Apurou quem foi o autor desse equívoco?
Apurei, mas não quero estar a desenterrar memórias. Spínola acabou por ser interrogado e liberto. Penso que Spínola foi simplesmente envolvido no 11 de Março, que não foi preparado nem conduzido por ele; não foi autor, foi vítima.
Então quem liderou o 11 de Março?
A interpretação dele é que foi uma conjugação objectiva de forças da extrema-direita, que convenceram os militares que estavam ligados a Spínola que ia haver a chamada "matança da Páscoa", e de militares e políticos de esquerda que sabiam disso e aproveitaram. É uma versão que tem muita razoabilidade.
Outro ex-Presidente que regressou durante o seu mandato foi o almirante Américo Tomás, que estava no Brasil. Foi uma decisão entendida como visando a pacificação da sociedade portuguesa.
Quando estava para ir ao Brasil e me disseram qual era a situação dele, verifiquei que era relativamente humilhante. O almirante não tinha fortuna nem dinheiro no estrangeiro e, coitado, vivia um pouco a expensas da nossa comunidade. Entendi dizer-lhe que, se quisesse, podia regressar, porque não havia nada contra ele. E resolveu voltar. Naquela altura, levantaram-se muitas vozes contra.
E Marcelo Caetano?
Gostaria muito que tivesse voltado. Até porque tinha por ele uma consideração especial.
Porquê?
O Pulido Valente diz que era o único homem do Estado Novo com um pensamento próprio. Eu costumo dizer, além disso, que era o único com personalidade e convicção ética suficientes para afrontar Salazar. O grande problema dele foi ter uma estratégia política em que não dispunha de liberdade de acção por implicar tempo, de que ele não dispunha, e estar subordinado à vontade do Presidente, com quem não podia contar. Percebia que a democracia em Portugal era extremamente difícil, por uma razão simples: Salazar tinha desertificado o campo oposicionista, e, ao fazê-lo, concedera aos partidos clandestinos condições privilegiadas. Em boa verdade, Salazar protegeu objectivamente o Partido Comunista e os partidos que tinham a possibilidade de viver na clandestinidade.
Protegeu entre aspas...
Sim, protegeu objectivamente. Ele perseguia-os da maneira que se conhece; mas a verdade é que esses partidos tinham todo o espaço da oposição, porque não era possível nenhuma oposição legal. O Marcelo temia que, legalizadas as formações partidárias, o PC rapidamente se impusesse.
O que não aconteceu...
Pois, a História veio a demonstrar que não era assim. Cheguei a estar uma vez com ele. Os alunos fizeram-lhe uma homenagem e a minha mulher - que fora sua aluna e tinha uma grande consideração por ele - também decidiu ir. Isto foi já em 1973.
Antes ou depois do Congresso dos Combatentes?
Depois. E já havia reuniões dos capitães. A minha mulher pediu-me para também ir, mas eu disse que não podia: "então eu ando a conspirar contra ele e vou agora a uma homenagem!?" De maneira que não fui - e a minha mulher acabou por também não ir. Terá ficado arrependida e escreveu uma carta a Marcelo. Uma carta cujo conteúdo não conheço - não quis ler.
Não conhece essa carta?
Ainda hoje não conheço. Entretanto, fui mobilizado para Santa Margarida. Um dia telefonaram-me de S. Bento, a dizer que o Presidente do Conselho me recebia no dia tal. Como não estava nada interessado, disse, o que aliás era verdade, que naquele dia não podia, porque estava a substituir o comandante do batalhão. Daí a pedaço, voltaram a telefonar, a perguntar quando estava disponível - e não tive possibilidade de escapar. Foi, aliás, uma entrevista extremamente interessante.
Foi um encontro a sós?
A sós. Ele sabia que tinha estado com o Spínola na Guiné e aproveitou para responder às suas teses. Quando ele falou no Exército, eu disse-lhe que havia dois: aquele que repetia comissões e que concluía que não havia uma solução militar para a guerra; e o que passava a maior parte do tempo aqui, que fazia cursos no estrangeiro, que se actualizava. À saída, disse-me: "Então, senhor major, sei que vai para Angola. É a sua terceira comissão?". "Não", respondi, "é a quinta!". Conclui que ele não sabia que os militares da minha idade já iam na quinta comissão.
Tomou alguma iniciativa para ele regressar?
Não. É uma falta, uma omissão, que lamento. Acho que devia ter tomado. Se calhar não a tomei um pouco incoerentemente e talvez por um certo comodismo.
Receou que houvesse um grande protesto?
Não, o protesto não seria maior do que o que se verificou quando veio o almirante Tomás (que foi grande), ou quando veio o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros. Franco Nogueira regressou depois de ter falado comigo e isso também causou uma certa celeuma. Aceitei que o nosso embaixador em Londres o tivesse convidado para um jantar em que eu estava. O embaixador perguntou-me se não via inconveniente em que ele estivesse e eu disse-lhe que não.
As suas relações com vários primeiros-ministros foram marcadas por sérias tensões e até rupturas.
Eu não sou um homem de conflitos, mas não sou de evitar conflitos por razões de conveniência.
Quando é que as suas relações com Mário Soares começaram a deteriorar-se?
Quando comecei a exigir eficácia governativa. A revolução tinha sido feita com determinados objectivos, que, aliás, o PS tinha inscrito no seu programa. Mas quando nada disso estava a ser cumprido com eficácia, tinha de fazer pressão sobre Mário Soares. Ele sabia qual era o modelo: pressão no gabinete, pressão pública e, em último caso, demissão. Mário Soares tinha um entendimento diferente das funções presidenciais. Achava que o PR deveria ser uma espécie de Rainha de Inglaterra. É evidente que eu tinha um entendimento diferente da função.
A tensão surgiu logo no I Governo.
Sim, até atingir a ruptura quando decidi demitir o II Governo. Mário Soares pretendeu parlamentarizar o regime. Conhecendo perfeitamente a natureza do regime semipresidencialista, e estando convencido de que ela é a melhor solução, eu não podia aceitar a parlamentarização e tinha que me opor a ela, com as armas políticas que tinha. Dizia-se que havia uma certa inimizade entre Mário Soares e eu. Eu sempre disse que, da minha parte em relação a ele, havia uma oposição política.
Que não se transformou em inimizade?
Ter-se-á transformado num certo afastamento, numa falta de simpatia - o que não é inimizade. Nem sei bem o que é inimizade.
Nunca o incluiu entre os seus inimigos?
Não. Mas também nunca o incluí entre os meus amigos. Foi uma pessoa com quem cheguei a ter grande proximidade ideológica e uma certa afectividade, mas nunca passei daí à amizade. Porque a amizade é uma escolha, é uma selecção. Com Salgado Zenha, por exemplo, tive uma grande amizade. Com Zenha eu iria a qualquer parte, nunca discutiria uma liderança - dirigisse ele, dirigisse eu...
As relações com Sá Carneiro também foram tensas.
Quando ele constituiu a Aliança Democrática, propôs-me que fosse eu a liderar. Isso consta de apontamentos de reuniões feitas com ele, tomadas pelo meu assessor jurídico. Tive de dizer que não podia participar naquele projecto, até por ser PR e, sobretudo, por ser CEMGFA e Presidente do Conselho da Revolução. Sá Carneiro entendeu então que deveria reduzir a minha capacidade de obstaculizar a concretização do modelo que ele defendia. Isso criou o conflito que se conhece.
Irredutível?
Sim. Ele queria um presidente, uma maioria e uma Constituição - e entendia que eu era um obstáculo decisivo à realização desse projecto. Portanto, não havia entendimento possível. E optou pela dramatização.
Fez isso até ao limite!
E muito bem. Utilizando alguns instrumentos...
Artilharia pesada?
Sim, por exemplo quando resolveu levar a um conselho de ministros o candidato presidencial Soares Carneiro estava a fazer uma provocação clara ao PR.
E com os outros primeiros-ministros?
Mota Pinto foi encarregado de governar com um "caderno de encargos", de que contava, nomeadamente, criar condições para a participação partidária no seu governo ou um entendimento partidário que sustentasse um novo governo. Quanto a Pinto Balsemão, cheguei a fazer o que, em boa verdade, institucionalmente, não devia: aceitar o seu pedido de demissão e convidá-lo de novo a constituir governo. Entendi, então, que, apesar dos ataques que me dirigia, era minha obrigação dar-lhe uma nova oportunidade para resolver a questão intra e interpartidária e reajustar a sua estratégia governamental. Com Maria de Lurdes Pintasilgo dei-me bem, embora fosse um período muito especial. Com Nobre da Costa, num período especialíssimo, muito bem.
Um dos pontos mais controversos foi a gravação das audiências com Pinto Balsemão.
O meu propósito não era melindrar o primeiro-ministro. Era dar-lhe um instrumento, uma arma que ele pudesse utilizar para impedir ultrapassagens e evitar deturpações na comunicação social. Isto dar-lhe-ia força para dizer a colaboradores seus para não porem coisas nos jornais que não fossem inteiramente verídicas.
Na sua reeleição, foi apoiado por um bloco político inteiramente diferente.
Não foi completamente diferente: fui apoiado pelo PS!
Parte do PS. Mas já sem apoio do PSD e do CDS, que apoiaram Soares Carneiro.
Sem o apoio das direcções. Há que fazer uma certa destrinça entre as direcções e os votantes. Eu não teria sido eleito se não tivesse um número muito significativo de votantes desses partidos.
Acabou por ter o apoio do PCP.
O PC resolveu apoiar, por razões que se prendiam com os seus interesses e estratégia.
Essas eleições foram marcadas pela tragédia de Camarate. Na altura, escreveu-se que o principal beneficiário da morte de Sá Carneiro fora o senhor.
Essa leitura é enviesada. Todas as sondagens me davam a vitória, com uma folga razoável. Um incidente emotivo como aquele poderia afectar a orientação de voto. A prova de que esta interpretação é correcta é que muita gente propôs que adiasse as eleições e deixasse serenar o ambiente. Eu disse que não: estão marcadas, confio na serenidade dos portuguesas e na sua intuição para saberem o que querem. Acabei por ser eleito, mas por uma margem mais pequena. Mas nunca se fala no funeral! Foi um comício político que, quer a memória deles, quer a nossa cultura de respeito pelos mortos, nada justificava.
Fez lembrar o funeral de Salazar.
Foi pior. Vivia-se em democracia e estava-se numa altura eleitoral, de reflexão.
O presidente da RTP era Proença de Carvalho.
Demonstrou uma vez mais a sua capacidade e eficácia. Conseguiu uma mobilização de meios na televisão que eu, que tinha sido presidente, julguei que não seria possível.
Camarate foi há 27 anos. Foi acidente ou crime?
Segui de perto, sem nunca me intrometer, todas as averiguações. A minha conclusão é que foi um acidente. Não se trata de uma certeza - é apenas uma convicção. Se não foi acidente, devia-se ter o cuidado de demonstrar, não a quem interessou, mas quem teria estado por detrás.
Isso não foi feito?
Criou-se uma situação que acabou por ser negativa para a democracia. Uma averiguação que não conduz a certezas definitivas...
... deixa sempre suspeições.
O pior é que a suspeição acaba por cobrir tudo, desde os governos à Judiciária. Além disso, deixaram partidarizar a questão: sempre que há eleições vem a história de Camarate. Numa primeira fase, a autoria moral estaria ligada à esquerda do Conselho da Revolução e ao PC. Depois de umas declarações do senhor Esteves, em que disse que as suas ligações não eram com o PC, mas com a direita (e explica até ligações privilegiadas com determinada força partidária), a tese mudou e passou a ser gente ligada ao Eanes e da direita. A verdade é que a gente que têm apontado trabalhou sempre com a direita - e até com a direita partidária.
José Esteves merece-lhe alguma credibilidade?
Não atribuo às suas declarações qualquer credibilidade.
Em 1984, promulgou a lei do aborto, não deixando de defender um referendo sobre a matéria.
Na altura, fiz uma comunicação ao país, em que dizia que promulgava a lei por ser essa a minha obrigação institucional, mas que o fazia com alguns problemas de consciência. Ou seja: não concordava, mas, por razões de carácter político e institucional, aceitava. Há um artigo muito interessante no Expresso, da autoria da minha mulher, que diz que uma sociedade só é solidária quando tem pela vida um respeito muito grande. O direito à vida é fundamental. Isto não quer dizer que seja contra a despenalização do aborto - eu sou pela despenalização. Mas sendo o aborto um problema da consciência de cada um, que a sociedade não deve penalizar, a sociedade não pode deixar de dizer que reprova a sua prática, social e moralmente. A minha mulher diz nesse artigo que há no direito romano uma figura que é a do crime sem pena, que também está previsto no código penal brasileiro, em que se estabelece que «não há pena sem crime, mas pode haver crime sem pena». Julgo que poderíamos incluir o aborto na área do crime sem pena. Portanto, sim pela despenalização do aborto, não pela descriminalização. Dito de outra maneira: sendo um problema de consciência, a sociedade não o deve levar a tribunal e não deve condenar as mulheres.
E perante a pergunta que é colocada no referendo?
A minha posição é claríssima: sou pela despenalização, sou contra a descriminalização.
Quando deixou a presidência, apoiou na primeira volta a candidatura de Salgado Zenha. E na segunda, entre Soares e Freitas do Amaral, em quem votou?
Mário Soares. Mas devo acrescentar que nunca mais votei nele.
Um ano antes, nas eleições de 1985, o PRD, nascido do nada mas à sua imagem, teve uns surpreendentes 18%. Ficou surpreendido?
Surpreendido e preocupado. Surpreendido, porque não estava à espera; preocupado, porque o PRD não tinha estrutura nem rodagem para gerir essa votação. O PRD passou rapidamente de um pequeno grupo, com uma grande unidade política, para um grupo grande, com muitas contradições. Além disso, toda aquela gente de grande qualidade que veio para o partido merecia uma liderança diferente da minha. Tinha grande dificuldade em me ajustar à condução de um partido, que exige uma grande flexibilidade.
Não se via a si próprio como líder partidário?
Logo que passei a exercer actividade partidária, vi que não tinha nem predisposição nem condições - ou, se quiser, qualidades - para dirigir um partido.
Daí o ter-se demitido logo a seguir às eleições de 1987, quando o PRD baixou para 4,9%?
Creio que acabaria sempre por me demitir pelas razões que lhe apontei. Mas demiti-me porque havia uma derrota e eu entendo que na política, quando um partido é derrotado, o seu líder deve tomar a iniciativa da substituição. Enfim, o partido nasceu ou demasiado tarde ou demasiado cedo.
Dos estadistas estrangeiros que conheceu durante os dez anos de PR, qual o fascinou mais?
O que mais me encantou - que é diferente de fascinar - foi o rei Balduíno, da Bélgica. Era um homem bom, de uma enorme cultura e grande proximidade. O que mais me seduziu foi o Tito. Era um líder; até lhe achava piada, porque, como devia pensar que eu era um catraio, permitia-se dar-me conselhos...
E entre os lusófonos? Atrevo-me a dizer que foi o Samora...
Todos eles tinham características muito diferentes. Samora, homem de grande inteligência - a comprová-lo a impressão favorável que causou em Miguel Torga quando, no decorrer da sua visita oficial a Portugal, se encontraram em Coimbra -, era um político intuitivo. Intuía as situações, os seus motivos e propósitos, e respondia-lhes com acerto e afectividade. A nós, portugueses, impressionava-nos, ainda, pelo carinho que dispensava a Portugal e a tudo o que dissesse respeito à cultura e ao presente dos portugueses. Aristides Pereira é um homem de uma serenidade e racionalidade muito grandes - para ele, não havia problemas, havia erros, e os erros podem-se sempre resolver. Agostinho Neto impressionava, porque era um negro e em muitas coisas era mais português que nós. Conhecia tão bem a nossa literatura como sabia onde se comiam boas tripas e se bebia bom vinho - coisas que eu não sabia... Tinha do país um conhecimento e uma afectividade impressionantes - e desconcertantes. O líder do MPLA falava de Portugal como se porventura esta fosse a sua terra.
E Nino Vieira?
É mais difícil de definir. Quando estive na Guiné, era um chefe de guerrilha, aliás com prestígio.
Mas depôs um chefe de Estado que era seu amigo!
Eu tinha realmente uma relação especial com Luís Cabral. Vou cometer uma inconfidência, que espero o Luís Cabral me perdoe. Quando estive na Guiné pela primeira vez, o Nino era primeiro-ministro. As conversas com o Nino foram muito cordiais, ele foi muito cuidadoso e elegante. Mas eu, apesar disso, tive a ousadia - ou a leviandade - de perguntar a Luís Cabral se tinha confiança absoluta no seu primeiro-ministro. Sentia que ele não devia ter esse tipo de confiança. O Luís Cabral, com aquele coração africano, disse-me: "Oh Presidente Eanes, é como se fosse meu filho!" Mais tarde, ele recordou essa conversa. Enganou-se.
E dos nacionais? Qual foi o que mais o encantou - para não dizer fascinou?
O primeiro-ministro foi Nobre da Costa. Um homem com quem mantive uma boa relação foi Cavaco Silva. Sá Carneiro era uma figura apaixonante, porque fazia da política um drama. E a Maria de Lourdes Pintassilgo, que fazia da política uma missão apaixonante.
O melhor e o pior dos seus dois sucessores: Mário Soares e Jorge Sampaio.É uma pergunta interessante, sobre a qual não me pronuncio. De Mário Soares, basta dizer que não votei nele na sua reeleição. E também não votei em Jorge Sampaio - como se sabe, na primeira eleição apoiei Cavaco Silva. Sampaio é um homem por quem tenho consideração e que, creio, procurou fazer o melhor.
Tem certamente acompanhado a situação no Iraque. Como viu a condenação de Saddam Hussein?Sou, em absoluto, contra a pena de morte. Decide-se que um homem falhou definitivamente. Mas quem tem o direito de dizer que um homem falhou assim? Ninguém! A mais bela definição de Homem - a de Rousseau - é que ele é um ser perfectível, capaz, pela sua própria natureza, de se aperfeiçoar sempre, por mais nefasto que tenha sido o seu passado. Além disso, o homem tem direitos naturais que ninguém pode retirar. E o direito básico, primeiro, é o direito à vida. Digo mesmo que não há uma democracia real onde há pena de morte, onde o Estado assassina, legalmente, cidadãos.
É uma referência directa aos EUA?Com certeza, e ao Iraque, claro. Tudo isto me confrange um pouco. Acho que a Europa não pode, à Pôncio Pilatos, limitar-se a dizer que é contra a pena de morte. Deve utilizar os meios que tem à disposição para se bater contra a pena de morte.
O que poderia ter feito?Pressão sobre os EUA e o Iraque, pressão na ONU. Devia fazer, disto sim, uma cruzada.
Portugal devia ter tomado uma atitude...... mais forte e mais clara. Mas não podia ter ido muito longe. A Europa é uma união de estados, onde Portugal tem um fraco peso. Aliás, a morte apressada de Saddam nem sequer beneficia os EUA. Permitiu, até, que se lançasse a suspeita de que se procurou evitar um julgamento do Saddam que trouxesse à luz tudo todas as grandes cumplicidades com ele.
Dos próprios EUA?Claro, e dos países ocidentais que lhe venderam armamento. Na política internacional, infelizmente, como diziam Rousseau e Kant, as relações ainda permanecem no estado de natureza - é a força que as rege.
Em 1974, vai para Angola, que constitui uma nova experiência. Tinha ido para Angola em fins de Janeiro; estava junto da fronteira com o Congo, como 2º Comandante de um batalhão.
Uma área da FNLA.Sim, mas uma área de passagem, de infiltração.
Onde estava no 25 de Abril?Na minha unidade, a Leste de Salvador.
Sabia da data?Não sabia da data, mas soube logo do acontecimento. Não fiquei nada surpreendido.
Fizeram algum cessar-fogo?Não. Logo a seguir, fiz reuniões com todas as companhias. Pelo menos numa houve uma manifestação da parte de alguns sargentos milicianos, que não queriam combater mais. Eu tive a ocasião de dizer que as ordens eram claras: enquanto não houvesse outras indicações, tudo continuava na mesma. Íamos reduzir as acções ofensivas, mas, nas que efectuássemos, todos teriam de actuar empenhadamente.
Em Julho, já está em Lisboa.Era propósito de Spínola que eu viesse para a televisão, mas depois houve problemas políticos e fiquei na Comissão Ad-Hoc para a Imprensa.
Era uma espécie de comissão de censura.Era - não se pode estar a esconder.
Justificava-se?Acho que sim. Em situações como aquela, de estabilização institucional, deveria ter havido a preocupação de estabelecer um tempo, perfeitamente definido, em que houvesse algumas limitações à liberdade de informação. A democracia não se institui por decreto.
Mas aprende-se, treina-se...A democracia é o resultado de uma longa e interminável aprendizagem. Havia determinadas instituições que eram indispensáveis para que o país funcionasse. Uma delas era a instituição militar. Portanto, era necessário não perturbar a instituição militar, que não sabia ainda bem o que era a democracia. E havia notícias que eram de tal maneira provocantes à instituição, que tinham de ser obviamente censuradas.
Depois vai para a RTP, como director de programas.Foi a parte mais interessante da minha estadia na RTP. Contactei com homens como o Prado Coelho, Pulido Valente, José Sasportes, Sidónio Pais, Sousa Gomes, Joaquim Letria, Álvaro Guerra, Adelino Gomes... Foi um período de intensa aprendizagem.
Depois, passou a presidente.A seguir ao 28 de Setembro. A situação era muito mais complicada, porque a televisão era uma caixa de ressonância do universo político português.
Era um palco de luta política?Terrível.
Diária?Em cada hora e a todas as horas.
Demitiu-se logo no dia 12 de Março de 1975.Demiti-me porque na Assembleia do MFA de 11 para 12 de Março foi pedida a minha cabeça.
Quem?Creio que foi o próprio primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, com quem tinha tido vários incidentes. Um deles foi quando me propôs que o director de programas fosse um militar da sua confiança - e eu não aceitei. Outro incidente teve a ver com uma notícia do telejornal. Eu ia todos os dias ver o alinhamento do telejornal, porque havia sempre uma ou outra golpada.
O presidente da RTP via o alinhamento do telejornal? Hoje, isso é inconcebível!Mas hoje também é perfeitamente inconcebível - se calhar não é... - que alguém encomende notícias ao telejornal. Um dia, havia uma notícia que me pareceu muito estranha. Perguntei como é que aquilo tinha aparecido e o jornalista disse: "Foi o primeiro-ministro que telefonou". Eu não aceitei - e disse-lho - que ele enviasse directamente notícias para o telejornal, sabendo que havia um militar (que era eu) à frente da televisão. Vasco Gonçalves aproveitou aquela assembleia para tentar a minha saída da RTP. Alguns houve que até advogaram a minha prisão.
Quem?Liguei tanta importância a isso que já nem sei. Bom, mas quando soube disso, no dia seguinte, achei que não tinha condições para continuar na televisão e pedi a demissão.
Voltaria a fazer isso? Em momentos conturbados como aqueles, e numa lógica de resistência, há postos que não se devem abandonar!
Não voltaria a fazê-lo. Para mim, naquela altura, talvez por ingenuidade, a ética e a política tinham que andar de mãos dadas. Infelizmente isso não é verdade. A minha experiência diz-me, hoje, que, quando se tem um grande propósito, não se deve permitir que questões pessoais interfiram em decisões políticas. Aquela posição era politicamente importantíssima para o grupo moderado - e eu não devia ter-me demitido.

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