domingo, 1 de julho de 2012

muçulmanos em portugal



 de diálogos lusófonos


MUÇULMANOS NA MARGEM: A NOVA PRESENÇA ISLÂMICA EM PORTUGAL
Nina Clara Tiesler, Mestre em Letras, desenvolve doutoramento em Filosofia, no Departamento de Estudos das Religiões e do Instituto de Sociologia da Universidade de Hannover. NinaClaraTiesler@aol.com

Resumo A Europa comporta hoje cerca de 15 milhões de muçulmanos, 30 mil dos quais em Portugal. Durante as últimas décadas, os muçulmanos da Europa moderna revelaram capacidades notáveis na construção de comunidades e nos processos de institucionalização. Ou seja, adoptaram certos hábitos e padrões europeus, mantendo ao mesmo tempo costumes e padrões religiosos e culturais que diferem da cultura dominante. Isso também se aplica aos muçulmanos de Portugal. Trabalhando alguns dos factores que afectaram a relação entre a minoria muçulmana e a sociedade dominante, tentarei desenhar uma imagem mais pormenorizada da NPI em Portugal.
Palavras-chaveMuçulmanos, minorias religiosas, integração e marginalização, classes médias

A primeira questão que surge de uma perspectiva de comparação com os europeus é: quais são as especificidades da nova presença islâmica (NPI)1 em Portugal?2
O número comparativamente mais alto de ismaelitas é um dos vários pontos que transformam o bastante marginal caso português num caso muito interessante. Outro aspecto de interesse é a herança histórica de Al-Andaluz e da reconquista. Ela sugere a riqueza de uma comparação entre a actual situação de Portugal e a de Espanha. Os dois países partilham experiências históricas muito semelhantes com o Islão — mas as consequências nos dias de hoje são diferentes.
Na verdade, ambos os temas mereciam uma apresentação distinta e doravante só serão mencionados em alguns aspectos cruciais. Esta comunicação concentra-se nos fenómenos mais patentes sobre os muçulmanos em Portugal: a composição, estrutura e papel extraordinários da comunidade sunita em Lisboa chamam a atenção para a NPI em Portugal, a qual tem sido praticamente ignorada nos recentes estudos comparativos sobre muçulmanos na Europa.
Este é realmente o aspecto que confere especificidade ao caso português. À semelhança do que acontece noutros países da Europa, os muçulmanos em Portugal apresentam-se activos em questões sociais, culturais e religiosas, mas contrariamente à situação noutros países europeus, aqui a nova constelação sociocultural não deixa ver aquilo com que a investigação social tem que se defrontar: os campos nevrálgicos comuns que se evidenciaram no novo encontro entre muçulmanos e não muçulmanos nas seculares e cristãs sociedades capitalistas europeias. Em Portugal, este encontro parece não só não ter suscitado tensões como não atraiu especial atenção. É difícil encontrar um país ocidental em que a NPI — seja qual for o seu tamanho — seja tão consistentemente ignorada pela imprensa, investigação social, negociações políticas ou diálogos interculturais/religiosos. Ao analisar o fenómeno do Islão na actualidade portuguesa, perante aquilo que vemos, a nossa curiosidade vai para o que não se vê: a ausência de manifestações contra a abertura de mesquitas, de temas controversos no parlamento, na administração local ou na imprensa, de oposição aos lenços na cabeça, de debates relativamente ao reconhecimento oficial ou padrões de secularismo, de discursos académicos sobre "anti muçulmanismo", "islamofobia", ou o papel do Islão nos processos de marginalização social e minorias étnicas. Há que perguntar porquê.
À primeira vista, a resposta radica no número de imigrantes e cidadãos muçulmanos em Portugal, que é realmente muito pequeno comparado com outras NPI. Isto explica que não haja um parlamento ou conselho muçulmano, como em Inglaterra, nem organizações estudantis muçulmanas, grupos femininos muçulmanos e nenhuma negociação sobre educação islâmica em escolas públicas, como existe na Alemanha, Áustria, Espanha, Inglaterra, etc. Mas eu contesto que o pequeno número de muçulmanos, que representam aqui a maior minoria não cristã, seja a única explicação para esta tão encorajadora situação portuguesa de coexistência socioreligiosa. Penso que a verdadeira razão pode ser encontrada tanto no desenvolvimento específico português sociocultural — do qual a NPI foi uma parte integrante e uma consequência — como nas condições e capacidades específicas da própria presença muçulmana em Portugal. Para evitar mal-entendidos é preciso notar que o silêncio que rodeia a minoria muçulmana em Portugal não significa que ela seja ignorada ou privilegiada. A minha tese é que ela foi negligenciada em vários contextos e por várias razões.
Quais foram as circunstâncias que provocaram esta marginalização pública? Qual o papel que desempenharam as principais partes envolvidas, nomeadamente os grupos muçulmanos, a imprensa, as políticas de minorias, as dinâmicas na esfera política e os outros grupos minoritários? Trabalhando alguns dos factores que afectaram a relação entre a minoria muçulmana e a sociedade dominante, tentarei desenhar uma imagem mais pormenorizada da NPI em Portugal.

caso português numa perspectiva comparativa europeia
Só em meados dos anos 80 os académicos começaram a ver possibilidades válidas de pesquisar as questões levantadas pela presença muçulmana na Europa. A princípio, os estudos eram principalmente empreendidos por países com maior densidade de população imigrante, tal como a França, a Inglaterra, a Alemanha, os Países Baixos, a Bélgica e, por vezes, a Suécia.3 Em 1992, quando Nielsen apresentou o primeiro estudo comparativo completo sobre muçulmanos na Europa Ocidental, queixou-se da existência de pouca investigação relativa à presença muçulmana no sul da Europa (Espanha, Itália, Portugal, Áustria e Suíça).4 Durante a década de noventa, esta ausência de investigação básica5 foi certamente colmatada relativamente à NPI em todos estes países: mas NIP mais pequenas, tais como as da Irlanda, Luxemburgo e Portugal, ainda não foram incluídas nos estudos comparativos.6
Uma primeira aproximação
A razão principal para esta falta substancial de investigação relativamente à NPI em Portugal é seguramente o pequeno número de muçulmanos. Existem hoje em França entre 3 e 4 milhões de muçulmanos, quase 7% da população total. Entre 2 e 2,5 milhões de muçulmanos vivem na Alemanha (2,5% a 3%) e aproximadamente 1,5 milhões na Grã-Bretanha (2,6%). Mesmo os países que têm uma população muçulmana mais pequena, como a Irlanda que tem 20 mil e o Luxemburgo que tem 10 mil, mostram uma percentagem mais alta de muçulmanos relativamente ao total da população (para comparar: Irlanda 0,6%; Luxemburgo 2,6%; e Portugal, no máximo 0,3% (Kettani, 1996: 15).
Outra razão tem que ver com a agenda académica de Portugal. Cerca de 10 anos após a revolução e o processo de descolonização, a partir de meados dos anos 80, a investigação social em Portugal começou progressivamente a concentrar-se em novos temas de pesquisa provenientes do enorme fluxo imigratório. Havia outras coisas mais urgentes que a NPI. Embora a presença de grupos religiosos não cristãos tivesse sido um fenómeno totalmente novo, desempenhava no máximo um papel secundário nos estudos sobre grupos imigrantes etnicamente definidos, que eram inseridos em projectos académicos por urgência de razões socioeconómicas. E assim, a maioria dos estudos focou primeiro, e acima de tudo, os cabo-verdianos, correspondentes ao maior grupo de imigração, e outros grupos africanos, tais como os refugiados da guerra civil de Angola.
O primeiro e de longe o maior grupo de imigrantes muçulmanos vem de Moçambique (a maioria de origem indiana) e da Guiné-Bissau. Na sua maioria, os muçulmanos de origem indiana tinham sido comerciantes bem estabelecidos ou tinham pertencido a sectores laborais favorecidos em Moçambique. Vieram para Portugal graças à africanização e mais tarde devido à guerra civil. As condições de integração profissional eram melhores do que, por exemplo, as da maioria dos imigrantes económicos de Cabo Verde. Obviamente os comerciantes resolveram muito bem os obstáculos que tiveram de ultrapassar para se restabelecerem na sua profissão. O perfil de imigrantes chegados posteriormente da Guiné-Bissau mostra de novo uma percentagem notável de estudantes (Saint-Maurice e Pena Pires, 1989), os quais em geral têm melhores capacidades económicas e de integração do que os refugiados da guerra civil de Angola, trabalhadores indiferenciados.7
Tanto quanto pude verificar, a maioria desses muçulmanos em Portugal, vindos da Índia e de Moçambique, são oriundos da classe média (devido às habilitações e qualificações laborais) e trabalham em actividades tradicionais e terciárias modernas (principalmente comércio e banca). Comparados com os imigrantes dos PALOP na perspectiva da ocupação e emprego, os nacionais de Moçambique eram uma excepção (Baganha, 1999).Aproximadamente um terço dos muçulmanos em Portugal, principalmente as minorias africanas e recém-chegados, vivem em pobreza económica.8 É visível que menos muçulmanos de ascendência indiana do que hindus vivem em bairros muito pobres de Lisboa. Enquanto as condições de vida dos imigrantes económicos de países muçulmanos, especialmente em fluxos de imigração recentes para Espanha e Itália, parecem muitas vezes problemáticas e provocam tensões, os grupos heterogéneos de muçulmanos, em Portugal, não puseram problemas do ponto de vista socioeconómico. Até hoje os grupos muçulmanos foram secundarizados em relação a outras minorias, no domínio da pesquisa social.9 Por razões compreensíveis, a actual situação em Portugal chama mais a atenção, por exemplo, para os ciganos e timorenses.
Mesmo assim, se se contarem todos os muçulmanos em Portugal, incluindo a heterogénea comunidade sunita e os ismaelitas, tem-se no máximo cerca de 38 mil (em comparação, por exemplo, com 12 mil hindus).10 Além disso, a grande maioria deles vive em Lisboa e respectivos subúrbios, principalmente em certos bairros da periferia e na Baixa. Assim, é certamente verdade que os muçulmanos e o seu modo de vida são visíveis em Lisboa, tal como o são noutras metrópoles europeias.11 Aparte a zona da Grande Lisboa, podemos também estudar com êxito a vida muçulmana portuguesa em Loures, Vila Franca, Coimbra, Porto, Almada, Portimão e Faro.
Como noutros países da Europa Ocidental, a NPI em Portugal é um fenómeno recente de imigração. De acordo com o seu tamanho, as comunidades islâmicas portuguesas têm sido tão bem sucedidas como as suas congéneres no resto da Europa em estabelecerem a sua rede de relações e em se institucionalizarem.
Que mais paralelos, diferenças e questões sobre a NPI portuguesa se retiram de uma perspectiva comparativa europeia?
No discurso sobre muçulmanos na Europa, usamos o conceito nova presença islâmica para abranger o fenómeno histórico recente de uma população muçulmana em constante crescimento e as suas expressões culturais multifacetadas nos países que, durante a guerra fria, compunham a "Europa livre". Este conceito aponta para o facto de não estarmos a tratar de uma primeira e única presença islâmica na Europa. Pelo contrário, ajuda a distinguir as novas culturas muçulmanas nas sociedades europeias da presença tradicional islâmica na Europa Oriental e do Sul(por exemplo, nos Balcãs), por um lado, e da presença islâmica histórica na Península Ibérica, por outro. Esta última, os oito séculos de Al-Andaluz, pertence à história medieval e deixou uma rica herança cultural — mas nenhuma população muçulmana. Em meados do curto século XX (short twentieth century) (1914-1989), a imigração intensificou-se por razões diplomáticas e objectivos educacionais, bem como devido aos processos de descolonização e às migrações económicas dos países muçulmanos. Estes processos iniciaram o que se tornou uma presença muçulmana vasta em toda a Europa de hoje.
Além disso, o termo tem algumas conotações reveladoras, que apontam para características básicas do nosso tema. Falamos numa presença islâmica, porque os muçulmanos e o seu modo de vida se tornaram visíveis e representam uma dinâmica sociopolítica e um factor cultural nas sociedades europeias. O que está actualmentepresente na Europa são formas divergentes do quotidiano muçulmano e os processos de desenvolvimento em curso de culturas islâmicas em diferentes ambientes novos. Razão porque mal se pode falar de "o Islão na Europa", porque nem Islão nem Europa podem ser vistos como corpos monolíticos.
O outro aspecto novo das culturas islâmicas na Europa moderna tem o seu exemplo vivo na NPI portuguesa. A herança cultural árabe da presença islâmica histórica é bastante visível na arquitectura e na linguagem, por exemplo, mas a presença muçulmana no Portugal de hoje não tem qualquer ligação sociodemográfica com a anterior população muçulmana.
Finalmente chamamos-lhe nova pela razão válida de que as actuais organizações islâmicas e grupos muçulmanos aqui se constituíram apenas em resultado da imigração. Isto é crucial, porque aparte muito poucas excepções, a imigração para a Europa resultou de decisões individuais, que não foram tomadas por razões religiosas, por exemplo, por objectivos missionários. Imigrantes muçulmanos conheceram-se pela primeira vez nos seus novos ambientes. Nos seus esforços para estabelecer, pelo menos, um mínimo de infra-estruturas culturais/religiosas, tiveram que escolher formas europeias de organização da comunidade (tais como "associações"), que são, dada a sua estrutura hierárquica, muitos estranhas aos contextos tradicionais islâmicos.

leia o artigo na íntegra no
http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?pid=S0873-6529200000030

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