terça-feira, 3 de janeiro de 2012

a língua é um fato político,


sábado, 31 de dezembro de 2011

'a língua é um fato político, como qualquer outro': filóloga telma lobo

por cris moreno   |   morenocris.org


hoje, primeiro de janeiro de 2012, a reforma ortográfica entra oficialmente no calendário. espaço para a história de vida de uma filóloga. que do lobo, tem tudo.


telma de carvalho lobo, 66, licenciatura em letras, doutora em linguística e filologia, centrada em filologia portuguesa, pela universidade federal do rio de janeiro. 'concluí o curso de letras em 1967. em 68, estava lecionando na federal, contrato fechado em primeiro de janeiro desse mesmo ano. fiz toda uma carreira acadêmica dentro da área de letras. em abril de 2002 me aposentei, pela universidade federal do pará, onde exerci funções administrativas que deram maior projeção e conhecimento. fui assessora do então pró-reitor de extensão, alex fiuza de melo, depois, diretora de centro(1993-97), logo em seguida, vice-reitoria(1997-01). fiquei dois anos, já aposentada, como assessora, nessa altura, do reitor alex fiuza de melo'.

telma mora numa casa da cidade velha, bairro onde nasceu, atrás da igrejinha de são joão. uma casa do final dos anos 40. depois de nascida(1945), quatro meses depois, vive com os avós, na casa ao lado, atualmente parte do ministério público, até nove anos de idade. era o xodó dos avós. 'mas as lembranças de minha infância estão aqui, nesta casa, estudando no grupo escolar rui barbosa, também ao lado. a mamãe mantinha uma escola particular, comum na época. é curioso, porque era muito barato, e devia ser tanto em conta, que todas as crianças estudavam no grupo escolar em um turno, e no outro, estudavam nessas escolinhas, com as professoras da própria escola pública. na verdade, as crianças estudavam em tempo integral'. retorna em 1999, definitivamente. faz reformas, e a transforma em um cantinho aconchegante e familiar.

a filologia vem do paraense e professor, cônego ápio campos(morre aos 84 anos, em abril do ano passado). 'quando eu fiz o curso técnico em contabilidade, na antiga escola da associação comercial do pará, simultâneo ao curso pedagógico, porque, uma tradição da família, todas nós, mulheres da minha geração, somos professoras. minha mãe obrigou as três filhas, a seguir o professorado. a sua filosofia dizia, e hoje olho para trás e digo, que visão de mundo, que ao fazer o curso pedagógico, o emprego era certo. e se o casamento não desse certo, teriam seus empregos. um homem respeitava muito mais uma mulher, se ele não lhe pagasse o prato de comida – a pior coisa, dizia mamãe, é um homem jogar na tua cara, que até o prato de comida ele te dá. e tendo seu emprego, você tem o respeito dele. mas eu não queria me submeter ao desejo dela, de minha mãe. desde pequena, nunca aceitei imposição. aí fiz o técnico em contabilidade. os dois. o que ela queria, e a minha escolha. quando estava no último ano do pedagógico, fiz o teste vocacional. a professora de psicologia o aplicou. deu como primeira opção, economia. das matérias pedagógicas, eu não suportava a língua portuguesa, mas adorava literatura. o meu professor era o francisco paulo mendes, que me incentivou a fazer teatro. mas, na segunda opção do teste vocacional estava letras, desde que não fosse ser professora. era muito tímida, introvertida, e naquela altura, a psicóloga me disse que teria muita dificuldade na docência, por causa do contato com o público. o meu caminho foi o de letras, apesar da economia que estava se tornando a grande profissão. isso era 1963, a ditadura em 1964, o auge dos economistas. eu fui fazer letras, mas apaixonada por literatura. já na universidade, reencontro o meu professor de literatura portuguesa, o paulo mendes. fico encantada com literatura, e se fosse lecionar, seria literatura. mas, no terceiro ano da faculdade, o ápio campos era o diretor do núcleo de letras e era o nosso professor de filologia. o cônego ápio quando ia dar aula, eu entrava no mundo da filologia, de roma, da idade média(aguçada pelo paulo mendes). eu era apaixonada por esse universo medieval português. fiquei encantada pela filologia.

fui convidada na federal, em 1968, junto com o professor josé guilherme castro de oliveira, atualmente psicólogo também, fomos convidados para montar a literatura paraense, que não existia. foi um projeto daquela época do ápio campos com os seus colegas, e nós fizemos pesquisa e montamos todas as disciplinas, e fomos, pela primeira vez, lecionar na universidade, literatura paraense. eu e ele, juntos. o objetivo era muito mais amplo. era ter literatura amazônica, cultura amazônica. eles sonhavam com um curso de letras, com um perfil amazônico, das letras, amazônicas.

quando saí para fazer pós-graduação, em 1976, fui para a federal do rio de janeiro, e comecei o meu mestrado em língua portuguesa, filologia, na verdade, portuguesa, matéria língua portuguesa, e o professor celso cunha foi o meu professor em três cursos e acabou sendo o meu orientador. a minha dissertação de mestrado era edição crítica de um dos textos de gil vicente(um texto em que não apresentava edição crítica). em 1977, concursos públicos nas universidades federais e eu retorno a belém para prestar o concurso, na língua portuguesa. fui aprovada. quando volto em julho de 77, ao rio, no mês seguinte, em agosto, a coordenação da pós-graduação, me chama, e mais outros dois colegas, os aprovados em concursos, e propõe a gente a abdicar do título de mestre, para entrar direto no doutorado. escolhi filologia, entre linguística e língua portuguesa. a proposta foi o levantamento dos fatos linguísticos do português medieval, ainda usados no pará. em 1978 nasce o meu filho único, no ano seguinte retorno para a federal, para dar aula e continuo o doutorado à distância.

é quando entra a política, na minha vida. em agosto de 79, os professores estão discutindo uma associação docente, que estava acontecendo no brasil inteiro. um dos líderes, era o romero ximenes, antropólogo, e outros do partidão, do pessoal do pc do b, do mr-8, pessoal da esquerda, e que estava tudo dentro do pmdb. a grande liderança que já era de jáder barbalho. um caminho sem volta. me lembro do temor de minhas colegas. entrei na militância pelo pcb, pelo partidão, recrutada pelo jinkings. foi a minha grande escola.

a minha orientadora de doutorado foi assessora do eduardo portela. meu local de pesquisa foi santarém, município do pará. me apaixonei pela região e o trabalho se dá nas variantes da língua portuguesa, na fala do povo local. no entanto, a professora matilda morre no meio do processo e fico dois anos sem a possibilidade de escolher alguém na federal do rio de janeiro. e o único professor de filologia era o ariel castro. o opositor da minha orientadora falecida e que se tornou depois assessor do ulysses guimarães, no processo da constituinte, na formulação do texto da constituição. quando lhe apresento a minha tese, já pela metade, ele a rejeita completamente. teria que trabalhar somente em cima de texto. e o professor tinha toda a razão. volto para belém, sem saber o que fazer.

estávamos em plena campanha para os deputados da assembleia constituinte, e trabalhei na do escritor benedito monteiro. foi aí que a professora amarilis tupiassu me perguntou, por que não trabalhar o texto do bené? tudo certo, benedito monteiro me passa os manuscritos da obra aquele um, em que o personagem narra todos os seus feitos, na voz do caboclo amazônida. aproveitei uma parte da minha tese anterior, porque falava sobre o que ainda existia de português medieval, trazido para a amazônia, e fiz uma tese de doutorado tentando, pela fala do caboclo, fictício, mas ainda viável na realidade cultural e linguística do pará. montei as três raízes que formam o falar e a visão de mundo do caboclo amazônico. em dezembro de 1986 deposito a tese, e a defendo em dezembro do ano seguinte(muitas greves).

me ocorre, neste momento, uma reflexão. acho que me envolvi muito na atividade política e deixei de lado a pesquisa. nunca abri mão da docência. a minha agenda mais importante era administrativa e política. ainda tenho vários sonhos para colocar em prática, material que deixei guardado ao longo do tempo, na minha biblioteca. tenho todo um acervo lexical, das pesquisas que fiz. tenho material levantado para ver a influência da igreja católica na poesia trovadoresca, nas cantigas de amigo. outro material, para fazer o vocabulário de fatos linguísticos do pará. mas, não simplesmente com o verbete seco. muito mais um verbete filológico.

quando saí da federal em 2002, na vice-reitoria, levei um ano pensando, em que decisão tomar. eu tinha por um lado, uma história de pessoas que se aposentam e ficam tristes, deprimidas, perdem o norte, não há mais horizontes, e ainda tinha, muita vitalidade. nesse tempo, eu era uma jovem senhora cinquentona. analisei, e vi que poderia encerrar a minha história na federal. e fechei a página.

separada há bastante tempo, com filho único independente, a vida tramou e eu herdei o meu pai, hoje com 92 anos, após a morte de minha mãe, em 1992. virei a mãe dele. fiz da casa, a minha cara.

mas, estava no rio de janeiro, e recebo convite para a docência na faculdade de tecnologia da amazônia, a faz( onde nos reencontramos tempo depois, telma lobo e cristina moreno, como professoras). a partir daí, não consegui retornar para outros projetos, e segui com a docência, com a sala de aula. outra experiência boa na fibra(faculdade, belém). atualmente na fcat(faculdade, castanhal), onde estou em tempo integral, envolvida também em projetos, cada vez mais na área do direito. e dou cursos sobre a reforma ortográfica, que a partir de amanhã(01/01), será aplicada oficialmente, com cursos on line em são paulo, macapá e pará. e aí está o projeto mais urgente, no momento. vou lançar, no segundo semestre de 2012, a obra sobre a reforma ortográfica, para professores e alunos. as pessoas, de modo em geral, não conseguem perceber que a língua é um fato político, como qualquer um outro, como nós temos os padrões de vestir, de comer, de morar....

(por cá, um parêntese, divagando sobre o verbo morar) - houve uma época, em que morar bem, era morar numa casa, num casarão, como na cidade velha, que tinha o ar europeu, isso, nos anos 40. a partir dos anos 50, morar bem já passou a ser o bangalô. nos anos 70, morar bem era carregar na casa os azulejos coloridos da arte moderna. anos 80, vem o apartamento. e hoje, morar bem em belém? é o condomínio fechado, horizontal, além das torres do bairro do umarizal, perto da doca. pra mim, morar bem é voltar ao espaço de minha visão de mundo, ouvir o sino da igreja, apesar de não frequentá-la. me aventurar, andar a pé, ir à feira do ver-o-peso, e num segundo, estou no banco, no supermercado.... eu gosto do silêncio da cidade velha, à noite. não tenho a paranoia de ser assaltada. o vigilante noturno ainda é de minha época de infância, sentado na esquina'.

relembramos um tempo, em que telma lobo foi a minha primeira professora, no externato santa rita(rua alenquer), na cidade velha. eu morava na gurupá, e ela, na mesma casa, na joaquim távora. testemunhei, com esses olhos que a terra há de comer(rsrs.... olha a filologia aí), a minha professora passeando de bicicleta cor de rosa, quase todos os dias, levando ao vento, os cabelos liso e comprido, até aos quadris. era o máximo! tempos depois, tive a minha também, uma monareta, preta e branca, semelhante uma lambretinha, mais moderna, naquela época. a bicicleta de minha professora tinha o padrão feminino, com a cestinha na frente. ufa! que fechada de ano, falando com quem me ensinou a transformar murmúrios, em palavras, colocando o u na uva, o b na bola, o c na casa.... fez-me gente!

pergunto se a psicologia errou no prognóstico sobre a docência. conta-me que não. 'nessa época, era realmente muito tímida, extremamente introvertida, dificuldade no relacionamento com o público. tinha minha estratégia de me enclausurar. era excelente ouvinte. mas, ninguém sabia quem eu era. a psicóloga foi perfeita. o meu mundo era interior, do meu imaginário, da minha fantasia. e era muito difícil, o contato com o público. tive um processo de me desbloquear. era considerada telma, a feia, porque não tinha o corpo padrão da época, que era peito, bunda, quadril largo e cinturinha. era pra ter nascido nos anos 80.

o cônego ápio campos foi fundamental nesse processo. ele deslumbrou a menina tímida, mas muito forte. foi o meu mentor intelectual e espiritual. com quem eu pude chorar, falar, dizer quem eu era, foi com ele que eu pude mostrar as minhas fraquezas, sonhos, decepções. era a pessoa certa para desmontar, com a ironia, sarcasmo, humor, as minhas tragédias. em 1971, a pressão da minha rotina na federal, e dos meus bloqueios internos, me fez entrar em depressão. nos cinco meses de licença, perdi todo o meu cabelo. tive um surto. pirei. fiz tratamento psiquiátrico. tive pensamentos suicidas. estava me encaminhando para a morte. mas, o que funcionou mesmo, foi a psicanálise. superado o problema, fui para o lado extremo da vida. mudei o cabelo, coloquei lentes de contato, passei a usar calça comprida, me bronzeava nas piscinas.... virei outra telma.

e foi na sala de aula que comecei a me mostrar. inovei. dava aulas, da forma que gostaria que tivesse tido, no passado, como eu pensava que seria. entrei numa linha, mais do que levar a lição pronta, a meta seria instigar os alunos. e percebi, que esse era o caminho da docência. e depois saí para a pós-graduação, tive o meu filho, uma relação difícil com o pai dele, um português de cabo verde, com uma educação tradicional, muito macho. o casamento durou cinco anos. e aí, entra a militância política. um detalhe: era o momento de reconstrução do país, passada a ditadura militar. porém, o único episódio que tive, no começo das diretas, precisamente no dia do comício em belém, fui detida, com outros companheiros, porque estávamos com a camisa vermelha pcb, pela legalidade. até hoje me vejo. tênis branco, calça de linho branca, cabelos ondulados, camisa vermelha. alguns casos foram de violência, o que não me aconteceu, apesar da mídia nacional estampar uma imagem, que confundiram comigo, de uma professora sendo arrastada pelos policiais. e também, o meu caso virou uma lenda, distorcida, porque quando o policial me mandou tirar a camisa vermelha, não a tirei, dizendo-lhe que seria ainda detida, por atentado ao pudor, porque não tinha nada, além dela, na pele(arranjaram uma camisa usada e a troquei no banheiro). era uma tortura psicológica imensa. eles, os policiais, todos armados, faziam o corredor polonês, e nas botas, correntes acopladas na pontas, além dos cães, que queriam nos devorar, desesperadamente. veio-me à mente, a segunda guerra mundial e os campos de concentração nazista. era o paradoxo do momento, das diretas. o engraçado, é que sempre numa situação conflitante, eu fico extremamente calma. sempre. e é, dessa característica, a origem da minha ficha no dops'.

entrevista concedida na casa de telma lobo(cidade velha), em 31/12/2011.

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