de diálogos lusófonos
Para ser mais escandaloso, vai ser preciso pecar para continuar a viver. Só os mortos não pecam, — mas também não pagam dívidas.
No substrato cultural desta crise está a absurda noção de que a dívida é pecado, à qual não é alheio o facto de as palavras “dívida” e “culpa” serem apenas uma na língua alemã — Schuld — e de os países endividados serem tratados como Schuldensündern, ou seja, pecadores da dívida.
Esta é uma extraordinária inversão de há uns anos a esta parte. Nas décadas de 1980 e 1990 não só este fundo religioso estava completamente obliterado como a dívida era uma forma de participação na gloriosa aventura do mercado livre. Sem dívida não haveria capitalismo, dizia-se. Os estudantes foram convidados a endividar-se para terminarem os cursos, os adultos para investirem em si, os trabalhadores para sentirem menos o declínio dos seus salários, as famílias para comprar casas, os países para se tornarem mais competitivos, todos para fazerem parte da humanidade contemporânea onde vergonha era não ter cartão de crédito. No mundo pós-2008 redescobriu-se que a dívida é pecado e que os humanos devem sofrer por isso.
É sempre mau quando a linguagem religiosa invade a política. Mas já que o mal está feito, e ficou assente que a dívida é pecado, ao menos que se entenda a coisa como deve ser — dois milénios de cristianismo produziram literatura abundante sobre o tema, de forma que não há desculpa para a ignorância.
Num livro significativamente intitulado “Deus não nos deve nada”, o filósofo polaco Leszek Kołakowski resumiu o debate assim: de um lado, os jansenistas influenciados por Santo Agostinho; no outro, os jesuítas influenciados por São Tomás de Aquino. Para os jesuítas, “a natureza humana, enquanto obra de Deus, embora contaminada pelo pecado original, não está irremediavelmente condenada; todos os impulsos naturais e desejos podem, se guiados de forma apropriada, conduzir ao bem”. Os jansenistas eram menos paternalistas; para eles havia “um abismo entre a natureza e o divino, e não há forma de conseguirmos suprir essa lacuna com os recursos da nossa natureza incuravelmente corrupta e rebelde”. A nossa salvação depende em primeiro lugar de cada um de nós. O mesmo achavam os protestantes.
Deus não nos deve nada, portanto. Os nossos pecados são nossos; as nossas dívidas também. Mas dois milénios de debate teológico concordam numa coisa: o pecado não pode ser eliminado. Pode ser objeto de perdão, remissão, arrependimento; mas é preciso saber viver com o pecado.
Tradução: a dívida europeia, se for como o pecado, não será eliminada. Parte dela poderá ser esquecida; outra parte perdoada; uma parte será redimida, a outra paga com o suor do nosso rosto; arrepender-nos-emos de alguma, como tivemos prazer em muita. E, para ser mais escandaloso, vai ser preciso pecar para continuar a viver. Só os mortos não pecam, — mas também não pagam dívidas.
Para rematar esta amálgama político-teológica, há sinais de que, no último concílio — perdão, cimeira… — europeia, dois católicos do Sul tentaram convencer uma protestante do Norte de que isto é assim. Vamos ver se conseguiram, ao menos em parte. Se a Europa continuar optar pelo caminho mais rigorista, terá ao menos de admitir que a virtude não pode chegar de um dia para o outro, como fez Santo Agostinho: “Deus, faz-me puro, mas ainda não”.
http://ruitavares.net/textos/viver-com-o-pecado/#more-2982
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