in diálogos lusófonos
Memórias que viram histórias
Memórias que viram histórias
A hora do desamparinho
Cabo Verde, maio de 1996
ELISA LUCINDA
No voo da Aeroflot, viajávamos Chico Diaz e eu para as filmagens de "O Testamento do Senhor Napumoceno", coprodução lusobrasileira e cabo-verdiana com Nelson Xavier, Zezé Motta, Maria Ceiça e Milton Gonçalves.
O destino era um país sem imaginário na minha cabeça, numa rota mais inédita ainda: Rio - Praia, capital de Cabo Verde, localizada em sua maior ilha, em Santiago.
Com a aeromoça aprendi um pouco desse dialeto lindo, o crioulo, língua materna deles. Quando desembarcamos, eu já arranhava algumas frases, tamanha a imediata paixão por aquela fala reinventada com estrutura africana, pitadas de português e francês, e ingênua como uma criança.
Ao chegar, fascinada pelo país, do qual imediatamente me senti íntima, fui procurar um salão -precisava fazer as unhas. Do hotel me desgarrei para a rua, segura com o idioma. Todos falam português, língua oficial deste país recém-independente e unido, a despeito da variedade de dialetos e de ilhas -cada uma delas tem uma cultura diferente, mas a noção do arquipélago é de nação.
Perguntando na rua, passeando na tarde ensolarada, naquela ilha de águas azuis estonteantes, azul de filme e lápis de cor, achei o salão. Lá conheci dona Lica, simpática senhora nativa que logo adotou meu coração recém-orfão de mãe.
Lica tinha filhos estudando em São Paulo, amava os brasileiros e gostou de mim. Outras mulheres conversavam animadas, todas viam nossas novelas, sabiam nossas canções e conheciam os personagens do filme que faríamos, baseado num romance homônimo popularíssimo, cujo autor, Germano Almeida, é o Jorge Amado de lá.
Retornei ao hotel, unhas feitas e braços dados com Lica, quase bailando pela rua paralelepipedal, na tarde que caía com delicadeza.
Um grande silêncio de nuvens, o céu laranja róseo se estabeleceu, e ela disse: "Adoro caminhar nesta hora do desamparinho". Meu coração disparou: O quê? É assim que se chama crepúsculo aqui?. Era. Esse pensamento me comove, Lica!. Ela explicou que era um desamparo efêmero: só uma noite entre os dias e logo amanhecia.
Estremeci ouvindo aquela conversa tecida de poesia e aceitei jantar com ela e o marido. Passei no hotel só para me banhar. E o Chico Diaz: "Onde você estava, nêga? Fomos conhecer a cidade e você some! Peraí, vai sair de novo?". Eu disse que ia jantar com amigos. Fez cara de que não entendeu, riu e lá fui eu.
O dono da casa era pura simpatia. Para abrir o apetite, uma dose do grogue, a cachaça nacional; vinhos diferentes para acompanhar salada e prato principal e depois licores da digestão. Passei bem na casa da família cabo-verdiana, com direito a comida deliciosa e uma verdadeira aula sobre o país. Como podia aquela minha primeira África ser tão familiar?
Dormi para a manhã seguinte, dia do lançamento do filme no salão nobre do Grande Hotel, onde estávamos. A cerimônia era na verdade um grande almoço com direito a cachopa, prima da nossa feijoada. Estava concorrida de flashes, personalidades e curiosos.
Começam os discursos, representantes dos três países encantados com o distinto elenco, o sucesso das filmagens. Eu só pensava no crioulo, na irmandade da língua, na filiação que ela nos assegura.
Então anunciam Higino Fortes, presidente da Caixa Econômica Federal de Cabo Verde e patrocinador da produção. Pois o homem sobe ao palco e diz: "Em nome do meu povo, abraçamos o elenco brasileiro e o fazemos por meio da menina Elisa, que esteve ontem em casa a jantar e a nos divertir".
Nesse momento, diante do calado espanto geral, Chico me cochicha: "Vai me explicar como, em menos de 24 horas num país que não conhecia, você já jantou na casa do presidente da Caixa Econômica!?
Juro que só saí para fazer unha, respondi. Rimos, nos divertimos num dia que passou cheio e ligeirinho. De olho no cair da tarde, fiz questão de passear lá fora, na hora do desamparinho.
[Fonte: www.folha.com.br]
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