domingo, 12 de fevereiro de 2012

O SANTO CRISTO DOS MILAGRES: TÉCNICAS DE ANCORAGEM


O SANTO CRISTO DOS MILAGRES: TÉCNICAS DE ANCORAGEM
Transcrevo abaixo um pequeno artigo meu que sai na edição de amanhã (12 fevereiro 2012) do Correio dos Açores. Aquelas razões que dou para afirmar que é falsa a ida de duas jovens a Roma são um bom exemplo de técnica de ancoragem. São o suporte para uma afirmação, digamos. Como uma fotografia o pode ser e muitas outras coisas mais. São importantes sobretudo quando se trata de assunto controverso ou para que se dar crédito a um autor que não seja muito credenciado numa área de investigação.
Daniel de Sá

Sobre o Senhor Santo Cristo
(A propósito de uma notícia publicada na imprensa) Com o respeito devido a quem terá dado as informações constantes em notícia deste jornal (08/02/2012), sobre as próximas festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, tento, uma vez mais, chamar a atenção para os erros óbvios que a história tradicional de tão sagrada devoção contém.
Em tal notícia se repete uma evidente impossibilidade, a de que a primeira procissão tenha sido em 1700. Desse cortejo, quase espontâneo, sabe-se que foi a onze de Abril e em dia de trabalho. E, naquele ano de 1700, o dia onze de Abril foi Domingo de Páscoa. Também é dito que a procissão se repete há mais de três séculos, sempre no quinto Domingo depois da Páscoa. No entanto, a primeira terá sido, provavelmente, na 6ª-feira que se seguiu ao Domingo de Pascoela de 1698, e a segunda no Sábado, 16 de Dezembro (e não 17, como diz o padre José Clemente no livro sobre a vida de Madre Teresa) de 1713, para implorar a Deus o fim de uma crise sísmica em São Miguel. Da terceira e das seguintes nada se sabe. Nem o ano nem o dia. Mas não terão acontecido pelo menos na primeira metade do século XVIII.
A lenda da origem da belíssima imagem continua também a sobrepor-se à razão mais elementar. A versão tradicional é a de haver sido oferta do Papa Paulo III, feita a duas jovens que teriam ido a Roma pedir a bula para fundação do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, em Vale de Cabaços. Eis, sintetizadas, as razões que nos dão a certeza de que tal
viagem não se verificou: Era impensável, naquele tempo, quase impossível, a ida de duas jovens dos Açores a Roma; Gaspar Frutuoso, que conta em pormenor a criação do convento, não alude a qualquer viagem ao Vaticano, seja delas ou de alguém por elas; O convento foi fundado durante um terrível período de peste em São Miguel, desgraça que se seguiu à subversão de Vila Franca, tendo terminado apenas em 1530, tempo durante o qual a ilha esteve isolada, só se verificando para o exterior as viagens essenciais; Finalmente, e razão que bastaria para negar a origem atribuída a tão sagrada imagem, o Papa Paulo III foi eleito em 13 de Outubro de 1534, depois, portanto, de construído o convento.
P.S. - É estranho que, sendo os factos que negam a história tradicional tão evidentes, a lenda se tenha mantido até agora, e sabe Deus até quando. Por um lado, têm o muito frágil suporte do livro do padre José Clemente, um bem intencionado que parece que nunca esteve
sequer em São Miguel, ilha a respeito da qual estava convencido de que nevava. Por outro lado, há a autoridade muito respeitável de Urbano de Mendonça Dias. Mas o ilustre investigador a quem tanto devemos também se enganou algumas vezes, como é óbvio no caso da data da primeira procissão do Senhor Santo Cristo. Ou, por exemplo, quando escreveu que a Maia não foi elevada a vila por ter sido em grande parte destruída por um incêndio. Ora aquele notável investigador fez, neste ponto, uma grave confusão. Gaspar Frutuoso, usando a linguagem do tempo, tanto se referia a um vulcão como terramoto ou como incêndio. E é assim que explica que a Maia teria sido vila se "não fora o incêndio segundo", ou seja, a erupção da lagoa do Fogo, em 1563, cujas cinzas destruíram searas e outras culturas, deixando a terra estéril durante alguns anos
.
PS: A insistência nestes mitos patetas já chateia. E logo no caso do papa, um dos que deveriam ser mais conhecidos dos açorianos, pois uma das primeiras bulas do seu pontificado foi a Aequum Reputamos, que criou a diocese de Angra. Para esclarecer melhor sobre o anacronismo da patetice:
As fundadoras do convento primeiro viveram apenas na ermida. Depois Rui Gonçalves da Câmara, o 2º deste nome, fez-lhes o convento, que elas viriam a abandonar em 1541. Diz o Frutuoso (que refere erradamente 1540) que o fizeram depois de terem vivido nove ou dez anos no convento. (Ao tempo do convento há que somar o outro da ermida.) Portanto, como Paulo III foi eleito em 1534, bem se vê que é impossível a lenda da oferta feita por ele às pequenas. Que, se por acaso já fossem freiras, não poderiam sair do convento, por ser de clausura.
DANIEL DE SÁ.12/2/2012





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