quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Os portugueses acham que são donos da língua", Germano Almeida, escritor cabo-verdiano


"Os portugueses acham que são donos da língua", Germano Almeida, escritor cabo-verdiano
Por Jair Rattner em 06 de Agosto de 2010
OPÇÔES
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Autor de O testamento do sr. Nepomuceno, o cabo-verdiano Germano Almeida percorre em seu novo livro, A morte do ouvidor (Caminho, 2010), um momento chave na história do país: quando, por ordem do Marquês de Pombal, a oligarquia cabo-verdiana foi decapitada no século XVIII, para afirmar o poder do reino e garantir o comércio com o território do Grão-Pará e Maranhão.
Com a estrutura de um diálogo, o livro conta em paralelo duas histórias diferentes. A morte do ouvidor e o processo que se seguiu, nas palavras de dois cabo-verdianos da atualidade: um emigrante que volta para escrever o livro e o outro que viveu sempre em Cabo Verde. Eles têm visões diferentes sobre a realidade local.
Advogado, com 55 anos, Germano Almeida começou a publicar em 1980, na revista cabo-verdiana Ponto & Vírgula. Seu primeiro romance – O testamento do sr. Nepomuceno –, o único publicado no Brasil, deu origem ao filme que ganhou o Festival de Gramado como melhor filme latino em 1997. As marcas da sua escrita são o humor e a ironia em relação aos costumes em Cabo Verde. De passagem por Portugal, Germano de Almeida falou à revista Pessoa.

Pessoa – O livro tem traços de romance histórico, de uma história em diálogo e até de literatura de viagens. Qual desses elementos é mais forte?
Germano Almeida – Nunca dou opinião sobre meus livros. Acho que é uma narrativa. Pertence ao leitor classificar o livro, e ele classificá-lo-á como entender. Por exemplo, eu me lembro quando publiquei O testamento do sr. Nepomuceno, toda gente disse que é um romance. E apareceu um crítico que disse que não, que é uma noveleta. Ao escrever, a gente nunca define se vai escrever um romance, uma literatura de viagens ou o que for.
P – Como surgiu a história?
GA – Conheci esta história há muitos anos, em uma sentença dessa época, que me mandaram de Portugal. Foi um jornalista, meu amigo, que mandou para Cabo Verde, e tinha encontrado a sentença num alfarrabista. Li a história com interesse, passava-se na minha terrra, Santiago, mas não tinha mais elementos sobre aquilo. Depois, ao longo do tempo, foram surgindo mais elementos da história de Cabo Verde, que ajudaram a entender o que tinha acontecido nessa altura. Não tinha elementos suficientes para fazer um romance histórico. Tenho aqui um livro com episódios históricos. É como se fosse um romance de personagens da atualidade, que contam a história do antigamente, porque não me sentia balizado para escrever um romance histórico.
P – O livro relata momento chave na história de Cabo Verde, que é o fim da autonomia. O que isso significou para o país?
GA – Consequências extremamente desastrosas. Até essa altura, pode-se dizer que Cabo Verde vivia num regime de quase autogestão. A metrópole tinha muito pouca influência em Cabo Verde, e dava muito pouca importância a Cabo Verde. Os cabo-verdianos viviam nos seus comércios com a África, algumas coisas vinham da metrópole, porque Cabo Verde sempre esteve muito ligado a Portugal continental. Com o Marquês de Pombal, criou-se a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, destinada a servir o Brasil. E Cabo Verde foi uma espécie de entreposto da companhia. Nessa altura tudo foi nacionalizado a favor da companhia. A oligarquia cabo-verdiana não gostou, praticaram algumas barbaridades, entre elas terem matado o ouvidor de que trata o livro. E foram decapitados. A partir daí, durante todo o tempo do marquês, e nos reinados seguintes, Cabo Verde viveu em regime decolônia. Acho que nunca mais saiu disso, até a independência.

P – No livro, há um conflito latente. Entre os emigrantes e os que ficaram em Cabo Verde. O que representa isso na sociedade cabo-verdiana atual?
GA – Muito menos do que representou antigamente. Pois antigamente tínhamos o que chamamos de “terra longe”. O emigrante ia e voltava anos depois. O emigrante sai de Cabo Verde e deixa uma realidade. Quando volta quer encontrar a mesma realidade, o que não acontece, porque nós evoluímos. O emigrante dificilmente aceita isso, e continua a ver-nos com os mesmos olhos, com alguma superioridade. E nós também não aceitamos isso. Agora está mais fácil, na medida em que o emigrante tem maior facilidade de comunicação com Cabo Verde. Também é verdade que os emigrantes, quando chegam em Cabo Verde, chegam com hábitos diferentes, com costumes diferentes, que significam de algum modo uma agressão ao nosso modo de vida, assim como acontece com os turistas. O nosso emigrante não é muito diferente do turista.

P – Acredita que existe uma literatura de língua portuguesa, com traços comuns nos oito países?
GA – Há uma literatura feita em língua portuguesa. Agora eu não acredito muito na chamada literatura lusófona. Há literatura de Cabo Verde, de Angola, de Portugal, do Brasil. Nós usamos a língua portuguesa para traduzir nossa cultura específica. Não podemos dizer que há uma literatura lusófona, como se nós escrevêssemos da mesma maneira e sobre a mesma realidade.

P – Hoje, em Cabo Verde, há muita influência da literatura brasileira?
GA – Já existiu muito mais. Neste momento, o contato com o Brasil, na literatura pelo menos, é feito através de Portugal. No comércio é feito diretamente, mas na cultura depende de Portugal. Infelizmente, o corpo diplomático brasileiro não é tão agressivo como poderia ser, e limita-se a atividades nas cidades da Praia e de São Vicente. A influência da literatura brasileira foi grande em Cabo Verde, sobretudo no tempo da revista Claridade, que surgiu em Cabo Verde no ano de 36, e foi extremamente influenciada pela literatura brasileira, especialmente pela nordestina. Nós temos poetas que de alguma forma imitaram Manuel Bandeira, não como plágio, mas por amor. José Lins do Rego e Guimarães Rosa foram muito lidos em Cabo Verde. Hoje é muito pouco.

P – O que se lê hoje em Cabo Verde?
GA – Lê-se em Cabo Verde o que se lê em Portugal. Algum autor brasileiro publicado em Portugal tem hipóteses de chegar a Cabo Verde, mas não muitas.

P - O fato de existir o acordo ortográfico, ajuda o intercâmbio entre as literaturas dos oito países?
GA – Não acredito que o acordo ortográfico em si vá ajudar o intercâmbio. Não era a falta do acordo ortográfico que nos impedia de ler autores brasileiros. É evidente que é uma forma diferente de ler: quando encontro “fato” sem "c" e estou habituado a “facto”, com "c". Do mesmo modo, quando encontro "terno" como se fosse “fato” me causa estranheza, mas isso são pormenores a que nós nos devemos habituar. Do mesmo modo, que quando escrevo em português uso imensas expressões e palavras do crioulo. Penso que o acordo ortográfico será mais uma pequena chatice. Mas acho que é necessário. Não devemos correr o risco de ter oito línguas diferentes a partir do português. Na medida em que é possível preservar esse instrumento que serve para expressar a cultura dos nossos países, isso é positivo. Penso que deve haver cedências para que haja um acordo de forma a não nos desviarmos demasiadamente uns dos outros. Dizer que me agrade particularmente, não. Aliás, eu vou continuar a escrever do mesmo modo que estou habituado, porque sei que alguém vai corrigir-me.

P – Alguns brasileiros reagiram, dizendo que os portugueses se acham “donos” da língua.
GA – Penso que essa afirmação é verdadeira. Os portugueses acham que são donos da língua, e isto é muito mau. Os portugueses precisam entender que a língua portuguesa é tanto deles como nossa. A língua foi deles, agora dividimos a língua. Temos que aceitar essa realidade. Aliás, afirmo orgulhosamente que a língua é tanto dos portugueses como minha língua, e não quero desfazer-me dela.

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