segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

De Onésimo T. Almeida e das utopias possíveis


De Onésimo T. Almeida e das utopias possíveis

Capa Utopias Em D+¦i Menor (1)Em Portugal, há uma luz que brilha forte e aponta para a modernidade numa das suas primeiras manifestações: a da mentalidade empírica de um pequeno grupo.
Onésimo Teotónio Almeida, Utopias Em Dói Menor
/Vamberto Freitas
 Comecemos pelo título completo do livro aqui em foco, saído recentemente, e já amplamente recenseado e divulgado a nível nacional: Utopias Em Dói Menor: Conversas Transatlânticas com Onésimo, uma longa entrevista feita a Onésimo T. Almeida. O co-autor, o entrevistador, é João Maurício Brás, doutorado em filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e actualmente investigador da Universidade de Lisboa. Foi ele que, ao tomar conhecimento da obra onesimiana, leu todos os ensaios filosóficos – e toda a escrita criativa e/ou jornalística – lançando-lhe de seguida o desafio de uma longa conversa ora em pessoa ora à distância abordando especificamente a sua faceta menos conhecida entre nós, o seu trabalho filosófico, em gérmen na sua tese de doutoramento ainda por publicar em livro (sobre o conceito de “ideologia”) e nos ensaios reunidos em De Marx a Darwin: A Desconfiança das Ideologias (2009), mas ainda também vastamente dispersa por publicações universitárias especializadas, e à espera de ser reunida em livros. Foi também João Maurício Brás (em colaboração com Cristina Ovídio e Ana Bernardo) que participou na selecção e publicação de alguns textos criativos em Onésimo: Português sem Filtro, Uma Antologia (2011). Devo ainda relembrar que esta parte da obra do autor aqui em foco já vem desde há algum tempo a suscitar o devido interesse pela sua importância no que toca a questões da “modernidade”, bem como sobre a “identidade nacional”, devendo agora ser lida e entendida na nossa actualidade política e económica inserida no complexo mosaico europeu, e, ainda mais, mundial. Não queria aqui continuar com listagens, mas na apresentação do presente volume torna-se inevitável esta outra contextualização para os que não têm acompanhado o trabalho estritamente académico e filosófico de Onésimo T. Almeida. O primeiro grande sinal público dado acerca da importância de conhecermos este outro lado da sua obra aconteceu com a publicação de O Pensamento Português Contemporâneo (1890-2010), onde o seu autor Miguel Real inclui quatro pensadores de origem açoriana: Teófilo Braga, Antero de Quental, José Enes e Onésimo T. Almeida, este visto e analisado durante mais de trinta páginas, inclusive sobre os seus volumes de teorização da literatura e cultura açorianas. Era, pois, este o momento mais do que certo e justo para alargar a nossa visão sobre o autor que, entre nós, tinha já colado a si quase exclusivamente a imagem de cronista e ficcionista, caracterizado pelo humor e pela transfiguração ora da nossa vida na Diáspora ora nos seus embates com as realidades norte-americana e lusófona. Significativamente, o prefácio a Utopias em Dói Menor vem assinado pelo professor catedrático de Física da Universidade de Coimbra, Carlos Fiolhais, destacando as áreas temáticas aqui presentes, e das quais nenhum intelectual hoje se poderá alhear: “a estética, a ética, a justiça, a liberdade, etc.”
Há no próprio subtítulo de Utopias Em Dói Menor: Conversas Transatlânticas com Onésimo a clara sugestão da dualidade tanto da personalidade do autor como do trabalho intelectual de Onésimo Teotónio Almeida: a formalidade de uma conversa que só poderia ser das mais sérias, imposta pelos temas e áreas em discussão, e o à-vontade de chamar o filósofo pelo seu primeiro nome. Não haverá rigorosamente outro interveniente desta categoria no nosso país e na nossa cultura que dê lugar a tal aproximação entre entrevistado e o seu interlocutor. Mas isto só nos fica bem a todos, quiçá é já resultado da “modernidade” possível – “menor”? – entre nós. Chamar as pessoas e as coisas pelo seu nome próprio é tanto uma atitude de aproximação afectiva como significa o respeito máximo por quem nos fala, por quem nos propõe com tanta clareza algumas das mais complexas ideias e a sua história no Ocidente, problematizando brilhantemente o nosso lugar nacional nessas “visões do mundo”, nessas “mundividências”, que autor utiliza em vez de “ideologias”, por razões que necessitam de outro livro para serem explicadas, ou para tentarmos entender o seu alcance ou aparente (in)aplicabilidade numa Nação tão velha como a nossa, agarrada desde sempre ao passado como justificação indiscutível da sua existência, legitimidade e dignidade. É dessa aparente informalidade na conversa entre João Maurício Brás e Onésimo T. Almeida que nos vem a beleza textual deste livro, a leitura aliciante para qualquer leitor medianamente informado ou interessado nas questões em foco, ou na literatura em geral. O autor escreve em português e pensa como um americano profundamente ligado à filosofia analítica, ao empirismo anglo-saxónico, à regra de ouro, dir-se-ia, da língua inglesa: Say it clearly, say it quickly/di-lo claramente, di-lo directamente, exemplificando tudo com outras ideias, ou convocando outros aspectos ou lados inexplorados das nossas realidades para melhor nos situar na sua linha de pensamento — a sugestão, sempre, e nunca a imposição de argumentação, os factos, ou, uma vez mais, ou a realidade como ponto de partida para a teorização geral. Por entre esta linguagem simultaneamente teórica e prática, vai sobressaindo o que o próprio entrevistador já chamou de “universidade ambulante”, a erudição pura aqui organizada ou estruturada pelo conhecimento quase sem limites de um número, assustador para a maioria de nós, de autores e obras. No centro de todas estas páginas, a definição e/ou caracterização do que ele entende por “modernidade”, e depois o infinito desentendimento sobre a nossa “identidade nacional” num contexto da nossa história desde os Descobrimentos, que inclui enfaticamente os nossos valores e aptidão para a investigação e a ciência, tudo o que nos permitiu chegar a novos mundos e a reinventar todo o pensamento aberto que hoje nos falta. As últimas páginas de Utopias em Dói Menor vêm preenchidas com os programas dos cursos leccionados por Onésimo T. Almeida na Brown University (“On The Dawn Of Modernity”, “The Shaping Of World Views”, “O Mundo Lusófono E O Desafio da Modernidade” e “Identidade Nacional”, entre outros que mudam de semestre em semestre), bem como por um posfácio esclarecedor, “Onésimo ou a nossa consciência crítica”, de José Eduardo Franco.
“Um último ponto: foi esse ambiente, — diz Onésimo T. Almeida a dada altura neste diálogo acerca das linguagens barrocas e ofuscação de ideias determinantes na nossa discursividade – herdado muito de trás, que tornou a nossa escrita portuguesa profundamente palavrosa, escondendo pensamentos entre expressões complexas e complicadas, e sempre a evitar ser clara por isso ser perigoso. Claro que essa situação ajudou a propagar o mito de que quem escreve difícil é que é profundo. Um erro crasso da nossa cultura, que ainda hoje persiste e nos dificulta a implantação de um diálogo intelectual desempoeirado, desinibido, aberto e informado. Generalizo, porque muito mudou na última década, e a internet tem ajudado imenso a mudança. Felizmente”.
Num só passo nesta longa conversa em Utopias Em Dói Menor, o autor não só justifica a sua própria escrita académica e criativa, como aponta decididamente a nossa invenção de linguagens “complicadas” para falsificar ou esconder a ausência de ideias ou, pior ainda, o medo delas, quer por razões políticas quer por razões profissionais e institucionais, nunca se podendo contestar os da cátedra hiper-protegida numa cultura estática, já descrente mas temente a tudo que é “autoridade”. A “palavra” entre nós, como um dia diria Eça de Queirós, reina sempre sobre a “ideia”. Quando não se gosta do que afirmou ou propôs um escritor, rebusca-se a sua prosa à procura de uma vírgula mal colocada, numa vingança de impotentes e mentecaptos. Modernidade? Uma síntese de Onésimo T. Almeida basta como começo de uma definição e enquadramento histórico: é dela e partir dela que nos nascem as ideias supremas de democracia, justiça, direitos humanos, e igualdade cívica para que cada cidadão possa tentar moldar a sua vida aos seus desejos, ou, no discurso de influência americana também muito presente nesta conversa, perseguir livremente a sua felicidade e prosperidade, sejam lá elas o que cada um deseja para si. Eis, pois, a “utopia” ainda possível, a que, entre todas as outras, “dói” menos.
Por fim, diga-se ainda que o grau de informação e inteligência do entrevistador João Maurício Brás não deixa de fora uma única faceta da obra de Onésimo T. Almeida: para além do que é estritamente académico ou da esfera do pensamento filosófico (“Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, de Antero de Quental, tem uma forte presença nestas páginas), até a fase pública e “açoriana” é aqui considerada, e reenquadrada nesta outra visão pragmática do pensador e do escritor total: ensaio, ficção e crónicas convergem para nos darmos conta de que estamos perante uma das nossas mais significantes e abrangentes produções literárias e ensaísticas do nosso tempo.
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Onésimo Teotónio Almeida e João Maurício Brás, Utopias em Dói Menor: Conversas Transatlânticas com Onésimo, Gradiva, Lisboa, 2012.

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