Em 19 de janeiro de 1964, na Boa Nova, Leça da
Palmeira, foi lançado o primeiro foguetão de dois andares, idealizado e
construído por 3 jovens portugueses.
Esse trabalho, para a nossa Memória Colectiva, pode ser apreciado em http://chuviscos.blogspot.pt/ .
Um abraço,
Se não lutares, estás perdido.É com a luta que se forja o futuro!
ORION - 49 anos depois...
ORION
19 Janeiro 1964 - O início de um
sonho...
49 anos depois
Esse dia 19 de Janeiro de 1964
foi um domingo soalheiro de inverno, com um céu muito azul, sem nuvens e vento
quase nulo.
Na Praia da Boa Nova, em Leça da
Palmeira, um mar chão muito calmo e que verdejava lá em baixo, arrancando
reflexos dourados às águas que vinham beijar as areias (nessa altura ainda
limpas) e deixava a flutuar franjas irregulares de espuma branca...
Nesta data três jovens portuenses arrastaram uma multidão de
curiosos para o pinhal da Boa Nova (Leça da Palmeira) - onde hoje se encontra a
refinaria de petróleo - para assistirem ao lançamento do primeiro foguetão de dois
andares por eles construído.
Recorrendo-me à
minha memória (nesta data em que o lançamento do Orion comemora o seu 49º
aniversário) e aos meus apontamentos, deixo-vos com a minha visão desse
acontecimento.
Dia 17 de Janeiro de 1964 – sexta-feira à
noite
A
data do lançamento do Orion aproximava-se.
Na
sexta-feira, 17 de Janeiro de 1964, à noite, agarramos no Orion desmontado e nos
convites que ainda não tínhamos distribuído e fomos “apresentá-lo” às redacções dos
jornais do Porto: Jornal de Notícias, Comércio do Porto e Diário de Notícias.
Montamos
o Orion (sem combustível, claro, não fosse o diabo tecê-las) na recepção dos
referidos jornais e apresentámo-lo aos jornalistas de serviço que cuidaram das
fotografias e das perguntas da praxe.
Dia 18 de Janeiro de 1964 – sábado
O
dia seguinte, sábado, foi mesmo um dia para esquecer, tantas eram as tarefas
para serem feitas.
O
Daniel e o Jaime perderam a manhã no Governo Civil do Porto para “inventarem”
uma licença para ser lançado o Orion.
Nessa
altura eu trabalhava ao sábado, por isso fui para o meu local de trabalho sem
ter lido os jornais.
Na
altura trabalhava na Avenida dos Aliados. Desde a saída do autocarro até ao meu
local de trabalho fui objecto de curiosidade por uma grande parte de
transeuntes anónimos (que me olhavam como se tivesse antenas verdes no cimo da
cabeça!!!), mas mais especialmente por parte dos meus colegas de trabalho que me
mostraram as reportagens dos diversos jornais, com as nossas fotos em destaque.
Jornal de Notícias - 18 Jan 1964 |
Diário de Notícias - 18 Jan 1964 |
Boa Nova - Período de visitas ao foguetão Orion - fotos a pedido...
Às 11 horas foi vedado o acesso ao
Orion e proibido fotografar e observar de perto o foguetão.
Eu,
o Jaime e o Daniel procedemos, então, ao carregamento do combustível
sólido e completamos as ligações eléctricas do sistema de
ignição.
Boa Nova - preparação e colocação do anel separador dos dois andares
(…)
— Faltam 45 minutos! – disse eu, tirando o relógio do pulso e
colocando-o no peitoril da janela da casamata, ao lado do caderno que nos
servia de “check-in” do lançamento e
dando baixa neste. — É preciso voltar a verificar
o ângulo de inclinação da rampa de lançamento e a temperatura exterior do corpo
do Orion — sussurrei ao Jaime.
— OK! Aproveito e vou com o Daniel verificar as ligações eléctricas e o
sistema de ignição... Ninguém respeita as normas de segurança. Com tanta gente
à volta do foguetão, tantas fotografias que estão a tirar e tantas apalpadelas que
lhe estão a dar, não me espanta mesmo nada que lhe tenham dado um encontrão e
que se tenha desligado qualquer coisa – sugeriu Jaime, pegando nos materiais
necessários para algumas substituições de última hora.
Enquanto o Daniel e o Jaime se
afastavam, com as batas brancas a flutuar ao sabor da leve brisa, subi a
pequena ravina na base da qual se encontravam os restos do que fora um abrigo –
a que chamávamos, cheios de vaidade, casamata! – e que nos servia de Centro de
Controle.
Oh como me doía a cabeça!
Foi uma noite mal dormida, na loja
dos pais do Jaime, na confusão de máquinas de costura a trabalharem nas mãos
experientes da mãe e da irmã do Jaime e de algumas amigas (para criarem os diversos tipos
de braçadeiras), máquinas de escrever (que batiam os regulamentos, as
especificações do Orion, as normas de segurança, as últimas instruções e verificações
dos vários elementos que iriam fazer parte do “combustível” do foguetão).
Não dormira quase nada nessa noite e levantara-me muito cedo, ainda não tinha começado a nascer o dia.
Oh como me doía a cabeça! E nem um
comprimido tinha ali à mão…
Espraiei os olhos à minha volta:
estava rodeado de um grande número de curiosos que procuravam o melhor local
para assistirem ao lançamento do Orion. Lá no fundo, para os lados da
Casa de Chá e do Farol da Boa Nova, uma densa multidão de pessoas apressadas
aproximava-se do local do lançamento, desafiando os esforços dos nossos jovens
“seguranças” que tentavam que essa “mole humana” se dirigisse para o perímetro
de segurança que fixáramos previamente.
Olhei o corpo majestoso do
foguetão, bem apontado para o céu e que cintilava beijado pelos raios de sol e
acenei ao Jaime e ao Daniel que faziam ali as suas verificações.
O Eduardo, um dos responsáveis
pela segurança do Projecto Orion, juntamente com outros jovens amigos, empurravam
a custo o batalhão de fotógrafos, operadores de cinema e de TV para uma duna
situada a cerca de 100 metros do local de lançamento. Mas mal virávamos as
costas, os jornalistas regressavam ao ponto inicial, ávidos dos melhores ângulos
para as suas fotografias...
Desci a ravina e regressei à
casamata. Verifiquei o “check-in de
lançamento” à minha frente, piquei as tarefas já executadas e disse
maquinalmente:
— 30 minutos
para a Hora Zero!
O Jaime e o Daniel que acabavam de
chegar, olharam o relógio que se aproximava, inexoravelmente, das 13 horas (o
lançamento do Orion esteve inicialmente marcado para as 12 horas mas, devido ao
grande número de visitantes e do seu envolvimento na zona de lançamento,
tivemos de marcá-lo para as 13 horas).
— Hora zero
menos vinte minutos! – disse, dando baixa no “check-in”.
O Gaspar entrou na casamata,
furioso e a barafustar:
— Não entendo
estes jornalistas! Voltaram a romper o cordão de segurança e por mais que se faça
não me obedecem! Já não sei mais que fazer!!!
Olhei para os jornalistas que,
pouco a pouco, se aproximavam (e logo se instalavam de armas e bagagens cada vez
mais perto da zona perigosa). Olhei o relógio e desta vez perdi a calma:
— Se esses
gajos não recuam para trás das dunas, desta vez abortamos mesmo o lançamento! Eduardo,
Gaspar, levem convosco todo a gente disponível e façam recuar os jornalistas
para as zonas de segurança. E digam-lhes mesmo, ou eles recuam para as dunas ou
abortamos o lançamento! Se há um azar e esta coisa explode, ficam que nem
picado e quem se lixa somos nós!
Boa Nova - na casamata, centro de controle do lançamento do Orion
|
Continuei com o “check-in”, enquanto observava as
negociações com os jornalistas. O Gaspar esbracejava e passeava-se de um lado
para o outro. Não conseguia ouvir o que dizia. De repente, correu na nossa
direcção e disse-nos, com um grande sorriso espalhado no rosto:
— Pronto,
pronto, não se preocupem! Vão pôr toda a maquinaria fora das dunas e apontadas
para o Orion e vão-se abrigar dentro
do perímetro de segurança. Se houver qualquer “chatice“ assumem toda e qualquer
responsabilidade. Vão-se as máquinas, ficam eles e ficamos nós sem as fotos do
lançamento!
— Gostava de
ver tudo isso passado a escrito! – resmungou o Jaime, encolhendo
os ombros.
— Hora Zero
menos dez minutos! — disse eu, olhando os jornalistas que se
instalavam na zona negociada.
Um razoável perímetro de segurança
estabeleceu-se, finalmente, junto do Orion.
— Hora Zero
menos cinco minutos! — disse eu, olhando da casamata o
foguetão que brilhava no meio do descampado.
De repente, um silêncio sepulcral
invadiu toda a região. Parecia que toda aquela multidão, ululante até aí,
tivesse deixado de respirar, ficando suspensa no que iria suceder no minuto
seguinte.
Só o suave murmurar do mar, alguns
metros lá em baixo, se associava à ligeira brisa que soprava...
— Hora zero
menos...
— Porra,
porra, pára-me já essa contagem, Zé ! – gritou o Eduardo, completamente
fora de si! — Pára, pára tudo!!! A merda
daquela avioneta está a aproximar-se! Rápido, os gajos da rádio que lancem um
aviso…
Algum dos repórteres ao meu lado –
não me lembro bem quem – que faziam a cobertura em directo do lançamento (ou
alguém no aeroporto que os estava a ouvir), devem ter comunicado com a avioneta
que acabou por dar meia volta, deixando livre o nosso espaço aéreo.
Depois desta ter saído do nosso
campo visual e de se ter feito os acertos nas rotinas de segurança, recomecei a
contagem decrescente, atrasada agora 15 minutos.
— Hora Zero
menos quinze minutos!
Encostei-me ao beiral da janela
(ao que restava dela!) e respirei fundo. A minha cabeça parecia que rebentava,
mas tentei abstrair-me … Olhei à minha volta e vi o Jaime, bem ao meu lado, a
verificar com uma das mãos as ligações do cabo de ignição e a roer as unhas da
outra, com um ar muito compenetrado.
O Daniel – apesar de todas as
normas de segurança e dos avisos em contrário – acendeu mais um cigarro que
juntou ao outro que ainda mantinha aceso nos lábios, ajustou a braçadeira da
sua bata branca e fez-me um sinal com a cabeça dizendo, ao meu olhar reprovador,
que tudo estava bem.
Olhei para cima, para o que fora o
telhado da casamata e vi dezenas de caras que observavam os nossos gestos, as câmaras
de TV e de cinema que nos seguiam, os “flashes”
que aumentava ainda mais a minha dor de cabeça...
De repente apercebi-me que até eu
estava a roer as unhas!
Olhei, automaticamente, para o
Jaime que me sussurrou entre um sorriso breve:
— Também tu,
meu filho bruto!!! Deixa lá as unhas em paz e sossego…
Encolhi os ombros e limitei-me a
dizer:
— Hora Zero
menos cinco minutos!
Olhei o céu que se mantinha limpo,
as várias equipas que estavam bem firmes nos seus postos, os jornalistas atrás
das dunas... Cocei a cabeça...
— Hora Zero
menos dois minutos!...
Foi então que senti como se me tivessem dado um soco no estômago e senti um calafrio a subir-me pela espinha. Estremeci e encostei-me, ainda mais, ao parapeito da janela...
Foi então que senti como se me tivessem dado um soco no estômago e senti um calafrio a subir-me pela espinha. Estremeci e encostei-me, ainda mais, ao parapeito da janela...
— 30
segundos!...
— Está tudo
OK! – disse Jaime, enquanto pousava o dedo no interruptor da caixa de ignição.
Olhei para o meu Pai que me espreitava
lá de cima. Acenou-me; sorri-lhe e pensei que ainda há dois dias me criticava e
que não acreditava no nosso Projecto.
Continuei a contagem:
— 20
segundos!...
— Ignição
preparada! – disse o Jaime com voz calma e bem
segura.
Daniel aproximou-se ainda mais da
janela e assestou os binóculos no Orion. Limitei-me a prosseguir a contagem:
— 10!...
O suor, em camarinhas, começou a
escorrer-me pela cara abaixo e a camisa, já completamente encharcada, estava
colada às costas. As minhas pernas pareciam feitas de manteiga…! Sentia-me cair...
Lá, muito ao longe e misturada com a minha dor de cabeça que agora latejava, ouvia
a minha voz bater-me dentro da cabeça...
— 7... 6...
5...
— É agora ou
nunca! – sussurrou o Jaime.
— Faz figas,
Zé! – disse-me o Daniel, como que numa prece.
Os meus olhos, muito abertos,
estavam agora bem fixos no foguetão:
— 4... 3...
2... 1 ... IGNIÇÃO!!!
Senti, mais do que vi, o Jaime a
apertar o botão!
O berro com que concluí a contagem
foi abafado pelo ruído ensurdecedor dos gases expelidos pela tubeira do Orion,
enquanto este se erguia majestosamente nos céus da Boa Nova, largando um
elegante novelo de fumo branco que o acompanhou na subida, para percorrer os
9.000 metros projectados por nós.
Seguiu-se uma estrondosa salva de
palmas da multidão ululante que assistia ao lançamento do primeiro foguetão
português.
13 horas: fotografia da subida do ORION
Fonte: Jornal de Notícias, 20
Janeiro 1964
|
Mal gritei “IGNIÇÃO” saí da casamata a correr em direcção à rampa de lançamento
ainda envolta em fumo. Lembro-me de ver o corpo cilíndrico do foguetão subir no
céu. Não me lembro da separação do segundo andar.
Corri, depois, em direcção ao mar,
não sei bem porquê… e toda aquela multidão correu atrás de mim.
(…)
Em 19 de Janeiro de 1964 três
jovens “cientistas” fizeram subir nos céus da Praia da Boa Nova, em Leça da
Palmeira, o primeiro foguetão português. Esta “reportagem” foi retirada dos
apontamentos que fiz na altura e tenta transmitir o acontecimento que atraiu e
fez delirar milhares e milhares de pessoas que assistiram a uma experiência
científica e como isso entusiasmou, nessa altura, os meios de comunicação do
país.
No local onde foi lançado o
foguetão Orion começou, mais tarde, a ser construída uma refinaria de petróleo…
Ainda hoje existe!
Recordo algumas das características do ORION:
- Primeiro andar - altura 1,32 m; diâmetro 50,8 mm; peso (vazio) 4 kg; tempo de combustão do propulsante 0,46 s; velocidade 350 m/s; força 480 kg.
- Segundo andar: altura 0,26 m; diâmetro 19 mm; peso (vazio) 60 g; tempo de combustão do propulsante 0,07 s; velocidade 560 m/s; força 50 kg.
- A rampa de lançamento tinha uma altura de 1,50 m e o ângulo com a horizontal era de 80º; o zénite previsto da trajectória do Orion foi de 9.000 metros.
- O combustível utilizado nesta experiência era sólido, prensado nas câmaras de combustão dos dois andares do foguetão. A ignição do primeiro andar, eléctrica, foi feita directamente pelo director de voo e a do segundo andar por inércia.
- A cerca de quarenta metros da rampa de lançamento estiveram representantes dos órgãos de informação que, de máquinas apontadas, fotógrafos e operadores de cinema e televisão, registaram para a posteridade o lançamento do foguetão.
"(...) De súbito, o local ficou envolvido em
silêncio tal que se conseguiam ouvir as ondas do mar. Começou uma voz a contar
de dez para zero e, por entre um clarão de chamas e uma espessa nuvem de fumo,
sem que houvesse tempo para o fixar, o «Orion» disparou em rápida subida,
levando como direcção o Oeste, preparando-se para se elevar a 9.000 metros de
altitude e cair depois no Atlântico. Ainda a enorme nuvem branca não se tinha
esfumado, já a multidão corria entusiasmada para o local, onde as ervas estavam
queimadas pela explosão, e para o mar, na esperança de verem cair, lá longe, o
2º andar do foguete (...)". (in Jornal de Notícias de 20
de Janeiro de 1964).
A
animação que se segue foi feita a partir das fotografias que tenho em
arquivo, algumas delas muito estragadas pelo tempo mas mesmo assim
tentei recuperá-las.
Espero, com este trabalho, deixar para memória futura o lançamento do Orion e recordar todos aqueles que trabalharam connosco, irmanados num SONHO que se chamou Projecto Orion. Pena foi que o Projecto Antares (aquele que levaria um rato como tripulante) não tivesse passado para além dos cálculos, projectos e experiências...
José Gomes - Jan 2013
José Gomes - Jan 2013
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