terça-feira, 15 de novembro de 2011

Falando português na Rússia

de diálogos lusófonos

Falando português na Rússia

Categorias: Lingua Portuguesa 
Por Adelto Gonçalves (**)
Trabalho do Centro Lusófono Camões, de São Petersburgo, é muito importante na difusão da Língua Portuguesa
SÃO PETERSBURGO O que leva um jovem russo a procurar aprender o idioma português? Para Diana Shpilevskaya, 22 anos, tudo começou em 2005, quando foi a Inglaterra aperfeiçoar o seu inglês. “Estudei numa cidade pequena chamada Exeter e meu curso durou duas semanas num grupo de 12 pessoas, das quais oito eram do Brasil”, diz. “Lá, pela primeira vez, ouvi a língua portuguesa na vida real e a achei tão bonita que, ao voltar para a Rússia, comecei a estudá-la sozinha”, conta.  “Assim, aqueles oito estudantes brasileiros mudaram a minha vida sem que soubessem disso”, acrescenta Diana, que é graduada pela Faculdade de Letras Estrangeiras da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, e sonha fazer mestrado na Universidade de São Paulo.
Para Vitaly Violino, 24 anos, foi o interesse pela arte da capoeira, que conheceu há cerca de cinco anos por meio da Internet, a razão que o levou a procurar aprender português. “Precisava aprender uma técnica de defesa pessoal”, justifica. Depois de ter passado cinco semanas em Salvador, aprendeu todos os passos dessa arte e, hoje, em São Petersburgo, dá aulas para cerca de 50 alunos. Com freqüência, participa de encontros com capoeiristas brasileiros na Europa. “Por isso, falo um português abaianado”, diz Vitaly, que costuma cantarolar canções do compositor baiano Dorival Caymmi (1914-2008).
Já Maria Rybakova, 21 anos, primeiro aprendeu o idioma espanhol e, em razão da proximidade entre as duas línguas, quis conhecer melhor o português. “Estudo português porque gosto de Portugal e do Brasil”, diz, lembrando que o português, por ser uma língua românica e rara, sempre a atraiu. “Além disso, o Brasil se tornou importante na Rússia por causa do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China)”, observa. Sem contar que gosto muito dos professores do Centro Camões”, acrescenta.
Por sua vez, Gleb Poltorak, 22 anos, igualmente graduado, o intelectual do grupo, entendeu que saber falar português o faria discutir com mais conhecimento de causa as questões políticas e econômicas da América Latina e do mundo. Formado pela Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, Gleb, por enquanto, só pode dar aulas em colégios. “Para dar aula em faculdade, é preciso ter pelo menos mestrado (stepen´ magistra)”, observa, reclamando do fato de o professor hoje na Rússia não ser muito valorizado nem respeitado. “Os salários são baixos e o professor para sobreviver precisa dar aulas em quatro ou cinco instituições”, queixa-se, demonstrando preocupação com seu futuro.
O fato que une esses jovens é que todos são formados em Língua Portuguesa pelo Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen. Não raro, reúnem-se, ao final da tarde, num restaurante da rua Naberezhnaya Kanala Griboedova, à margem do canal Griboedova, perto do imponente Templo da Ressurreição de Cristo, mais conhecido como Salvador Sobre Sangue, que está construído no lugar em que morreu o czar Alexandre II (1818-1881), vítima de um atentado a bomba.  E qual o objetivo da reunião? Ora, conversar em português e exercitar o idioma que aprenderam  alguns com sotaque luso e outros com o falar mais adocicado dos brasileiros.
Fundado em 1999, o Centro Lusófono Camões começa o ano, em média, com 15 estudantes russos de português. Os estudantes entram no nível zero, passam para o nível médio, chegando ao nível superior. Em média, formam-se de sete a oito alunos por ano. Mas a tendência é que esse número cresça. Por iniciativa do Centro, uma escola secundária de São Petersburgo já manteve em sua grade o português como língua facultativa, mas acabou por voltar atrás. A esperança, porém, é que a sua direção reconsidere a ideia, já que isso significaria um potencial alargamento da lista dos freqüentadores do Centro em futuro próximo.
Todo esse esforço para a difusão do idioma português na Rússia tem um nome: Vadim Kopyl, doutor em Filologia Românica, diretor do Centro Lusófono Camões. O Centro, inaugurado a 16 de junho de 1999, em ato prestigiado pelo embaixador de Portugal, José Luís Gomes, e pela embaixadora do Brasil, Teresa Maria Machado Quintella, funciona dentro do campus da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen que é formado por vários palácios adaptados às necessidades de ensino, no centro histórico de São Petersburgo, cidade que é mais um museu a céu aberto, também conhecida como a Veneza do Norte.
Pouco depois de sua fundação, o Centro produziu uma edição eletrônica dos Sonetos de Camões, que teve prefácio da professora Maria Raquel de Andrade e contou com o apoio dos professores José Manuel Matias, Zélia Madeira, Rogério Nunes, Alexandra Pinho e Madalena Arroja, do Instituto Camões, de Lisboa. Desde então, publicou vários livros impressos, como o Guia de Conversação Russo-Portuguesa ContemporâneaPoesia Portuguesa Contemporânea (2004), que reúne poemas de 26 poetas portugueses traduzidos com participação de Helena Golubeva (como tradutora-tutora), e Vou-me embora de mim(2007), do poeta português Joaquim Pessoa, todos em edição russo-portuguesa.
O Centro tem ainda preparado à espera de apoio financeiro para publicação um livro de contos do escritor português Gonçalo Tavares, que contou com a participação do próprio autor. Além do Instituto Camões, o Ministério da Cultura, o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, o Colégio Universitário Pio XII, a Universidade Clássica de Lisboa, a Universidade Internacional de Lisboa, a Universidade Lusófona e a Universidade de Aveiro são algumas das instituições culturais portuguesas que têm cooperado com o trabalho dos lusistas russos.
O Centro funciona numa pequena sala atulhada de livros, cartazes e fotos. No centro da sala, fica uma grande mesa em volta da qual se acomodam os alunos, sentados em não mais que quinze cadeiras daquelas tradicionais. Na parede, há ainda uma pequena lousa, ao lado de três armários envidraçados que guardam livros portugueses, na maioria. Perto da janela, há uma pequena mesa decorada com livros, jornais e revistas em memória de Dário Moreira de Castro Alves (1927-2010), embaixador do Brasil em Portugal de 1979 a 1983, sócio-honorário da instituição.
A ALMA DO CENTRO
Aos 70 anos de idade, o professor Kopyl poderia passar o resto de sua vida descansando em Ukraine, mas isso só o faz em julho e agosto, meses de verão intenso e de “noites brancas” em São Petersburgo. No resto do ano, dedica-se ao Centro: é ele mesmo quem dá as aulas, dividindo-as com um intérprete-sincronista, Vladimir Ivanov. Até há pouco tempo, tinha também a colaboração de Helena Golubeva, que o auxiliava no ensino de português e dava aulas de tradução.
As comunicações dos estudantes dedicadas aos contatos culturais entre a Rússia e os países do mundo lusófono são lidas em português durante as aulas e, em russo, em alguns atos realizados nas bibliotecas municipais ou na casa-museu de Anna Akhmatova (1899-1966), uma das mais importantes poetas russas do século XX. 
Além da aprendizagem de português, os estudantes recebem conhecimentos básicos de tradução literária”, conta Kopyl, lembrando que mestres de tradução do russo para o português, como Helena Golubeva, Alexandra Koss, Andrei Rodossky, e também a poeta e tradutora Veronica Kapustina, laureada com o prêmio Anna Akhmatova, a etnógrafa  Elena Soboleva e o perito em artes e poliglota Mark Netchaev, já estiveram em contato com os alunos do Centro. “É inesquecível a aula simultaneamente de língua, arte e filosofia que Mark Netchaev costuma dar aos nossos alunos nas salas do Museu Hermitage”, garante.
Neste ano, o Centro contará com o apoio da leitora Maria Joana Albuquerque, do Instituto Camões. Nos últimos tempos, recebeu grande contribuição de João Santos e João Carlos Mendonça, também leitores do Instituto Camões. Com João Santos, o professor Kopyl preparou uma espécie de manual de português falado em diálogos, que se tem mostrado muito útil na aprendizagem do idioma.
A aproximação do professor Kopyl com o idioma português deu-se muito cedo, mas depois que já aprendera o espanhol e fora requisitado, ainda estudante, para trabalhar em Cuba como intérprete em 1962. “Naquele tempo da Guerra Fria, poucas pessoas falavam espanhol na Rússia”, lembra. “Quando estávamos no hotel em Havana e olhávamos para o Mar do Caribe, não tínhamos ainda noção dos riscos que a Humanidade corria naqueles dias”, observa, referindo-se implicitamente à crise dos mísseis entre Estados Unidos e União Soviética.
Ao voltar para a Universidade, começou a estudar português como autodidata, mas com grande ajuda de um jovem professor, Anatolio Gakh, nascido no Brasil, com quem mantém amizade até hoje. O tema de sua tese de mestrado já foi em português – Língua e estilo de Eça de Queiroz –, bem como o tema de sua tese de doutoramento, três anos depois – Língua e estilo de Fernando Namora.
Mais tarde, Kopyl manteve relações pessoais com o padre Joaquim Antônio de Aguiar (1914-2004), fundador e diretor do Colégio Universitário Pio XII, de Lisboa, e presidente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, que acabaram por aproximá-lo da cultura lusa. Para a fundação do Centro Lusófono Camões, grande foi o apoio daquela instituição. Alunos do tradicional colégio lisboeta e do Centro Lusófono participaram de fóruns realizados no Brasil, Portugal e Macau. Por sua parte, o Centro ajudou a Comissão da Cultura Europeia do Colégio Universitário Pio XII a organizar dois fóruns estudantis em São Petersburgo.
Por intermédio do padre Aguiar, Kopyl acabou por conhecer Dário Moreira de Castro Alves, que à época já estava empenhado em traduzir para o português o romance em versos Eugênio Oneguin, de Alexandr S. Pushkin (1794-1837), que seria, finalmente, publicado em 2008 pelo Grupo Editorial Azbooka-Atticus, de Moscou, em edição russo-portuguesa, e no Brasil em 2010 pela Editora Record, do Rio de Janeiro. Das consultas e dúvidas sobre os dois idiomas, nasceu uma amizade que se solidificou com os anos.
Fosse como fosse, as ligações de Kopyl sempre foram maiores com Portugal – como denuncia o seu sotaque lusitano. “Conheço do Brasil só aquilo que li e ouvi a respeito, mas gostaria imenso de conhecê-lo de perto”, diz. Em Portugal, Kopyl esteve várias vezes, mantendo contatos com intelectuais como António Ramos Rosa, Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Fernando Guimarães e Fernando Echevarria, entre outros, a propósito da preparação de uma antologia de poetas portugueses.   
Foi a partir das ligações com Dário Moreira de Castro Alves que, nos últimos tempos, o Centro Lusófono Camões passou a registrar maior presença da cultura brasileira. Com o apoio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e da Embaixada brasileira em Moscou, o Centro pôde publicar os livros Contos, em 2006, e Contos Escolhidos, em 2007, ambos de Machado de Assis (1839-1908), em edições bilíngües. Até então, da obra de Machado de Assis só os romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro haviam sido traduzidos para o russo.
Por enquanto, há outros projetos de lançamentos em edição bilíngüe à espera de apoios financeiros de entidades culturais tanto de Portugal quanto do Brasil. “Gostaríamos que essa cooperação se ampliasse com outras instituições culturais brasileiras, não se limitando ao apoio da Embaixada brasileira em Moscou”, acrescenta.
PORTUGUESES EM SÃO PETERSBURGO
Kopyl lembra que seus estudantes já localizaram a participação destacada de dois portugueses na história de São Petersburgo, preparando informes sobre essas personalidades. Um deles foi Antônio Ribeiro Sanches (1699-1783), clínico de renome em Londres, que foi contratado como médico do Senado e da cidade de Moscou em 1731, mas que depois manteve residência em São Petersburgo, servindo ao Império Russo até 1747.
Outro foi Antônio Manuel de Vieira, ou Antón Devier (1682?-1745), que não só foi o primeiro chefe de polícia de São Petersburgo (à época, o termo polícia englobava também a administração pública das cidades, não se restringindo à atuação repressiva policial, como se conhece hoje) como participou de obras nos canais do norte da Rússia e dirigiu a construção de dois importantes portos marítimos – o de Revel (agora Tallin) e o de Okhotsk, durante o reinado do czar Pedro I (1672-1725), alcunhado Pedro o Grande, que, em 1703, mandou edificar São Petersburgo, a nova capital da Rússia.
Segundo Kopyl, ao analisar as propostas de Ribeiro Sanches, os alunos do Centro puderam concluir que, com certeza, houve participação daquele estrangeirado luso na própria fundação da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, em 1797. “Como se sabe, a nossa universidade surgiu daquilo que primeiro era um asilo, organizado para crianças órfãs, tal como a Casa Pia, de Lisboa, criada pelo intendente-geral de polícia Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805)”, diz, lembrando que a necessidade de se criar asilos para crianças órfãs foi argumentada por Ribeiro Sanches numa carta que supostamente era dirigida a Ivan Betskoi (1704-1795), organizador do asilo em São Petersburgo.
Além disso, no século XVIII, lembra Kopyl, é importante destacar a presença da cantora lírica portuguesa Luísa Todi, natural de Setúbal, que, a partir de 1784, esteve por quatro anos na corte de Catarina, a Grande, em São Petersbugo. “Em sua estada na Rússia, Luísa Todi escreveu com o marido, o violinista Francesco Todi, a ópera Pollinia, como expressão de agradecimento pelas atenções recebidas da czarina”, ressalta.

(**) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage -- o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).

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