domingo, 6 de novembro de 2011

Uma lusofonia mais ‘ao sul’

de diálogos lusófonos

ENTREVISTA

Uma lusofonia mais ‘ao sul’

por Michell Niero
michellniero@opatifundio.com
16 de Agosto de 2009
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"temos uma modernidade que se tradicionaliza e um mosaico tradicional que se moderniza", hipotetiza Serra a
 respeito da crescente urbanização passada por Moçambique
Carlos Serra: "A imprensa brasileira mais não faz do que fazem outras imprensas que amam a 'história do sucesso'. Mas temos alguns sucessos"
O sociólogo moçambicano Carlos Serra adverte para a ausência de uma “africanização” da lusofonia, processo que em longo prazo poderá ser o fiel da balança no que diz respeito à presença da língua portuguesa no continente
Além de atuar como professor titular da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Carlos Serra, 61, espalha pela  blogosfera suas percepções sobre a vida e o cotidiano do moçambicano, país que apesar de ser lusófono não deixa para trás o espólio cultural dos tempos pré-colonizatórios. No seu endereço mais famoso, “Oficina de Sociologia” (www.oficinadesociologia.blogspot.com), ele trata de atualidades, faz análises sociais, observa a imprensa de seu país e, apesar da sua formação intelectual densa, não tem vergonha de terminar algumas de suas postagens com um sábio ponto de interrogação.
Na entrevista concedida ao Patifúndio!, Serra falou sobre os grandes temas que permeiam a vida do moçambicano, trouxe a sua percepção sobre a lusofonia, apresentou algumas das suas impressões sobre a influência brasileira em seu país e também não deixou de falar sobre a crescente onda xenófoba envolvendo moçambicanos e sul-africanos.
Lusofonia é um termo relativamente recente e que para muitos se trata de uma grande novidade. Como está a percepção sobre lusofonia em Moçambique?
Creio que poucos falam disso salvo quando alguém de peso de um país de língua portuguesa nos visita ou vamos a um seminário alusivo. Não esqueçamos que somos uma pequena ilha de língua portuguesa entre 24 (ou mais) línguas nacionais e entre países falantes de língua oficial inglesa.
A CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) estuda a entrada de países que não necessariamente têm a língua portuguesa como idioma oficial, mas que possuem ligações históricas com o período colonial português. Qual a sua posição a respeito disso?
A minha posição é a da alma: quanto mais mestiços formos cultural e linguisticamente, mais ricos somos.
Com exceção a Portugal, o ensino universitário nos países lusófonos ainda é recente. No Brasil, por exemplo, a primeira universidade data dos anos 30. Como lidar com a produção científica em um país onde o acesso a escola primária continua precário?
Não sei responder a essa pergunta, ela é imensa, sem perímetro.
A imprensa tradicional no Brasil, nas suas raras citações a Moçambique, costuma tratar o país como um dos que “mais prosperam na África”, destacando sua “democracia consolidada”. Quais as verdades e as mentiras nessa afirmação?
A imprensa brasileira mais não faz do que fazem outras imprensas que amam a “história do sucesso”.  Mas temos alguns sucessos.
O escritor moçambicano Mia Couto fala em suas entrevistas do dilema que é escrever sobre seu país tendo grande parte de seus leitores fora de Moçambique. Além dos problemas educacionais, o que impede o acesso a leitura? Qual a interferência da TV nesse quadro?
Perguntas cujas respostas certamente daria se, como sociólogo, tivesse investigado o tema.
Dentro da lusofonia, o Brasil se destaca pela facilidade que tem em exportar seus bens culturais. Qual a razão dessa empatia tão forte e que, infelizmente, não é recíproca?
Não sei responder. Talvez por ser um país culturalmente mestiço, com uma espécie de inconsciente coletivo africano, uma facilidade de ser e de dar na comunicação, coisas que sempre observo quando vou ao Brasil.
Diante da influência cada vez maior de igrejas brasileiras neo-pentecostais (IURD), novelas, seriados e músicas brasileiras, do futebol , da moda e das gírias, poderíamos comparar esse quadro a uma espécie de imperialismo semelhante ao “american way of life”?
Eventualmente. Do que sei é que em Moçambique as pessoas parece terem uma apetência especial pelas igrejas milagreiras, salvacionistas (veja o êxito da IURD, da Maná), bem como pelos curandeiros de todos os azimutes. Fazem grande sucesso, o mercado das crenças é amplo, tenho escrito sobre isso, sobre o chamo “cura-tudismo” (de “cura-tudo” ). E amo lembrar Marx: “A angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia (…). Exigir que [o povo] renuncie às ilusões é exigir que ele renuncie a uma situação que precisa de ilusões.”
O problema da xenofobia é tratado pela imprensa brasileira como uma atitude quase que limitada a países europeus. Só que Moçambique sofre com isso também.  Há alguma lógica nesse ódio crescente de sul-africanos a imigrantes moçambicanos?
Nunca há lógica nas posturas xenófobas salvo a do medo. A xenofobia é um exercício de medo, de intranqüilidade, um fusível social, que projeta violentamente em outrem a busca de uma solução social, que projeta num bode expiatório a procura ilusória de bem-estar social. Na África do Sul a comunidade moçambicana é relativamente grande e trabalhadora, é visível, é invejada. Mas a projeção no estrangeiro da razão de ser dos males sociais nada tem de especificamente africano, tem – antes – tudo de universal. Neste momento estudo, com uma das minhas equipas, percepções xenófobas em Moçambique.
Apesar de Moçambique ter o português como língua oficial, há algumas dezenas de grupos lingüísticos com força no país. A longo prazo, os interesses político-econômicos tenderão a eliminar esses idiomas locais?
Dentro de 50 anos o inglês poderá ser a língua oficial e o português uma língua de museu…Salvo se a lusofonia se africanizar, se tornar mais “sul”.
Moçambique cresce e vê em Maputo a sua aspirante a metrópole. Como ficam as tradições rurais, os cultos religiosos, as tradições dentro deste processo de urbanização?
Um imenso mundo de pesquisa, esse que propõe. Uma hipótese: temos uma modernidade que se tradicionaliza e um mosaico tradicional que se moderniza.
AIDS (SIDA) é, sem dúvidas, um dos temas mais delicados a se tratar em Moçambique.  O que o Estado pode fazer em relação às práticas religiosas (tidas por muitos como “feitiçarias”) que dificultam o tratamento e a aplicação de métodos contraceptivos?
Não sei responder. Um problema delicado esse. Eu estudo, por exemplo, linchamentos por acusação de feitiçaria (vai sair um livro sobre isso este ano) e não tenho nenhuma proposta de resolução a dar. Estamos confrontados com uma crença na causalidade extra-humana  sólida, inabalável.  Isso exige muito estudo, muito diálogo, precisamos evitar as ações-aspirina como dizia o vosso Paulo Freire. O que é isso? São aquelas ações  “cujo pressuposto fundamental é a ilusão de que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres deixando intactas as estruturas sociais dentro das quais o coração não pode ter “saúde”.
No Brasil “pagamos caixinha”; em Angola paga-se “gasosa”; em Moçambique “descasca-se amendoim pro cinzentinho”. Porque a corrupção é um traço cultural que nos une?
Esse um tema bem fundo também. Fundo e plural, com magnitudes diversas.  Nuns casos é unicamente uma forma de sobrevivência; noutros, um processo inequívoco de acumulação. Povo sobrevive, burguesia acumula.
O Sr. é branco em uma população majoritariamente negra. Observa-se em Angola uma certa discriminação contra brancos e estrangeiros, sobretudo pelo que eles representam economicamente. Como é esta relação em Moçambique?
Não sinto, nunca senti ser branco em meio a negros. Sugeria que se lesse o meu livro “Racismo, etnicidade e poder”. Essa projeção racial tem muito que se diga, sabe? A burguesia “negra” já tem aqui muito peso, muito poder.
Falando um pouco da sua vida na blogosfera. De onde veio a vontade de investir em blogs? Como vem sendo a relação com seus leitores?
Investir em blogues  é um movimento crescente em Moçambique. Trabalhar em blogues (tenho vários) é apenas uma vereda entre outras, certamente a mais moderna. Escrevo em jornais, faço publicar livros, produzo blogues.
Para terminar, ainda crê na possibilidade de uma comunidade lusófona dinâmica, que vise de fato à troca de experiências, saberes e a cooperação?
Acredito, desde que nos deixemos de formalismos.
Gostaria de partilhar mais alguma informação?
Unicamente dizer que me honra esta entrevista, esta busca de horizontes em português.
Michell:
é brasileiro, jornalista, especialista em Globalização e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Em 2008 idealizou o projeto O Patifúndio! e o mantém até hoje, graças a sua segunda paixão, a lusofonia, e aos colaboradores, verdadeiros amigos espalhados em cada território onde a língua portuguesa é exercitada.

http://opatifundio.com/site/?p=2610

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