1) ÂNGELO CRISTÓVÃO
ASSOCIAÇÃO DE AMIZADE GALIZA - PORTUGAL, SANTIAGO DE COMPOSTELA
ÂNGELO CRISTÓVÃO, empresário e escritor, nasceu em Santiago de Compostela em 1965.
Licenciado em Psicologia pela Universidade de Santiago (1988), especializou-se em Psicologia Social, especializando-se em Métodos e Técnicas de investigação nas Ciências Sociais.
Casado desde 1995 com Mónica Batalha, licenciada em Ciências Empresariais pela mesma universidade. O casal Cristóvão-Batalha tem 2 filhas (Cristina, 8 anos e Fátima, 3 anos). A atividade empresarial não o impede de desenvolver um vivo interesse pela investigação em temas e língua e cultura nacional: Em 1987, sendo estudante, participou no III Congresso Espanhol de Psicologia Social (Valência), com a comunicação: “Uma escala de atitudes perante o uso da língua”, resultado de um projeto de investigação e publicada posteriormente na revista Agália. No mesmo ano de 1987 ajuda a constituir um grupo de investigação em sociolinguística, sendo o seu secretário até 1990. Fruto deste trabalho são diversos artigos publicados em revistas e congressos internacionais. Em 1990 publica na revista Noves de Sociolinguística (Barcelona, Institut de Sociolinguística Catalana, da Generalitat de Catalunha) uma “Bibliografia de sociolinguística lusófona”, posteriormente editada também em Braga na revista lusófona Temas do Ensino de Linguística e Sociolinguística. Em 2004 organizou o livro de Lluís V. Aracil Do latim às línguas nacionais: introdução à história social das línguas europeias, Publicado em Braga. Atualmente exerce a função de secretário da Associação de Amizade Galiza-Portugal É também membro de outras associações culturais como as Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, com sedes em Viana do Castelo e Ponte Vedra.
Artigos e comunicações publicadas:
(1988a): "Identidade linguística na Galiza espanhola", in Nós, n.º 16-20, pp. 139-146.
(1988b): "Uma escala de atitudes perante o uso da língua", in Agália, n.º. 14 (verão), pp. 157-77.
(1988c): "Considerações sobre as atitudes face à língua na Galiza", in Temas do Ensino de Linguística e Sociolinguística, vol. IV-V, n.º. 14-20, pp. 123-127.
(1989): "Aspetos sociolinguísticos da problemática linguística e nacional na Galiza Espanhola", in Atas do II Congresso da Língua Galego-Portuguesa na Galiza, Ourense, pp. 237-254.
(1990): "Bibliografia de Sociolinguística lusófona", in Temas do Ensino de Linguística e Sociolinguística, vol. VI, n.º. 21-26, pp. 71-99; in Noves de Sociolinguística, n.º. 9, Barcelona, pp. 3-33.
(1992): "Language Planning: Atitudes", in Atas I Congreso de Planificación Lingüística, Santiago de Compostela, pp. 383-400.
(1994): “Medição de variáveis: competência e uso linguístico”, in Cadernos do Instituto de Estudos Luso-Galaicos "Manuel Rodrigues Lapa - Ricardo Carvalho Calero". Associação de Amizade Galiza-Portugal, Série "Investigação". vol. I, Comunicações suprimidas, n.º. 2.
(2003): “Paradoxos da Galiza”, Semanário Transmontano, 3 de julho.
Sinopse
A leitura da bibliografia recente sobre a lusofonia, produzida em Portugal, permite afirmar que não existe uma noção comum entre os diversos países integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. As notícias sobre esta matéria, regularmente difundidas pela comunicação social, as conclusões de congressos, simpósios e encontros lusófonos, e mesmo a experiência quotidiana pessoal confirmam esta observação, podendo concluir que a lusofonia é um conceito em construção e um espaço de relações a desenvolver. Se quisermos dar um futuro ao nosso passado comum, o modelo de relações e a sua posta em prática deverá ser comummente discutido e aplicado por todos os países que o integram. A história cultural da Europa oferece na República das Letras um exemplo para a lusofonia, entendida como República Literária em português. Surgida no último renascentismo -em grande parte, como consequência desta etapa –, no contexto das guerras de religião do século XVI, simultaneamente entre o público e do privado, realizando o ideal da unidade e fraternidade das pessoas, em rigorosa crítica do estado absolutista e a sociedade de classes, prolongou-se até meados do século XVIII, em que o iluminismo logrou transformar a cultura e as nações. Ainda depois dessa altura histórica, a sua continuidade foi garantida pela permanência dos valores que representou. No seu seio, e entorno ao latim como língua comum, produziu-se o humanismo vulgar (e, dentro deste, a gramaticalização das línguas vulgares), nasceu uma forte consciência europeia e criaram-se as literaturas modernas, até à chegada dos movimentos nacionalistas que organizaram a Europa contemporânea.
Longe do saudosismo por uma antiguidade idealizada, o conhecimento da nossa história cultural pode fornecer alguns exemplos notáveis que podem ajudar a pensar a lusofonia do presente.
A República Literária e a Lusofonia. Semelhanças, Diferenças e Exemplos
1. As origens da República das Letras[1]
A Respublica Litterarum ou das letras é um dos fenómenos culturais mais importantes da história da Europa, paradoxalmente, pouco conhecido e escassamente citado. Consistiu numa comunidade de pessoas identificadas por um discurso e um âmbito de relações comuns, cuja regra principal era a livre difusão das ideias. Sem limite geográfico preestabelecido, mas desenvolvendo-se especialmente nos países do Centro da Europa, circunscreve-se em termos temporais, entre meados do século XVI e XVIII; em termos culturais, entre o humanismo renascentista e o iluminismo. E, por citarmos personagens históricos, entre Erasmo de Roterdão e Voltaire.
Fazendo uma breve referência à origem, esta situa-se no contexto da recuperação dos studia humanitatis[2]; nas novas conceções do saber e da dignidade do homem[3]; no contexto das guerras de religião e a consequente perda da unidade europeia; finalmente, na descoberta dos novos mundos e a generalização da imprensa. Tudo isto constituiu o fermento intelectual de uma nova sodalitas, a comunidade internacional dos sábios, a República das Letras.
Dizem Bots e Waquet, neste sentido (1997: 31):
«Essas grandes mudanças religiosas e mentais que teriam lugar a partir do fim do século XV, constituiriam o substrato de desenvolvimento da República das Letras. O seu impulso foi, certamente, o cansaço pelas guerras civis que despedaçavam a Europa de aquela época assim como pelas divisões nacionais que se reforçariam. Então, é na mesma altura e por causa destas oposições e rasgamentos internos que a noção da República das Letras ganhou toda a sua consistência: foi pensada como um Estado ideal para benefício de um Estado real: um Estado que ignora – ao menos, teoricamente - os conflitos e as fronteiras e onde reinarão, só, a paz e a harmonia».
Por palavras do sociólogo catalão Lluís V. Aracil[4] (2004b), o aspeto mais salientável da República das Letras, nucleado no Centro-Europa (França, Inglaterra, Itália, Alemanha e Bélgica), e espalhado por todo o Continente e as Américas, era ter pensado e praticado a nível dos indivíduos uma fórmula de convivência para os países e a Humanidade inteira. Era uma proposta ideal para uma convivência em paz e respeito mútuo[5]. No seu seio, diversos modelos de relacionamento, de caráter político[6] ou religioso[7] foram propostos.
A primeira referência escrita do rótulo Respublica Litteraria data de 1417. A começos do século XVI o nome tornou-se mais comum, contudo, adquiriu uma variedade de significados em diferentes épocas e lugares. A reflexão pública generalizada sobre a matéria chegaria no século XVII, podendo agrupar-se as noções utilizadas em dois conjuntos: as fracas (significando a literatura e os escritores), e as fortes (significando a comunidade dos escritores e toda a sua atividade).
A noção de República Literária foi de uso corrente na época de Erasmo[8], tornando-se num lugar-comum no âmbito cultural e político europeu. Durante um século esteve integrada apenas pelos eruditos. Para Erasmo essa reunião ou comunidade dos sábios era indissociável do projeto de unidade cristã a recuperar. A paz de Vestefália em 1648 daria um final a este ideal, confirmando definitivamente a divisão religiosa entre países da reforma e países católicos. Depois de meados do século XVII adquiriu, especialmente na França de Louis XIV uma significação mais ampla, mais abrangente, incluindo todos os que, não sendo doutos, têm curiosidade pela cultura e, ao mesmo tempo que leitores, se sentiam parte dessa comunidade.
A República Literária europeia, convertida em República dos Filósofos[9], diluiu-se com a Revolução francesa, afirmando-se desde então as repúblicas de cada país diferente, porém, a ritmos diferentes conforme os territórios. Os doctorum converteram-se em Savants, Gelehrten, Dotti, etc., e a Respublica litterarum em République des lettres, Republic of letters, Gelehrten Republik, Republyk der Geleerden, República das Letras. Em Portugal foi o rei D. João V, o Magnânimo, o maior protetor dos literatos latinos. Sob o seu reinado publicou-se de 1745 a 1748 o Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum[10], prova da vitalidade da literatura latina em Portugal e da integração portuguesa nos movimentos culturais europeus da época. A dissolução deste espaço – comum para os educados – foi um grande acontecimento, um cataclismo cultural de consequências políticas conhecidas a posteriori. O sociólogo catalão Lluís V. Aracil denominou o período nacionalista, entre 1789 e 1979 a «Guerra dos duzentos anos», e em cuja origem salienta a perda de sentido da comunidade, do conjunto, da civilização europeia.
Alguns dos membros da República Literária viam o caminho que estava a tomar a Europa com desassossego. Madame D’Estäel (1766-1817), no seu livro De L’Allemagne fazia um apelo aos que ainda acreditavam nesse espaço comum que era a Europa, para manter esse ideal de universalismo cuja desaparição era levada a termo, na França, pelos partidários de Napoléon Bonaparte[11]. No plano linguístico, os enciclopedistas eram plenamente conscientes da rutura que estavam a levar a termo. O seu projeto estava endereçado a um público mais amplo, não apenas aos sábios. Assim, por exemplo, muitos assinantes e colaboradores da Encyclopédie fizeram parte do projeto editorial e do movimento enciclopedista, alargando-se o número de leitores e escritores do projeto, o que, paradoxalmente, o levaria finalmente à dissolução do projeto. Dalgum modo pode dizer-se que a causa da sua desaparição da República Literária foi o seu enorme sucesso.
A República das Letras teve, no século XVI, vários sinónimos, como República das boas letras ou República das ciências, República das Musas, Povo das letras, Povo sábio, mas também Latine Republike, expressão que se acha num texto do médico inglês Thomas Browne (1605-1682), em referência à língua comum. Também o termo República das Letras foi utilizado num sentido restrito, apenas como referida aos literatos, sendo assim uma parte e não o conjunto de todos os sábios. Assim, o redator do Giornale Veneto de’letterari, em 1671, referia-se aos domínios particulares do saber, utilizando-se também as expressões República dos médicos[12], República histórica, etc. (Bots e Waquet, 1997, p. 16).
1.1. Características mais importantes da República Literária, segundo Bots e Waquet (1997)
a) Era um estado dentro de todas e cada uma das monarquias europeias, com as suas próprias regras, cujos membros se proclamavam voluntariamente cidadãos dessa República. Isto conduzia a pôr em questão a sua legitimidade e representatividade com os outros estados da sociedade, nomeadamente face à nobreza.
b) Era universal, estendida a toda a terra, o que implicava um forte contraste com a organização política europeia do seu tempo. Na verdade, estavam separados em diferentes monarquias e principados, com fronteiras delimitadas e rígidas. Existia, também, uma problemática pessoal originada numa dupla pertença: o compromisso com um ideal de comunidade universal, e o facto mais real de pertencer a um estado particular com interesses concretos.
c) Estava constituída por cidadãos iguais, como irmãos, o que entrava em conflito com a divisão social em hierarquias, característico do Ancien Régime.
d) Era pluriconfessional. Esta característica unitária afirmou-se com a Reforma. As guerras de religião reforçaram mais essa diversidade entre os membros e o respeito mútuo, nomeadamente entre católicos e reformados. Erasmo dedicou a maior parte da sua vida à procura da unidade perdida no cristianismo. Posteriormente outros autores procuraram uma convivência pacífica. Exemplo claro destes intentos é a Carta sobre a Tolerância de Leibniz[13].
e)) A liberdade dos membros era essencial para a sua continuidade. A independência de cada membro era plena, em forte contradição com os estados contemporâneos, os reinos absolutistas e oligárquicos, que partilhavam um mesmo sentido autoritário da política. Neste sentido, a República literária era um espaço antiautoritário.
f) Era uma comunidade intelectual, cujo intuito se concretizava por palavras de Loeber, “Servir, ensinar o saber verdadeiro e a verdadeira erudição, e transmiti-los à posteridade”. Esta atividade, afastada de todo interesse particular, de todo individualismo, promovia o ideal da comunicação generosa do saber, reconhecido como útil. Os próprios membros da república salientam o caráter de associação voluntária e livre, sem poder supremo nem forma de governo estabelecida. Contudo, houve projetos para a sua organização, como o Projet pour l’établissement d’un Bureau general de la Republique des Lettres.
g) O seu discurso estava articulado em forma de crítica, seguindo o modelo clássico de exposição de uma tese e posterior defesa e crítica da tese. Goodman (1984:14) explica como, através das conversas de salão e da imprensa, verdadeiros foros de discussão, em Paris, indivíduos privados conformaram a sociedade civil e constituíram-se em opinião pública, nos fins do século XVIII.
h) Acrescente-se o que Goodman afirma (1984:23) dos homens de letras franceses, na época do enciclopedismo: no seu relacionamento tinham como princípios fundamentais «a reciprocidade, o cosmopolitismo, o rango baseado no mérito e a fidelidade à verdade». Noutra página insiste neste aspeto, salientando que «a igualdade e a fraternidade tinham de ser a base de todo o relacionamento não só entre os homens de letras, mas também entre todas pessoas». Todas estas características levaram a República Literária ao confronto com o absolutismo em geral e a monarquia francesa em particular.
1.2. A organização
As entidades em que se organizou o conjunto dos membros da República das Letras foram variadas, como as academias e universidades. A publicação das obras e a sua necessária difusão fizeram necessário o intercâmbio de informação, aliás, este era um dos seus princípios, abrangendo todo o âmbito da atividade intelectual da época, para o qual foi fundamental a circulação de revistas e jornais criados a tal fim, com diversos títulos como Journal des Savants (Paris, 1665), Philosophical Transactions (Londres, 1665); Giornale de’letterari (Roma, 1668); Ata Eruditorum (Leipzig, 1682-1776) e Nouvelles de la Republique des Lettres (Holanda, 1684). Como no humanismo, os membros da República das Letras incluíam a comunicação como elemento essencial do seu vocabulário, assim, um bom sábio devia comunicar generosamente as suas descobertas para contribuir ao bem comum. Dizem Bots e Waquet (1997:119):
«O ideal de colaboração internacional inspira as academias de Londres e Paris desde os primeiros dias. Em seguimento da lição baconiana, os membros destas instituições estavam persuadidos de que, para o avanço das ciências, era imprescindível o intercâmbio e a posta em comum à escala europeia dos resultados das investigações».
Sobeja dizer que os valores representados pela República das Letras não desapareceram totalmente no século XVIII. De alguma forma, os herdeiros são a comunidade científica dos séculos XIX e XX.
1.3. O modelo linguístico da República das Letras
A organização linguística da Europa tinha uma característica comum: em toda a parte coexistiam as línguas vulgares com o latim. De facto, esta foi por séculos o modelo, e os autores clássicos, o exemplo a emular. Esta relação e o lugar que deviam a Grammatica e o vulgar foi objeto de discussão pública. Já Comenius (1592-1670) propunha no seu Janua Linguarum Reserata (1640) um modelo de equilíbrio em que se devia manter o ensino de ambas as línguas. Em Itália, paralelamente à Questione della lingua, essa hierarquia entre o latim (superior) e o vulgar (inferior) era discutida desde o século XIV. Mas continuava a ser o elo de união, o lugar-comum, a língua em que se relacionavam as pessoas e os países no presente, mantendo uma continuidade cultural com o passado.
Em meados do século XVII o francês começou a substituir o latim, a língua comum, tornando-se maioritário na comunidade dos sábios a fins desse século[14]. Os enciclopedistas eram conscientes, por um lado, da posição privilegiada da língua de Molière e, por outro, do perigo que esse caminho implicava para o mundo da cultura. No Discourse Préliminaire da Éncyclopédie, de D’Alembert fica patente esse desassossego[15] (1751:153-4). O facto de estarem a experimentar um período de grandes mudanças ficou patente também no seu «Tableau de l’esprit humain au milieu du XVIII siècle», introdução ao Essai sur les éléments de philosophie (1759)[16].
Com efeito, ao passo que se suprimia o latim como língua comum perdia-se a visão da Europa, do mundo, como um conjunto. Aracil (2004a) salienta a importância da mudança epistemológica, deste facto histórico -o que era parte (cada país), começa a ser todo, começam a proliferar mundos autárquicos e antagónicos. A mudança teve múltiplas implicações como uma nova explicação da história da língua em que o latim, como elemento comum, acabaria desaparecendo totalmente e sendo substituído primeiramente pelo Francês e depois pelo inglês. Ora, isto provocou também, desde essa altura, a realização de múltiplos esforços de diversas inspirações, na procura de uma língua comum. O mito de Babel ressurgiu, as línguas filosóficas proliferaram, quer com modelos matemáticos, quer ecléticos[17].
Naturalmente, a República Literária latina foi o modelo para a criação da República Literária portuguesa, em mais de um sentido. O português substituiu o latim nas suas funções como língua comum, já sob o rótulo de língua nacional, o que em Portugal não oferecia dúvidas significativas[18].
2. A lusofonia presente
Para além da distância sociológica e política que a história determina, o maior contraste entre a República Literária latina e a lusofonia é que, enquanto aquela era promovida, e desenvolvida por indivíduos organizados com relativa independência dos Estados, na lusofonia presente a maior parte das iniciativas pertence aos governos. O mais ambicioso destes projetos é a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. O exercício habitual nos artigos de opinião sobre a CPLP é a reflexão sobre a sua unidade e sentido, em comparação com a francofonia, a hispanofonia, a Commonwealth, ou outros espaços e organizações multinacionais constituídos durante o século XX. O senso comum diz-nos que, nas antigas metrópoles, a reflexão sobre o passado colonial resulta mais fácil e acertada quanto maior for a distância temporal do observador.
No caso de Portugal, trinta anos parece um prazo insuficiente para ultrapassar os traumas do passado. No nível da investigação universitária, resulta chocante a escassez ou, por acaso, a dificuldade de acesso a estudos sobre a história sociolinguística do português em África e Ásia. Isto resulta mais evidente considerando a ampla bibliografia existente nos casos do inglês[19] e o francês[20]. No nível do estado, contra o que estabelece a Constituição portuguesa, a política oficial de passividade na defesa e promoção da língua apenas é quebrada pela teimosia dos novos países africanos ou Timor que, depois de muita insistência, recebe alguns professores portugueses, contudo, insuficientes para atender a demanda. Estudarmos a CPLP (mais projeto do que realidade) apenas como facto presente, sem acompanhá-la de uma explicação do passado, seria equivalente a apresentar esta entidade internacional como novidade histórica absoluta. Este discurso, carente de perspetiva, contém o mesmo intuito legitimador do modelo nacional de organização das sociedades europeias, iniciado com a revolução francesa. A consolidação das línguas nacionais nos seus respetivos territórios veio acompanhada do progressivo abandono do ensino do latim, até à sua total desaparição do bacharelato.
Este facto, acompanhado pelo alargamento do sistema de ensino primário facilitou a alfabetização maciça da população. Durante o século XX as histórias da língua ignoraram o facto de o português ter convivido, secularmente, com a língua comum europeia, numa distribuição de funções variável, mas permanente nos âmbitos universitário e institucional. Afirmar que, por séculos, o português não foi em Portugal a única língua da cultura é uma forma de tornar relativa a sua importância, e talvez isto seja incómodo e irreverente para a história oficial, caracterizada pela pretensão de unanimidade, interpretando o passado em função do presente. Mas isto não é só características de Portugal. No nosso continente, o facto de ter havido uma língua comum para a maior parte dos países, continua a ser tratado como assunto anedótico, residual ou mesmo inexistente.
Na República Literária, observámos um exemplo histórico de um grupo de países relacionados, no plano académico e cultural, por uma língua comum. Pessoas de países e religiões diferentes mantiveram um diálogo permanente, criando uma rede de relações independente e duradoura. A lição que podemos tirar para a lusofonia presente é que só convertendo a sociedade civil em protagonista da lusofonia poderemos dar-lhe um conteúdo duradouro. Só levando a iniciativa dos governos para um segundo plano é que a lusofonia poderá ter um futuro claro. Depois do período histórico do nacionalismo (1789-1989), universalmente difundido, em que cada nação pretendia representar o mundo em todos os sentidos, parece chegada a altura de abandonar o modelo de língua como propriedade nacional. Neste sentido, um recente artigo de Fernando Cristóvão incide na ideia da república do português, explicada pelo modelo dos círculos concêntricos.
Na sua comunicação ao encontro a Língua Portuguesa: presente e futuro, Solange Parvaux[21] realizava umas propostas que me pareceram da maior sensatez, e que assumo como próprias:
1. «A nível da CPLP, a medida prioritária é a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990», em que a Galiza participou como observadora através da Comissão Galega do Acordo Ortográfico.
2. «O estabelecimento de acordos entre os países lusófonos nos exames para a certificação dos conhecimentos de português-língua estrangeira...»
3. «Definir regras, em comum, para a integração das palavras estrangeiras». É nas linguagens técnicas que precisamos de uma maior unidade de critério. A criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa deveria facilitar esta aproximação entre as variantes americana e europeia da nossa língua.
Bibliografia
AA.VV (2005) A língua portuguesa: presente e futuro (Conferência Internacional «A língua portuguesa, presente e futuro», Lisboa, dezº 2004): Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação e Bolsas.
Aracil, Lluís V. (2004a) Do latim às línguas nacionais: introdução à história social das línguas europeias, Braga: Associação de Amizade Galiza-Portugal.
------------------ (2004b) “Contextos que geram textos”, conferência editada no DVD do II Seminário de Políticas Linguísticas da Associação de Amizade Galiza-Portugal. Santiago de Compostela, 24 a 26 de nov. Discos 3-4.
Bots, Hans & Françoise Waquet (1997) La République des Lettres, Paris: Belin-De Boeck.
Burke, Peter e Roy Potter (1987) The Social History of Language. London: Cambridge University Press. Trad. Brasileira (1996): História Social da Linguagem, São Paulo: Editora Unesp e Cambridge University presos.
Cardoso, Luís Miguel Oliveira de Barros (2004) Retórica, comunicação e teoria do texto: análise a um Thesaurus do séc. XVIII – tessitura retórica e discurso apologético, in: http://ipv.pt/forumedia/3/3_fi5.htm
Cristóvão, Fernando (2005) «Os três círculos da lusofonia», no endereço eletrónico
D’Alembert (1751) «Discours préliminaire» in L’Encyclopédie ou Dictionnaire Rasoinné des Sciences, des Arts et des Métiers (articles choisis), tomo I. Paris Éditions Flammarion, 1986.
Eco, Umberto (1993) La Ricerca della Lingua Perfetta, Roma-Bari: Gius. Laterza & Figli.
Goodman, Dena (1984) The Republic of Letters. A Cultural History of the French Enlightenment, Ithaca-London: Cornell Univ. Press.
Kristeller, Paul Oskar (1979): Renaissance Thought and its sources. New York: Columbia University Press.
Locke, John (1982) Carta sobre a Tolerância, Lisboa: Edições 70.
Pico Della Mirandola, Giovanni (1496) Oratio de hominis dignitate. Trad. Portuguesa:
Discurso sobre a felicidade do homem (bilingue). Lisboa: Edições 70, 1989.
Vieira, António (1953) História do futuro, in: Obras Escolhidas. Lisboa: Sá da Costa.
Voltaire (1751) Siécle de Louis XIV: particularités et anecdotes, Paris.
[1] Bibliografia consultada para redigir este apartado: Hans Bots & Françoise Waquet (1997); Dena Goodman (1994).
[2] Ver Kristeller (1979).
[3] Nomeadamente, de Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494) a Oratio de Hominis Dignitate, Discurso sobre a dignidade do homem (1496).
[4] Esta comunicação não seria possível sem o magistério do sociólogo valenciano, cujo livro Do latim às línguas nacionais: introdução à história social das línguas europeias, organizei em 2004 junto do também valenciano prof. Josep Conill.
[5] Conferência de Lluís Aracil durante o II Seminário de Políticas Linguísticas da Associação de Amizade Galiza-Portugal. Santiago de Compostela. Novembro de 2004. Veja-se também do mesmo autor Do latim às línguas nacionais: introdução à história social das línguas europeias (2004).
[6] A começar pela ideia da Respublica Christiana, ideal também promovido em Portugal . Veja-se do Padre António Vieira História do Futuro.
[7] Um dos textos mais conhecidos sobre a matéria é a Carta sobre a Tolerância de John Locke, com o intuito de melhorar a relação entre a igreja católica e as reformadas. No texto defende a tolerância como valor que melhor define o cristianismo.
[9] Voltaire, na sua definição da Gens de Lettres na Encyclopédie (1757) refere a queda do modelo de sábio renascentista, que tinha sido o dos membros da república literária até essa altura. Da Respublica litteraria passaram à République des Philosophes.
[10] Veja-se Luís Miguel Cardoso (2004).
[11] Esse livro transmitia uma ideia nada «patriótica» para a época: as nações podem aprender mutuamente umas das outras. A autora comentou o que de bom havia na Alemanha, incluídas as suas universidades, os seus valores culturais...fazia-o em francês, endereçado aos seus concidadãos. Isto não foi tolerado pela polícia de Bonaparte. Proibiram a sua publicação, que teria lugar, finalmente, em Inglaterra.
[12] Esta generalização foi tão corrente que ainda em Portugal se utiliza a expressão República dos estudantes, referida aos prédios geridos por eles.
[13] Dizem Bots e Waquet: «Leibniz, que conhecera as consequências da guerra dos Trinta Anos, refletiria toda a sua vida sobre as possibilidades de estabelecer uma Republica Christiana, a mais bela de todas as utopias» (p. 39).
[14] Ver Bots e Waquet (1997:135-6; 146-8).
[15] «Tendo-se estendido a nossa língua por toda a Europa, julgámos que era a altura de esta substituir a latina que, depois da renascença das letras, tinha sido a dos sábios. Acho que é bastante mais escusável, para um filósofo, escrever em francês do que um francês fazer versos latinos; concordando que seja o mesmo difundir o espírito do povo que acrescentar a sua difusão. Entretanto, daí resulta um inconveniente que devíamos ter previsto. Os sábios das outras nações a quem nós temos dado exemplo podem acreditar, com razão, que poderiam escrever ainda melhor nas suas línguas do que na nossa. Então, Inglaterra imitou-nos; Alemanha, onde o latim parecia ter-se refugiado, começa lentamente a perder o seu uso: não duvido que serão seguidos em breve pelos suecos, daneses e russos. Assim, antes do fim do século XVIII, um filósofo que quiser instruir-se bem nas descobertas dos seus predecessores, terá de carregar na sua memória entre sete a oito línguas diferentes e, depois de ter consumido para as aprender o tempo mais precioso da sua vida, morrerá antes de se começar a instruir» (1751:153-4).
[16] «A pouco que for considerado, com olhos atentos, o centro do século em que vivemos, os acontecimentos que nos ocupam, ou pelo menos nos abalam, os nossos costumes, as nossas obras e até as nossas conversas, um descobre, apercebe-se sem pena, que isso se tem feito em vários sentidos uma mudança salientável nas nossas ideias, mudança que, pela sua rapidez semelha nos prometer ainda um mais grande» (Bots e Waquet, 1997:56).
[17] Uma das últimas compilações de línguas pretensamente universais é a de Umberto Eco (1993).
[18] Diferente era a situação do Brasil e os territórios africanos. O ensino veiculado pelas ordens religiosas, nomeadamente os jesuítas, deu lugar a dúvidas sobre a língua a utilizar. Lembremos a ordem do Marquês de Pombal para tornar obrigatório o ensino em português no Brasil, face ao costume que muitos jesuítas tinham de utilizar a língua nativa como língua veicular no ensino.
[19] Ver Peter Burke e Roy Porter (1987: 191-234), um esclarecedor estudo sobre a alfabetização na Nova Zelândia no século XIX.
[20] Ver o muito citado livro de Michel Certeau, Dominique Julia e Jacques Revel: Une politique de la langue. La révolution française et les patois (1975).
[21] Solange Parvaux: «Convergência e divergência no espaço da língua portuguesa» in: AA. VV (2005) A língua portuguesa: Presente e futuro.
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