sexta-feira, 18 de novembro de 2011
No canteiro de obras
Empresas e organizações começam a perceber que a qualificação profissional em língua portuguesa é tão importante quanto a especialização tecnológica
Leonardo Fuhrmann
Leonardo Fuhrmann
Setores como o da construção civil descobriram que baixos índices de escolarização afetam a produtividade |
Quando se fala em qualificação profissional, a primeira ideia que vem à cabeça da maioria das pessoas é a preparação para que os trabalhadores passem a lidar com máquinas tecnologicamente cada vez mais sofisticadas. Mas sindicatos, empresas e o governo estão preocupados não só com esse tipo de formação aos trabalhadores, mas com o uso de uma ferramenta antiga e aparentemente muito mais simples: a linguagem.
A mudança no perfil laboral torna cada vez mais importante que um profissional, mesmo em atividades de baixa complexidade, tenha capacidade de compreender com clareza as instruções que recebe, transmitir suas experiências aos colegas e relatar as situações que enfrenta aos seus superiores hierárquicos.
Saber é trabalhar
Geralmente, numa situação de altos índices de desemprego, o trabalhador sente a necessidade de aprimorar a sua formação para obter um posto de trabalho. As empresas buscam os mais qualificados em cada categoria e excluem os que não se encaixam no perfil pretendido. Nos últimos anos, essa não tem sido a lógica vigente no Brasil. Segundo a pesquisa de emprego urbano feita pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e pela Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados), os níveis de pessoas sem emprego estão apresentando quedas sucessivas de 2005 para cá. O desemprego em nove regiões metropolitanas medido pela pesquisa era de 17,9% em 2005 e fechou em 11,9% em 2010.
A pesquisa do Dieese é um medidor importante, pois sua metodologia leva em conta não só o desemprego aberto (quem está procurando trabalho), como o oculto (pessoas que desistiram de procurar ou estão em postos precários). Uma das consequências desta situação é apontada dentro da própria pesquisa, um aumento médio no nível de rendimentos dos trabalhadores ocupados.
A outra é a dificuldade que as empresas têm de encontrar mão de obra qualificada para os postos de trabalho que estão abertos. A Fundação Dom Cabral apresentou, em março, a pesquisa Carência de Profissionais no Brasil. O levantamento foi feito com 130 empresas de grande porte de vários setores da economia, que juntas atuam em todas as regiões do país e movimentam em torno de 22% do PIB (Produto Interno Bruto).
Trabalhar o saber
A análise levou em conta profissionais dos níveis técnico, operacional, estratégico e tático. Do total, 92% das empresas admitiram ter dificuldades para contratar a mão de obra de que necessitam. O problema se repete em percentuais semelhantes no país inteiro e para as empresas que atuam no exterior. As principais dificuldades são a escassez de profissionais qualificados (apontada por 81% dos entrevistados), falta de trabalhadores com experiência na função (49%), deficiências na formação básica dos candidatos (42%). Por conta disso, mais de metade das empresas admitiu que está baixando o nível de exigência para conseguir contratar funcionários.
Para compensar a falta de qualificação dos profissionais no momento da contratação, muitas empresas têm procurado outros meios de melhorar o nível de formação dos profissionais. O aprimoramento na educação básica dos trabalhadores tem sido um investimento de empresas como as construtoras Andrade Gutierrez e Even. A construção civil já é conhecida por ser um dos setores da economia com maior número de vagas para trabalhadores com baixo índice de escolarização. Soma-se a isso o fato de ser o ramo onde proporcionalmente está acontecendo a maior abertura de vagas nas regiões metropolitanas pesquisadas pelo Dieese.
O saber trabalhar
Valéria Fernandes, diretora de Recursos Humanos da Even, diz que a construtora decidiu, desde 2007, investir no desenvolvimento dos profissionais por conta do alto índice de analfabetos funcionais e da falta de oportunidade para o estudo regular. Por isso, passou a dar aulas nos canteiros de obra. Ela destaca que a empresa percebeu que o baixo nível de escolaridade afeta a comunicação, dificultando a compreensão das informações.
- É importante que o trabalhador saiba ler e, principalmente, entender sinalizações de segurança, instruções técnicas e outros conteúdos da rotina da obra - explica.
Os alunos do curso são principalmente carpinteiros, pedreiros, mestres e encarregados, com idades que variam entre 25 e 50 anos. O Programa envolve todas as matérias do ensino fundamental, tomando como referência o Telecurso 2000. Atualmente, o Programa Escola envolve 5 salas em obras diferentes, em São Paulo, com conteúdo de 1ª à 8ª série, metodologia própria e encaminhamento para exames finais no MEC.
- Em 2010 foram formados 50 alunos e hoje temos 70 trabalhadores participando da ação - afirma.
O equivalente ao ensino fundamental dura 8 meses com 2 horas de aula ao dia, após o expediente. A empresa fornece o material e o lanche diário. Valéria aponta que o aprimoramento traz um maior respeito às normas de segurança e também um maior interesse no campo profissional, com consequente aumento da produtividade.
- Além disso, a capacidade de ler e escrever auxilia muito no desempenho dos colaboradores nos cursos de capacitação profissional oferecidos pela empresa - afirma.
A empresa também oferece um curso de técnicas de redação, objetividade na escrita e nova ortografia para técnicos de segurança e almoxarifes da Green, empresa de mão de obra da Even. O motivo é que esses profissionais são responsáveis por elaborar relatórios.
Alunos em aula do Projeto Escola Zé Peão, na Paraíba: o ensino vai até os trabalhadores |
Escolaridade
Em geral, o trabalhador brasileiro tem um tempo de escolaridade baixo em relação a outros países, sem falar na qualidade de ensino. O pesquisador Paulo Roberto Cobucci, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ressalta que, apesar da melhora que houve nos últimos anos, o desempenho dos alunos brasileiros em provas internacionais ainda é muito baixo. Ele lembra que a qualidade do ensino não pode ser medida apenas pela formação dada dentro das salas de aula. Em razão de outras dificuldades, muitos concluem o ensino fundamental com defasagens de raciocínio e compreensão.
- A escola não resolve tudo. Se fosse assim, Cuba seria uma potência - exemplifica.
Na sua avaliação, as empresas passaram a sentir a necessidade de investir mais na formação básica dos funcionários quando perceberam que eles tinham baixa capacidade de interpretação e que não teriam condições, em razão de outros compromissos e necessidades, de voltar a frequentar uma escola convencional.
Ainda mais aquecido agora, em razão da descoberta das reservas petrolíferas na camada do pré-sal, o setor de combustíveis tem um programa de qualificação desde 2003. O Prominp (Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás) já ofereceu cursos de qualificação para profissionais de ensino básico, médio, técnico e superior em 185 categorias profissionais, em parceria com 80 instituições de ensino. Ao todo, 78 mil pessoas foram qualificadas, até com o pagamento de bolsa-auxílio a desempregados.
Desde 2008, em parceria com o Ministério de Desenvolvimento Econômico e Social e governos municipais e federal, o Prominp oferece cursos de reforço escolar, em especial para beneficiários do Bolsa-Família, preparando-os para que possam acompanhar os cursos de qualificação profissional. A parceria já atendeu 33 mil pessoas para reforço escolar em oito estados; um terço delas havia cursado o ensino médio e as demais tinham formação apenas de ensino fundamental.
Aprimoramento
Para medir melhor o nível de compreensão dos brasileiros, o Instituto Paulo Montenegro criou há 10 anos o Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional). A pesquisa é feita em parceria com a Ação Educativa. Segundo dados de 2009, apesar da melhora dos últimos anos, 28% da população brasileira entre 15 e 64 anos pode ser considerada analfabeta funcional. Neste grupo estão incluídas as pessoas que são completamente analfabetas (7%) e aquelas que, mesmo sabendo ler e escrever, têm grandes restrições na interpretação de textos, mesmo que curtos e escritos em linguagem simples e direta (21%). O alfabetismo pleno - que inclui a capacidade de interpretar textos longos e relacionar e comparar informações nele contidas - foi alcançado por apenas 25% dos entrevistados. Uma análise dos dados mostra a necessidade de aprimoramento no ensino de conceitos básicos mesmo para quem passou pelo ensino médio. Apenas 38% das pessoas desse nível de instrução podem ser consideradas plenamente alfabetizadas. Dos que cursaram entre 1 e 4 anos do ensino fundamental, 10% são considerados analfabetos e 24% dos que tiveram entre 5 e 8 anos de ensino são considerados alfabetizados de forma rudimentar.
Para Roberto Capelli, coordenador de Educação de Jovens e Adultos da ONG Ação Educativa, mais preocupante do que a situação atual é pensar que, pela qualidade do ensino, possivelmente cursos de reforço escolar ainda terão de ser dados para os adultos das próximas gerações. Ele conta que comerciantes e empresas do setor hoteleiro costumam procurar a entidade em busca de orientação sobre formas de aprimorar os conhecimentos básicos de seus profissionais.
- A criação dos cursos é positiva, mas as empresas precisam dar condições para que os trabalhadores consigam conciliar as atividades profissionais e estudantis com a vida particular - destaca.
Capelli explica que um dos maiores desafios do ensino para pessoas nesta faixa etária é o grande índice de evasão escolar.
A diretora de Políticas de Educação Profissional do Ministério da Educação, Simone Valdete, afirma que a formação técnica dada hoje no Brasil pressupõe o repertório de conhecimento de quem cursou ou está cursando o ensino médio. O problema é que 60 milhões de brasileiros não concluíram o ensino fundamental. E o Brasil alcançou 8 milhões de matrículas no ensino médio, mas com altas taxas de reprovação e, sobretudo, de evasão. O ministério está investindo também na certificação gratuita de trabalhadores de 40 perfis profissionais, em áreas como pesca, turismo e construção civil. Os alunos precisam comprovar habilidades específicas e ter concluído o fundamental. Para incluir mais trabalhadores, estão sendo oferecidos cursos de educação de jovens e adultos dentro das unidades de ensino tecnológico e técnico profissionalizante.
Para a professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) Maria Clara di Pierro, especialista em educação de jovens e adultos, o problema da falta de habilidade dos trabalhadores para tarefas do mercado de trabalho não é um problema apenas do Brasil, e inclusive foi tema de uma convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
- Estamos em uma fase do conhecimento tecnológico que exige mais das pessoas do que algumas habilidades específicas. O mercado não tem mais o mesmo espaço para atividades simples e repetitivas - analisa.
Plataforma offshore: descoberta de reservas petrolíferas despertou nas empresas a necessidade de investir na formação básica de seus funcionários |
No caso da construção civil, por exemplo, os trabalhadores precisam estar preparados para trabalhar com novas tecnologias, atuar em diferentes ciclos da obra e propiciar uma maior economia de material. Para ela, o ensino para jovens e adultos no Brasil ainda enfrenta grandes dificuldades por falta de profissionais especializados e de escolas específicas, com horários e rotinas mais flexíveis.
- Com a mesma estrutura física e corpo de professores, o sistema para jovens e adultos imita os métodos que são usados para crianças e adolescentes - opina.
Por isso, acredita, mesmo com a institucionalização do ensino para jovens e adultos que foi feita pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma redução no número de matrículas. Hoje, existem livros didáticos específicos e as escolas recebem recursos para merenda destinada a esses alunos. Maria Clara destaca que algumas iniciativas fora das escolas conseguem bons resultados, ainda mais quando profissionais, empresas e governos atuam em parceria e cada um entra com alguma contrapartida.
Evasão
A professora cita como exemplo de sucesso o Projeto Escola Zé Peão, parceria do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa com a Universidade Federal da Paraíba. Em 20 anos, 10 mil alunos passaram por suas salas de aula, sendo que metade concluiu o curso, equivalente ao quatro primeiros anos do ensino fundamental. Zezinha Moura, uma das coordenadoras pedagógicas, diz que a evasão é grande não só em razão dos fatores tradicionais que levam adultos a deixar os estudos, mas também devido a transferências e à alta rotatividade do setor. O ensino é dado nos canteiros de obras.
- Muitos alunos seguiram nos estudos e concluíram o ensino fundamental, alguns chegaram a concluir o ensino médio. Temos quatro diretores do sindicato nesta gestão que foram nossos alunos - afirma ela.
As aulas são dadas por alunos de licenciatura da universidade e foi criado um material de ensino específico. A experiência tem servido de apoio a projetos de ensino das redes municipal, estadual e federal, de educação para trabalhadores sem-terra e foi apresentado como exemplo durante a Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea), na Cidade do México.
No começo, informa a professora, os empresários não queriam saber de escolas em seus canteiros. Hoje são eles que solicitam as salas de aula.
Fonte: Revista Língua Portuguesa, ano 7, nº 72, outubro de 2011, p. 22-6.
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