terça-feira, 15 de novembro de 2011

Macau – sinologia para a lusofonia


Macau – sinologia para a lusofonia

Por  | 30 Set 2010 |  Enviar por email
Para Wu Zhiliang, é claro e indiscutível que “o maior valor da existência e sobrevivência da região é o factor cultural, o seu legado histórico e cultural”, que, assim, “tem a responsabilidade de promover o intercâmbio luso-chinês”.
A recorrente repetição do discurso é sempre sintoma da esterilização do verbo que, devendo enchê-lo, apenas o incha. Falam pouco as gerações activas e realizadoras, falam muito, as estéreis. Como alguém disse, os portugueses ficaram desempregados depois de terem ido à Índia. Há séculos só falamos do passado, por isso Vasco Graça Moura nos dizia há anos que Portugal devia projectar-se ao futuro “sem utopias de retrovisor”.
Durante vinte e cinco anos nos enfastiámos com osaturado discurso do encontro de culturas em Macau, tema obrigatório dos milhentos discursos ouvidos na terra que foi, de facto nos seus começos e durante dois séculos, o centro de acolhimento e distribuição dos agentes culturais que protagonizaram o maior fenómeno de compenetração cultural alguma vez realizado na História, no juízo de Joseph Needham, o maior sinólogo do século XX.
E, no entanto, Macau sempre continuou ancorada à sua vocação e destino, no mesmo sítio, no encruzamento das mesmas inalteráveis coordenadas geográficas, animada das mesmas potencialidades. Na nossa vocação, carácter e destino como comunidades seremos sempre escravos da geopolítica. Sempre aguardaremos as “condições objectivas” favoráveis da passagem a acto das nossas potências, na linguagem aristotélica, como a nau envergada espera no porto a chegada dos ventos de favor. Cabe aos homens actualizar nos tempos transientes o que está em latência, renovar o mesmo de outras formas e modos. Eis que sopram já agora os ventos da renovação, Macau enfrentada ao seu destino intemporal.
UMA ESTRATÉGIA
Há anos aguardávamos com alguma frustração e impaciência que, depois de plataforma de trocas comerciais da RPC com os países lusófonos, Macau se transformasse, simultaneamente, num verdadeiro e activo centro de intercâmbios culturais nos dois sentidos, em continuada e renovada concretização das suas potencialidades. A entrevista que o novo presidente da Fundação Macau deu à Lusa (e aqui publicada neste jornal) foi, em anos, a mais notável declaração pública de intenções e o mais claro e rasgado desígnio de estratégia cultural para Macau, na sua radiação para o exterior, a que pudemos assistir. Wu Zhiliang, historiador, com perfeito domínio do Português, profundo conhecedor de Macau, das suas constantes e vocações, acumulando larga experiência na vida institucional da terra, veio falar com clareza e rasgo: não só deixou o desenho das linhas teóricas como avançou logo com gestos e actos iniciadores da concretização dos projectos, com a convicção de quem sabe que está certo e em sintonia com as mais altas instâncias do poder.
Basta-nos para acreditar. Para ele é claro e indiscutível que “o maior valor da existência e sobrevivência da região é o factor cultural, o seu legado histórico e cultural”, que, assim, “tem a responsabilidade de promover o intercâmbio luso-chinês”. Para estimular colaborações, Wu Zhiliang falou na procura de parcerias para a realização de iniciativas culturais em vários domínios, enfatizando a necessidade de promover a tradução e a edição de obras em Português e Chinês.
Convém, e é a simples razão destas linhas, não deixar, porém, a concretização desejada à disparidade desorientada, convindo apontar igualmente alguns sinais à navegação, noutros termos, adiantar igualmente um esboço de estratégia para a acção, no respeito da espontaneidade das iniciativas concorrentes.
UM CENTRO DE SINOLOGIA
Falar em intercâmbio luso-chinês será falar, legitimamente e em primeiro lugar, na privilegiada relação entre a China e Portugal, forjada no longo convívio de séculos e ratificada nos tratados bilaterais. Mas hoje e cada vez mais, considerar a Língua é considerar o seu espaço, no caso o “ continente” da lusofonia. Força de razões históricas e afectivas, Macau tem uma específica motivação para o cultivo das relações com Portugal mas, como agente intermediário da RPC, o seu mapa de acção serão todas as geografias e comunidades onde as pessoas se conversem em Português.
A lusofonia é um dos quatro ou cinco espaços linguístico-culturais em expansão e ascensão no mundo (de parelhas com a projecção político-económica), a RPC tem uma parceria estratégica com Portugal e tem na geopolítica global uma relação de complementaridade estratégica com o Brasil. Aspirando a transformar-se na maior potência mundial, a China sabe que as relações internacionais de protagonismo têm que ir escorar-se na cultura, porque o comércio é uma guerra latente. A política é o universo dos acidentes, a cultura o universo das essências.
A China – a sua história e traves-mestras da sua cultura e civilização – é grandemente desconhecida no mundo e muito especificamente nos espaços de língua portuguesa e também espanhola, o que, entre outras desvantagens, conduz à incompreensão de muitas das linguagens e atitudes usadas pelos dirigentes da RPC, sobretudo em situações sensíveis, confrontadas com mundividências ocidentais. Não há, ainda hoje, à semelhança do que têm as línguas inglesa e francesa, uma sinologia de língua portuguesa. A Espanha despertou há quinze anos para esta lacuna, com o governo de Madrid a orçamentar verbas nunca vistas a duas universidades para o rápido desenvolvimento dos estudos sobre a China. Hoje assistimos à invasão crescente das universidades norte-americanas por jovens estudantes chineses, à queda das línguas europeias nos currículos em favor do mandarim.
Portugal teve a primeira sinologia do mundo, foi através de alguns portugueses que a Europa primeiro conheceu o grande e fascinante Império do Meio (Gaspar da Cruz, Frei José de Jesus Maria, Álvaro Semedo), Macau foi base importante e decisiva de toda o operação das trocas culturais Europa-China em Pequim. As emergências de testemunhos sinológicos em Português, ao longo dos séculos, por desgarradas e dispersivas, fruto de assomos individuais sem continuidade, não justificaram o poder falar-se de uma sinologia portuguesa, em contraste com outros povos europeus.Por intimação da grande história, os portugueses viajaram e experimentaram mais e escreveram menos, os outros viveram menos e escreveram mais.
Macau tem agora a oportunidade histórica de promover a recuperação do tempo perdido, porque reúne as condições históricas para se erigir como um centro de sinologia para a lusofonia. Um projecto destes teria aliás eficácia redobrada, com facilitada extensão para o universo da latinidade, dada a semelhança linguística e o aproveitamento dos trabalhos de base (estudos, interpretação, tradução, enquadramentos, etc.) e a realização de encontros e seminários de formação. Macau, de novo, reencontrar-se-ia com o seu destino de protagonista da globalização, reeditando em novos moldes o seu papel do Século XVI, quando também foi base das comunicações da China e do extremo oriente para a América do Sul.
O jogo será uma diferença mas nunca um factor de identidade. É um expediente. Mas a componente lusófona, assim considerada e fundamentada, será indiscutivelmente uma das faces da personalidade de Macau e da imagem que projectará para o mundo
CULTURA PARA A IDENTIDADE
Vimos, há anos, a tentativa de vulgarização da medicina tradicional chinesa pelo mundo. As coisas andaram, muito à cúria de iniciativas individuais, com muita superficialidade e demagogia, também, pelo meio. A China continua muito distante do mundo, o que permite os erros e equívocos e convida às adulterações. Assistimos recentemente, na imprensa mais divulgativa, à promoção do feng shui, sem cabal enquadramento explicativo das suas raízes e fundamentos, sem se alertar que é prática geomântica em abandono na China há muito (com rara excepção de Macau).
Mas a China forneceu ao Brasil um contributo cultural decisivo para forjar a sua identidade imediatamente a seguir à proclamação da sua independência, instilando-se na sociedade, hábitos e práticas culturais que deram à nova nação uma componente oriental. É enorme e surpreendente a lista daqueles contributos. Atendendo às fortes relações que a China vem tendo com jovens nações, sobretudo em África, também em génese histórica de própria identidade, algumas já com forte presença migratória, como é o caso de Angola, é pertinente considerar-se a bondade do que atrás dissemos sobre a oportunidade do desenvolvimento de uma sinologia de língua portuguesa.
Macau tem condições e potencialidades únicas para ser operadora de um grande movimento cultural com repercussões vastas no mundo, como centro de sinologia e de estudos sinológicos para o universo de língua portuguesa, instituindo aqui esses estudos sistematicamente, instituindo um curso superior de estudos lusófonos, apoiando projectos estratégicos editoriais orientados para aqueles objectivos, incentivando e apoiando outras associações da sociedade civil vocacionadas para a organização de serviços e iniciativas linguístico-culturais etc.. E Macau teria, com poucos custos, um gesto de grande magnetização do seu protagonismo neste campo, se centralizasse num só edifício na cidade vários serviços, instituições e representações vocacionados para a promoção dos intercâmbios com o universo lusófono, nos campos diplomático, comercial e cultural. Não há ainda em Macau representações consulares de todos os países lusófonos. Não temos dúvidas de que este gesto seria catalizador de novas participações e entusiasmos, definitiva achega para a transformação de Macau em centro eficaz de intercâmbios entre os mundos chinês e lusófono. O jogo será uma diferença mas nunca um factor de identidade. É um expediente. Mas a componente lusófona, assim considerada e fundamentada, será indiscutivelmente uma das faces da personalidade de Macau e da imagem que projectará para o mundo, tanto mais futura quanto radica na sua perene vocação.
[ilustração de Carlos Marreiros]

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