in diálogos lusófonos
No link http://www.casadasafricas.org.br/img/upload/lipod.pdf publica-se DIÁLOGO Série Convergência o estudo "LITERATURA E PODER NA ÁFRICA LUSÓFONA" Começa na introdução por abordar o fato de a literatura africana (i. e., literatura africana em línguas europeias) não poder ser considerada desligada do fenómeno do colonialismo ou melhor dizendo da história de África e presença de povos europeus. Partilho a introdução do estudo "LITERATURA E PODER NA ÁFRICA LUSÓFONA" , que proponho como ponte de partida para uma reflexão.Segue a transcrição: INTRODUÇÃO: COLONIALISMO E CRIAÇÃO LITERÁRIA EM ÁFRICA Então quando eu fui para a escola, para a escola colonial, esta harmonia quebrou-se. O idioma da minha educação deixou de ser o idioma da minha cultura. NGUGI WA THIONG’O Estas palavras, devidas a um dos maiores escritores africanos, definem o drama por que passaram muitos dos intelectuais africanos dos nossos dias. É provável que Ngugi exagere. O texto em epígrafe pertence a um livro que Ngugi publicou em 1986, Decolonising the Mind – The Politics of Language in African Literature, onde ele explica as razões por que deixou de escrever em inglês, retomando à sua língua materna, o gikuyu. Há uma grande dose de paixão a atravessar este livro. Terá a ver com todos os problemas políticos por que o autor passou na sua terra natal, no Quénia, levando-o à prisão e, por fim, ao exílio. Mesmo admitindo o exagero que poderá estar implícito na frase em epígrafe, algo nos surge como incontestável: é impossível conceber a formação do que geralmente designamos de literatura africana (i. e., literatura africana em línguas europeias) desligada do fenómeno do colonialismo. A sobrevivência deste dependeu da formação de quadros que serviram de intermediários entre os colonizadores, em situação de minoria, e as populações africanas, integradas em sociedades tradicionais, periféricas, em situação de maioria. A formação de quadros implicava ensino, e ensino formal. Isto é: administravase a uns tantos africanos, geralmente elementos dos estratos sociais superiores das sociedades tradicionais, um ensino que, sendo – em muitos casos – pretensamente a cópia do modelo metropolitano, acabava sempre por perder em qualidade. Ou porque faltavam professores devidamente qualifi cados ou porque havia, à partida, uma preocupação explícita das autoridades coloniais em torná-lo profi ssionalizante, a degeneração tornava-se inevitável. Alguns, muito poucos, dos absolventes do grau secundário lograram deslocarse à metrópole e frequentar um curso universitário em circunstâncias iguais às dos seus colegas europeus. Estes dois grupos de africanos letrados, motivados pela ascensão nas sociedades colonial e metropolitana, esforçaram-se, num primeiro momento, por identifi car-se com o invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente, constituindo então o que geralmente se designa de élites coloniais. Contudo, olhados com desconfi ança pelos africanos das sociedades tradicionais e sem serem aceites na sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana, apercebem-se, num segundo momento, da inautenticidade cultural e humana em que tinham caído. Esta descoberta é o início de um processo de consciencialização que passa pela reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de expressão que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem literariamente nele. Dando azo a essa faculdade, eles não só dão mostras de que intelectualmente eram capazes de orientar o seu próprio destino, o que até aí havia sido posto em dúvida, como também poderiam porventura com a sua retórica sensibilizar franjas intelectuais da metrópole para a sua causa. Esta explicação sucinta da génese das literaturas africanas em línguas europeias aplica-se em primeira mão ao nascimento das literaturas francófonas. Os intelectuais que estiveram por detrás delas viram-se a braços com uma política assimilacionista que os fazia franceses de segunda classe. E são precisamente aqueles que viviam em França que encetaram os primeiros passos para a sua afi rmação como homens negros e, como tal, pensantes. Eram eles que se viam confrontados a par e passo com a sua situação biológica de homens negros numa sociedade branca, com a fragilidade ou falsidade de um discurso ofi cial no dia-a-dia. Fundam assim em Paris, em redor da revista Légitime Défense e da que lhe sucede, L’Etudian Noir (cf. M’Boukou, 1984), o movimento estético-literário que veio a ser conhecido por Negritude. O romance do escritor senegalês Cheikh H. Kane, L’Aventure Ambiguë, cuja 1.ª edição data de 1961, talvez seja de todos os textos representativos desta fase da literatura francófona aquele que melhor exemplifi ca o dilema dos intelectuais africanos que, no prosseguimento dos seus estudos, se vêem obrigados a absorver muitos dos valores ocidentais. Samba Diallo, a personagem principal do romance, é um jovem senegalês, de origem fula (peul), que se desloca a Paris para aí dar continuidade aos seus estudos. O confronto com a cultura ocidental, com a cultura europeia, despoleta nele uma profunda crise de consciência que não será de todo alheia à sua prematura morte, já na sua terra natal. Samba Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito da Negritude, a urgência do «retorno às origens» como forma de se tornarem coerentes com a sua própria origem biológica e cultural. Além disso, o carácter autobiográfi co do romance é por de mais evidente. Como Samba Diallo, também Cheikh Hamidou Kane nasceu no seio de uma família tradicional no interior do Senegal, foi iniciado no estudo do Corão durante a sua infância e mais tarde concluiu em Paris (Sorbonne) o curso de Direito e Filosofi a. Depois disso, tal como Samba Diallo, regressa ao seu país natal. A necessidade de afi rmar a sua Negritude não se faz sentir com tanta acuidade entre os intelectuais anglófonos. A Inglaterra privilegiara, na verdade, uma política de integração indirecta, o correlato da administração indirecta1, das populações africanas na economia mundial. Serviu-se geralmente para tal fi m do seu potencial económico, fazendo chegar até aos pontos mais recônditos a lei do capitalismo. Tal não significa, todavia, que tenha descurado os meios que haviam sido apanágio dos colonialismos francês e português, nomeadamente a evangelização cristã. Os efeitos desta aparecem registados num dos primeiros e mais signifi cativos textos da literatura anglófona. Trata-se do romance Things Fall Apart, de Chinua Achebe, um dos mais conhecidos e conceituados escritores de língua inglesa dos nossos dias. Achebe foi um dos pioneiros da literatura anglófona. O seu romance foi editado pela primeira vez em 1958. Ele tem por tema o desabar das estruturas e dos valores tradicionais entre os Ibos, povo que habita o sudeste da Nigéria e do qual o autor é originário. O ruir do sistema de valores tradicionais dá-se propriamente com a adesão «voluntária» de um grande estrato da população ao cristianismo, enquanto o herói, Okonkwo, assiste impotente, numa atitude de anomia, a esse ruir. O assassínio de um dos representantes da nova ordem, seguido do suicídio, surgiu a Okonkwo como a única saída possível do seu estado de profunda desadaptação. Quer Samba Diallo, quer Okonkwo, encontram, afi nal, na morte uma forma de resistirem à alienação, à perda da sua dignidade como homens africanos. Cheikh H. Kane e Chinua Achebe, entre outros, comprovam-nos, assim, que a perda de identidade cultural tanto se faz sentir entre aqueles que se viram envolvidos pelo colonialismo francês como, afi nal, também entre os que foram colonizados pela Grã-Bretanha. Tal constatação não nega naturalmente a óbvia diferença de gradação dos estados alienatórios acarretados pela perda. Entre as duas élites é também comum o facto de a procura ou questionamento da perda de identidade cultural ter sido imediatamente seguida pela procura de uma identidade política, pelo incremento do nacionalismo. Este incremento veio a culminar com a independência política da grande maioria dos países africanos nos anos 60. As respectivas literaturas refl ectem este desenvolvimento. Os seus textos deixam de ser veículo de preocupações de índole puramente cultural para passarem a transmitir as preocupações políticas dos seus autores e porventura potenciais leitores. A partir desta viragem não mais o político deixará de ser o tema dominante da literatura africana. Após as independências essa tendência, contrariamente ao que se deveria esperar, acentua-se. Os regimes instituídos na senda do nacionalismo, os processos de modernização então despoletados, não corresponderam às expectativas criadas no período de pré-independência. E é no seio das élites que haviam pugnado pela independência dos seus países que nasce a frustração. Uns tantos, desiludidos com o uso que os seus ex-correligionários fazem do poder, afastam-se dele e criticam-nos. A literatura continua a ser a via privilegiada para a expressão desse descontentamento, embora muitos dos autores em causa acabem por não se afastar tanto do poder como inicialmente pretendiam ou como nós possamos ser induzidos a acreditar. De qualquer forma, é nessa crítica e simultaneamente nesse afastamento que as literaturas africanas encontram a sua originalidade. O olhar crítico dos seus autores tanto visa as instâncias mais elevadas do poder, como também o exercício burocrático, a corrupção dos executantes ou ainda a corrupção da nova burguesia, incentivada e tolerada pelos governantes. Mesmo que a temática do poder não esgote naturalmente as literaturas francófona e anglófona do pós-independência, ela não deixa de ser dominante. Este facto, aliado a um aspecto messiânico que, por vezes, os seus textos tomam e ainda à característica de a fi cção ser geralmente construída sobre um fundo histórico, verdadeiro (coexistindo como que duas histórias paralelas, sendo uma fi cção e a outra realidade), levou a que os críticos literários e africanólogos tivessem visto aí um particularismo estilístico que passaram a designar de realismo africano. É assim que para Mohamadou Kane, um conhecido especialista destas matérias, «o romance [africano] funciona como o espelho de uma sociedade e o investimento de uma missão terapêutica dupla. Por um lado, ele fi xa-se à pintura objectiva das realidades africanas, das tensões, confl itos e postulações, forjando uma nova imagem de África e do Negro; por outro lado, ele empenha-se em tirar este último da sua apatia, de uma certa resignação, para o inserir numa corrente de modernização» (Kane, 1983: 61). Esta é, em síntese, a génese, a evolução e a situação actual da produção literária em África. O modelo que emergiu desta breve explicação servir-nos-á de pressuposto para o estudo pormenorizado das literaturas lusófonas. ___________________________________________________ 1 A chamada indirect rule. Esta não se fez sentir com a mesma intensidade em todas as colónias britânicas, nem tampouco foi uniforme em todo o período colonial. Seria errado, anti-histórico, se assim a entendêssemos. Ela foi, por exemplo, mais intensa no Quénia do que na Nigéria 2 Casos há em que os textos críticos são da autoria de ex-ministros ou mesmo de ministros,como é o caso do escritor congolês Henry Lopes. Ele tem ocupado variadas pastas ministeriais desde 1970, tendo publicado no decorrer do mesmo período Tribaliques (1972), La Nouvelle Romance (Yaoundé, 1976), o seu primeiro romance, e Sans Tam-Tam (Yaoundé, 1977/81), o seu segundo romance. Este último romance é uma crítica cerrada àqueles que, em se apanhando no poder, se afastam da causa comum, da causa da revolução. Idêntica postura encontraremos na literatura angolana do pósindependência. 3 Cf. Cameron Duodu, The Gab Boys, Londres, 1967; V. J. Mudimbe, Le Bel Immonde, Paris,1976/80; Henry Lopes, Sans Tam-Tam, Yaoundé, 1977/81; Chinua Achebe, Man of the People, Londres, 1966/88. 4 Sembène Ousmane, Le Mandat, Paris, 1963/84. 5 Sembène Ousmane, Xala, Paris, 1973/79; Ifeoma Okoye, Men without Ears. Ikeja, 1984 |
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