segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

colonialismo e Africa

in diálogos lusófonos



DIÁLOGO  Série Convergência   o estudo "LITERATURA E PODER
NA ÁFRICA LUSÓFONA"
 
Começa  na introdução por abordar o fato de a literatura africana (i. e., literatura africana em línguas europeias) não poder ser considerada desligada do fenómeno do colonialismo ou melhor dizendo da história de África e presença de povos europeus.
 
Partilho a introdução do estudo "LITERATURA E PODER NA ÁFRICA LUSÓFONA" , que proponho como ponte de partida para uma reflexão.Segue a transcrição:
 
INTRODUÇÃO: COLONIALISMO E CRIAÇÃO LITERÁRIA EM ÁFRICA

Então quando eu fui para a escola, para a escola colonial, esta harmonia
quebrou-se. O idioma da minha educação deixou de ser o idioma da minha cultura.
NGUGI WA THIONG’O
Estas palavras, devidas a um dos maiores escritores africanos, definem o drama
por que passaram muitos dos intelectuais africanos dos nossos dias. É provável que
Ngugi exagere. O texto em epígrafe pertence a um livro que Ngugi publicou em
1986, Decolonising the Mind – The Politics of Language in African Literature, onde
ele explica as razões por que deixou de escrever em inglês, retomando à sua língua
materna, o gikuyu. Há uma grande dose de paixão a atravessar este livro. Terá a
ver com todos os problemas políticos por que o autor passou na sua terra natal, no
Quénia, levando-o à prisão e, por fim, ao exílio.
Mesmo admitindo o exagero que poderá estar implícito na frase em epígrafe,
algo nos surge como incontestável: é impossível conceber a formação do que
geralmente designamos de literatura africana (i. e., literatura africana em línguas
europeias) desligada do fenómeno do colonialismo. A sobrevivência deste dependeu
da formação de quadros que serviram de intermediários entre os colonizadores, em
situação de minoria, e as populações africanas, integradas em sociedades tradicionais,
periféricas, em situação de maioria.
A formação de quadros implicava ensino, e ensino formal. Isto é: administravase
a uns tantos africanos, geralmente elementos dos estratos sociais superiores das
sociedades tradicionais, um ensino que, sendo – em muitos casos – pretensamente
a cópia do modelo metropolitano, acabava sempre por perder em qualidade. Ou
porque faltavam professores devidamente qualifi cados ou porque havia, à partida,
uma preocupação explícita das autoridades coloniais em torná-lo profi ssionalizante,
a degeneração tornava-se inevitável.
Alguns, muito poucos, dos absolventes do grau secundário lograram deslocarse
à metrópole e frequentar um curso universitário em circunstâncias iguais às dos
seus colegas europeus.
Estes dois grupos de africanos letrados, motivados pela ascensão nas
sociedades colonial e metropolitana, esforçaram-se, num primeiro momento, por
identifi car-se com o invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente,
constituindo então o que geralmente se designa de élites coloniais. Contudo, olhados
com desconfi ança pelos africanos das sociedades tradicionais e sem serem aceites na
sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana,
apercebem-se, num segundo momento, da inautenticidade cultural e humana em que
tinham caído. Esta descoberta é o início de um processo de consciencialização que
passa pela reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de
expressão que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem
literariamente nele.
Dando azo a essa faculdade, eles não só dão mostras de que intelectualmente
eram capazes de orientar o seu próprio destino, o que até aí havia sido posto em
dúvida, como também poderiam porventura com a sua retórica sensibilizar franjas
intelectuais da metrópole para a sua causa.
Esta explicação sucinta da génese das literaturas africanas em línguas europeias
aplica-se em primeira mão ao nascimento das literaturas francófonas. Os intelectuais
que estiveram por detrás delas viram-se a braços com uma política assimilacionista
que os fazia franceses de segunda classe. E são precisamente aqueles que viviam em
França que encetaram os primeiros passos para a sua afi rmação como homens negros
e, como tal, pensantes. Eram eles que se viam confrontados a par e passo com a sua
situação biológica de homens negros numa sociedade branca, com a fragilidade ou
falsidade de um discurso ofi cial no dia-a-dia. Fundam assim em Paris, em redor da
revista Légitime Défense e da que lhe sucede, L’Etudian Noir (cf. M’Boukou, 1984),
o movimento estético-literário que veio a ser conhecido por Negritude.
O romance do escritor senegalês Cheikh H. Kane, L’Aventure Ambiguë, cuja
1.ª edição data de 1961, talvez seja de todos os textos representativos desta fase
da literatura francófona aquele que melhor exemplifi ca o dilema dos intelectuais
africanos que, no prosseguimento dos seus estudos, se vêem obrigados a absorver
muitos dos valores ocidentais. Samba Diallo, a personagem principal do romance,
é um jovem senegalês, de origem fula (peul), que se desloca a Paris para aí dar
continuidade aos seus estudos. O confronto com a cultura ocidental, com a cultura
europeia, despoleta nele uma profunda crise de consciência que não será de todo
alheia à sua prematura morte, já na sua terra natal. Samba Diallo encarna, na verdade,
o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito da Negritude, a urgência do
«retorno às origens» como forma de se tornarem coerentes com a sua própria origem
biológica e cultural. Além disso, o carácter autobiográfi co do romance é por de mais
evidente. Como Samba Diallo, também Cheikh Hamidou Kane nasceu no seio de
uma família tradicional no interior do Senegal, foi iniciado no estudo do Corão
durante a sua infância e mais tarde concluiu em Paris (Sorbonne) o curso de Direito
e Filosofi a. Depois disso, tal como Samba Diallo, regressa ao seu país natal.
A necessidade de afi rmar a sua Negritude não se faz sentir com tanta acuidade
entre os intelectuais anglófonos. A Inglaterra privilegiara, na verdade, uma política
de integração indirecta, o correlato da administração indirecta1, das populações
africanas na economia mundial. Serviu-se geralmente para tal fi m do seu potencial
económico, fazendo chegar até aos pontos mais recônditos a lei do capitalismo. Tal
não significa, todavia, que tenha descurado os meios que haviam sido apanágio
dos colonialismos francês e português, nomeadamente a evangelização cristã. Os
efeitos desta aparecem registados num dos primeiros e mais signifi cativos textos da
literatura anglófona. Trata-se do romance Things Fall Apart, de Chinua Achebe, um
dos mais conhecidos e conceituados escritores de língua inglesa dos nossos dias.
Achebe foi um dos pioneiros da literatura anglófona. O seu romance foi
editado pela primeira vez em 1958. Ele tem por tema o desabar das estruturas e dos
valores tradicionais entre os Ibos, povo que habita o sudeste da Nigéria e do qual
o autor é originário. O ruir do sistema de valores tradicionais dá-se propriamente
com a adesão «voluntária» de um grande estrato da população ao cristianismo,
enquanto o herói, Okonkwo, assiste impotente, numa atitude de anomia, a esse ruir.
O assassínio de um dos representantes da nova ordem, seguido do suicídio, surgiu a
Okonkwo como a única saída possível do seu estado de profunda desadaptação. Quer
Samba Diallo, quer Okonkwo, encontram, afi nal, na morte uma forma de resistirem
à alienação, à perda da sua dignidade como homens africanos.
Cheikh H. Kane e Chinua Achebe, entre outros, comprovam-nos, assim, que a
perda de identidade cultural tanto se faz sentir entre aqueles que se viram envolvidos
pelo colonialismo francês como, afi nal, também entre os que foram colonizados pela
Grã-Bretanha. Tal constatação não nega naturalmente a óbvia diferença de gradação
dos estados alienatórios acarretados pela perda.
Entre as duas élites é também comum o facto de a procura ou questionamento
da perda de identidade cultural ter sido imediatamente seguida pela procura de
uma identidade política, pelo incremento do nacionalismo. Este incremento veio a
culminar com a independência política da grande maioria dos países africanos nos
anos 60.
As respectivas literaturas refl ectem este desenvolvimento. Os seus textos
deixam de ser veículo de preocupações de índole puramente cultural para passarem
a transmitir as preocupações políticas dos seus autores e porventura potenciais
leitores. A partir desta viragem não mais o político deixará de ser o tema dominante
da literatura africana.
Após as independências essa tendência, contrariamente ao que se deveria
esperar, acentua-se. Os regimes instituídos na senda do nacionalismo, os processos
de modernização então despoletados, não corresponderam às expectativas criadas
no período de pré-independência. E é no seio das élites que haviam pugnado pela
independência dos seus países que nasce a frustração. Uns tantos, desiludidos com o
uso que os seus ex-correligionários fazem do poder, afastam-se dele e criticam-nos. A
literatura continua a ser a via privilegiada para a expressão desse descontentamento,
embora muitos dos autores em causa acabem por não se afastar tanto do poder como
inicialmente pretendiam ou como nós possamos ser induzidos a acreditar.
De qualquer forma, é nessa crítica e simultaneamente nesse afastamento
que as literaturas africanas encontram a sua originalidade. O olhar crítico dos seus
autores tanto visa as instâncias mais elevadas do poder, como também o exercício
burocrático, a corrupção dos executantes ou ainda a corrupção da nova burguesia,
incentivada e tolerada pelos governantes.
Mesmo que a temática do poder não esgote naturalmente as literaturas
francófona e anglófona do pós-independência, ela não deixa de ser dominante. Este
facto, aliado a um aspecto messiânico que, por vezes, os seus textos tomam e ainda
à característica de a fi cção ser geralmente construída sobre um fundo histórico,
verdadeiro (coexistindo como que duas histórias paralelas, sendo uma fi cção e a
outra realidade), levou a que os críticos literários e africanólogos tivessem visto aí
um particularismo estilístico que passaram a designar de realismo africano. É assim
que para Mohamadou Kane, um conhecido especialista destas matérias, «o romance
[africano] funciona como o espelho de uma sociedade e o investimento de uma
missão terapêutica dupla. Por um lado, ele fi xa-se à pintura objectiva das realidades
africanas, das tensões, confl itos e postulações, forjando uma nova imagem de África
e do Negro; por outro lado, ele empenha-se em tirar este último da sua apatia, de uma
certa resignação, para o inserir numa corrente de modernização» (Kane, 1983: 61).
Esta é, em síntese, a génese, a evolução e a situação actual da produção
literária em África. O modelo que emergiu desta breve explicação servir-nos-á de
pressuposto para o estudo pormenorizado das literaturas lusófonas.
 
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1 A chamada indirect rule. Esta não se fez sentir com a mesma intensidade em todas as colónias britânicas, nem tampouco foi uniforme em todo o período colonial. Seria errado, anti-histórico, se assim a entendêssemos. Ela foi, por exemplo, mais intensa no Quénia do que na Nigéria
2 Casos há em que os textos críticos são da autoria de ex-ministros ou mesmo de ministros,como é o caso do escritor congolês Henry Lopes. Ele tem ocupado variadas pastas ministeriais desde 1970, tendo publicado no decorrer do mesmo período Tribaliques (1972), La Nouvelle Romance (Yaoundé, 1976), o seu primeiro romance, e Sans Tam-Tam (Yaoundé, 1977/81), o seu segundo
romance. Este último romance é uma crítica cerrada àqueles que, em se apanhando no poder, se afastam da causa comum, da causa da revolução. Idêntica postura encontraremos na literatura angolana do pósindependência.
3 Cf. Cameron Duodu, The Gab Boys, Londres, 1967; V. J. Mudimbe, Le Bel Immonde, Paris,1976/80; Henry Lopes, Sans Tam-Tam, Yaoundé, 1977/81; Chinua Achebe, Man of the People, Londres, 1966/88.
4 Sembène Ousmane, Le Mandat, Paris, 1963/84.
5 Sembène Ousmane, Xala, Paris, 1973/79; Ifeoma Okoye, Men without Ears. Ikeja, 1984

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