MEMÓRIAS POVOS & RELIGIÕESblog OS JUDEUS EM TRÁS OS MONTES
O
RABI MÓR TEM, DESDE D.DINIS, SETE DELEGADOS SEUS, CHAMADOS OUVIDORES,
COLOCADOS NA CAPITAL DE CADA COMARCA, OS QUAIS EXERCEM A JURISDIÇÃO
SOBRE OS JUDEUS EM TODO O DISTRITO. LOCALIZA-SE EM TORRE DE MONCORVO, O
DE TRÁS OS MONTES... IN "OS JUDEUS EM PORTUGAL NO SÉCULO XIV ", DE
MARIAJ.P.FERRO. ESTE É O NOSSO PONTO DE PARTIDA: DIVULGAR AS OBRAS SOBRE
OS JUDEUS EM TRÁS OS MONTES.
SEXTA-FEIRA, 10 DE SETEMBRO DE 2010VINHAIS E O TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO
NOTAS SOBRE A COMUNIDADE MARRANA
1 . Inquisição e Judaísmo
Numeramento de 1530. Assim
ficou conhecido o primeiro recenseamento geral da população feito em
Portugal. Veja-se o que, acerca da vila de Vinhais, nele foi
registado:
-
A vila de Vinhais é cercada e a cerca em partes derribada; D. Afonso de
Ataíde leva direitos e rendas dela e chama-se senhor dela; e vivem na
dita vila e seus arrabaldes 84 moradores.
O Numeramento não
diz quantos desses
moradores seriam de ascendência judaica. Mas, certamente, era uma boa
percentagem, talvez a maioria, a avaliar por algumas informações que
chegaram até nós. Vejam uma delas, retirada dos livros das denúncias da
Inquisição:
-
No dia 30 (de Maio de 1543) compareceu Rodrigo Bernardes, morador em
Tuizelo, termo de Vinhais e disse (…) que em Vinhais há, dos muros para
dentro, 50 moradores e desses só 3 ou 4 são cristãos-velhos…
Esta informação aparece corroborada, logo de seguida, por duas outras pessoas, moradoras na mesma vila.
Por
mais dúvidas que tenhamos sobre os números apresentados, uma conclusão
se impõe: a comunidade marrana de Vinhais era muito forte, possivelmente
mais
numerosa e mais instruída e rica do que a comunidade dos
cristãos-velhos.
E
naturalmente que uma tal situação despertava a animosidade destes,
especialmente dos homens do clero e da nobreza da terra, aqueles que
costumavam assegurar o governo da câmara e controlar a execução da
justiça e da política fiscal.
E
entre as duas comunidades entrou de desenvolver-se uma intensa luta
política cujo palco se estendeu até ao governo do reino e ao tribunal da
Inquisição.
A liderar a comunidade cristã-velha encontrava-se o ouvidor (representante do senhor da terra) – João de Morais, o velho,homem de mui nobre geração, fidalgo de cota de armas, com filhos e filhas casados nas mais
nobres famílias de Bragança, Vimioso, Miranda do Douro… como eram os Madureira, Sapico, Ferreira, Sousa…
Um
dos episódios dessa luta consistiu em afastar os cristãos-novos dos
empregos públicos e dos cargos de chefia e governança da terra. A
começar pela câmara municipal.
A
comunidade marrana, porém, liderada pelo almotacé (oficial da câmara
que fiscalizava pesos e medidas, taxava os preços dos géneros e tratava
da conservação de pontes, calçadas e caminhos) Nuno Rodrigues fez uma
exposição dos factos perante a Corte e conseguiu do rei D. Manuel
sentença contra a câmara municipal.
Claro
que esta vitória dos marranos não significou o fim da luta e o
apaziguar das tensões. Antes pelo contrário, terá contribuído para que
ela ganhasse nova intensidade e mudasse de palco. E que melhor maneira
podia haver de afastar dos cargos públicos e de governo da terra os
marranos do que denunciá-los por judeus? O santo tribunal se
encarregaria de os prender, roubando-lhe cargos e empregos e comendo-lhe
teres e haveres.
E
assim terá o Santo Ofício efectuado, em Maio de 1541, em Vinhais, a sua
primeira incursão, fazendo prender e conduzir a Lisboa o almotacé Nuno
Rodrigues que, em Março do ano seguinte, foi libertado.
As
denúncias, porém, continuaram. E mais incisivas. Como aquela que vimos
ao início, feita por Rodrigo Bernardes que, depois de dizer que os 50
moradores da vila só 3 eram cristãos-velhos, acrescentou:
-
Os restantes guardam os sábados e, como um deles fosse preso, e se
espalhasse a notícia de que a Inquisição os queria prender a todos,
esteve a vila despovoada durante 8 dias porque fugiram. É voz pública
que a sinagoga é em casa dum Francisco Lopes.
Seguiu-se
nova leva de prisioneiros, desta vez para as cadeias
da Inquisição de Évora. Entre esses prisioneiros lá foi, de novo, o
mesmo almotacé Nuno Rodrigues. Desta vez a estadia nas masmorras
prolongou-se por 4 anos e ele e os outros foram libertados por graça e
mercê de um perdão geral decretado pelo Papa que ordenou a libertação de
todos os prisioneiros da Inquisição portuguesa.
Há,
porém, um facto estranho no meio desta luta político – religiosa. É que
o primeiro homem que nos aparece a ser denunciado como herege na
Inquisição foi exactamente João de Morais, o escudeiro fidalgo
cristão-velho. Foi ele o primeiro a ser denunciado (em Março de 1541) e
mais repetidamente (em 1543 e 1546). E denunciado como autor de crimes
da maior gravidade e mais concretos como dizer que não havia céu nem
inferno nem vida para além da morte; que era tolice ir em romaria à
Senhora da Serra; que não havia excomunhões; que
comia carne às sextas-feiras mesmo de Quaresma…
Acresce
que a primeira denúncia foi feita por alguém de muito prestígio –
Martim Trigueiro, capelão da rainha e abade de Vinhais!
Estranhamente
e apesar de toda a gravidade dos factos e a acumulação de testemunhos,
não o prenderam. Ou melhor: foi preso, mas 30 anos depois, em 1573,
quando contava já uns 100 anos de idade!
Não
podemos explicar as razões que terão determinado o desenrolar deste
caso, pois não estudámos o processo de João de Morais, o Velho,
patriarca da poderosa família trasmontana dos Morais Sarmento.
Voltemos
atrás, ao ano de 1554, em que Nuno Rodrigues foi
levado pela 3ª vez para o tribunal da Inquisição, de novo para Lisboa,
de companhia com outros Vinhaenses, sendo todos libertados em Março do
ano seguinte, condenados em penas espirituais, cárcere e hábito.
Nas
duas décadas seguintes, aliviou-se a pressão inquisitorial sobre os
marranos de Vinhais, como de resto em todo o país. Mas, a partir de
1583, depois de uma visita do inquisidor Jerónimo de Sousa, abade de
Vila Flor, parece que todos os poderes do inferno se abateram sobre esta
terra do Alto Trás-os-Montes, destruindo famílias, comendo haveres,
liquidando empresas. Cerca de 164 homens e mulheres de Vinhais foram
presos, em levas sucessivas, por década e meia, para as cadeias da
Inquisição.
Alguns encontraram a morte nas bolorentas masmorras. Outros pereceram queimados nas
fogueiras acesas para glória de Deus e diversão do povo, em
festivos autos-de-fé. Muitos voltaram doidos, estropiados, cheios de
doenças e os corações desfeitos. E dos que voltaram, apesar de tudo, os
mais fortes, de corpo e espírito, conseguiram ganhar novas forças e
fugir para o estrangeiro, aí reconstruindo suas vidas. E assim se
arruinou a vila de Vinhais naquele findar do século XVI.
Tal
como a Fénix, porém, a nação marrana de Vinhais haveria de renascer das
cinzas das fogueiras da Inquisição. E de novo as forças do mal haveriam
de conjurar-se contra ela, em renovadas e mais ferozes perseguições, em
nome de um Deus a quem os inquisidores usurpavam o papel de juiz das
consciências.
Numa terra em que o Numeramento de 1530 assinalava 84
moradores e onde o autor da Corografia Portuguesa contava, em
1706, 150 vizinhos, a Inquisição portuguesa (em Espanha se contarão mais
alguns) instruiu uns 484 processos que se encontram na Torre do Tombo à
espera de ser estudados para que se possa reescrever a história da vila
e do povo de Vinhais e para que os Vinhaenses tomem verdadeira
consciência das suas raízes e reclamem finalmente a herança de seus
ancestrais e a transformem em uma rota de turismo cultural.
Este
será o caminho do progresso, verdadeiro e sustentado. E por monumento
primeiro dessa rota devem eleger a emblemática igreja de São Fagundo,
porque era no seu adro que os marranos preferiam enterrar os seus mortos
porque ali havia terra virgem, beijada pela sombra de um enorme sardão.
2. Inquisição e maçonaria.
Não
entrando em académicas análises, podemos afirmar que a Inquisição
portuguesa foi criada como um tribunal religioso para defender a pureza
da doutrina católica contra as heresias e comportamentos escandalosos.
Cedo se transformou, porém, em instrumento do poder político, detido pelas classes da nobreza e do clero, voltado
contra a classe mercantil e burguesa, essencialmente constituída por marranos.
Com
a ascensão do marquês de Pombal à chefia do governo do rei D. José, a
Inquisição virou polícia política muito motivada contra as ordens
religiosas, em especial os Jesuítas.
Caído
em desgraça o Marquês, a Inquisição foi colocada na dependência do
Intendente Geral da Polícia, Diogo Inácio Pina Manique e o alvo
privilegiado do mesmo tribunal passou a ser a Maçonaria, o clube dos
livres-pensadores.
Por
uma estranha casualidade, o último processo instruído pela Inquisição a
gente de Vinhais foi ao cónego D. André de Morais Sarmento, por ser
membro da seita dos pedreiros - livres.
Quando o prenderam e revistaram a casa, no dia 31 de Outubro de 1791, encontraram –lhe dentro de um pequeno baú encoirado um manuscrito com o título seguinte: Explicação da maçonaria aos recém recebidos, o qual será o mais antigo texto maçónico português – segundo afirma o historiador Oliveira Marques.
No auto de apreensão do manuscrito, incluído no processo, pode ainda ler-se:
-
E igualmente lhe foram achados no dito baú quatro embrulhos, em cada um
dos quais se achava um pedaço de peliça branca à maneira de pequeno
avental, com umas fitas azuis nas pontas, tendo todos os ditos quatro
aventais as insígnias e dísticos seguintes estampados nos mesmos, a
saber:
De um lado a figura do sol e do outro a lua e no meio um compasso e um triângulo e por baixo o dístico: lux mundi.
E
da outra parte nas costas dos mesmos aventais, a figura de uma caveira
com dois ossos que demonstra a morte e por baixo o dístico: memento
mortis…
Nas
comemorações do centenário da fundação da República, acto que muitos
atribuem à Maçonaria e à Carbonária, terminamos este texto com a
seguinte afirmação produzida pelo principal denunciante de André de
Morais e seus companheiros de Loja:
-
E disse o dito José Inácio que desconfiava que a revolução de França
principiara na Grande Loja de França da dita seita, porém que
cá não sucederá porque os portugueses não eram capazes para isso.
António Júlio Andrade
Fernanda Guimarães
FONTES:
IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 5321, de Nuno Rodrigues.
IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 8725, de João de Morais, o Velho.
IANTT, Inquisição de Lisboa, processo de D. André de Morais Sarmento.
http://marranosemtrasosmontes.blogspot.com.br/2010/09/vinhais-e-o-tribunal-da-inquisicao.html
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