Minha gente
A propósito do livro do Onésimo “Utopias em Dói Menor”, eu tinha-lhe
prometido dar o meu ponto de vista a respeito de uma ideia feita de que
a Europa protestante se desenvolveu mais do que a católica. Mas, como
talvez interesse a mais alguém, envio-o por este meio. O Onésimo, tal
como eu, não defende aquela visão viciada pela simples constatação de
que, nos países de maioria protestante, o progresso foi maior do que nos
de maioria católica, o que se deveria à repressão católica, sobretudo
por intermédio da Inquisição, contra as ideias novas que iam surgindo.
Ora esta repressão acontece no campo do pensamento religioso –
principalmente teológico e moral – raramente interferindo com o
pensamento científico. O caso de Galileu é uma questão excepcional, e
motivado principalmente pela inveja dos seus rivais ou invejosos colegas
cientistas. Sem eles, seus delatores, Galileu dificilmente teria
chegado ao tribunal da Inquisição.
Ora, sendo a repressão do Santo Ofício uma tentativa de vasculhar as
ideias teológicas e morais, e de condená-las quando lhe parecessem
merecedoras de tal, é muito difícil provar que isso tenha tido
implicações no avanço científico. Alguns dos nomes que o Onésimo cita
entre os cientistas de maior vulto em Portugal na época da expansão
marítima, estão por exemplo Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de
Castro, que fizeram as suas investigações em plena época da Inquisição,
se bem que os primeiros tenham sido perseguidos depois de mortos! E
foram descendentes seus que sofreram os rigores estúpidos da Inquisição.
A perseguição religiosa, sobretudo à conta de reis que não queriam ver
em perigo a unidade nacional (como os “santos” Reis Católicos” de
Espanha ou os “beatos” D. Manuel e D. João III), foi prejudicial nesse
caso. O Onésimo fala de havermos perdido Espinosa, e eu acrescento
agora, em Espanha, o caso de Miguel Servet. Este é mesmo um exemplo
perfeito de que, a havê-lo, não teria sido só catolicismo o responsável
por um hipotético menor desenvolvimento nos países onde era dominante. E
isto porque, tendo de fugir de Espanha, Servet desenvolveu no
estrangeiro o seu pensamento teológico e estudou a circulação do sangue
nos pulmões. E como acabou ele? Condenado à morte na Suíça por
insistência de Calvino! Porque, se a Igreja Católica, por intermédio da
Inquisição de raízes mais políticas (ou pelo menos tanto quanto) que
religiosas, condenava “hereges”, os protestantes não o fizeram menos nem
com menor crueza, sendo que normalmente até fingiam menos o julgamento
do que a Inquisição.
Além disso, a Igreja Católica não conseguia impor-se tanto quanto se
imagina em questões morais. Lembre-se que os católicos não eram grandes
cumpridores das orientações religiosas, tendo em reis, cardeais, bispos e
padres exemplos de deboche moral e de ilimitadas ambições materiais.
Aliás, a confissão foi sempre mal entendida pela maioria esmagadora dos
católicos, que viam naquele sacramento uma maneira de serem perdoados os
seus pecado quando quisessem, e, em último caso, na hora da morte,
desconhecedores de que assim caíam nos chamados pecados contra o
Espírito Santo, pelo que o sentido religioso do pecado por ambição
material era pouco tido em conta. Já os protestantes, mormente os
luteranos, que negavam o valor a confissão, viam no julgamento divino
uma apreciação da totalidade da vida humana, pelo que, para eles, o
pecado teria uma implicação que de certo modo se projectava mais na
eternidade do que segundo a noção (errada, repito) dos católicos.
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