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15 e 16 de Dezembro de 2012
Fernando Venâncio
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 1
Custou-me 40 €. Pesa quase um quilo e meio. Mas
não tenham dó de mim.
O novíssimo «VOCABULÁRIO ORTOGRÁFICO ATUALIZADO
DA LÍNGUA PORTUGUESA», produzido pela ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA, é uma
fonte de delícias.
Irei dando conta da minha observação do volume. A
sua elaboração e publicação - lemos na Nota de abertura - «é uma competência»
da ACL.
Calem-se, pois, a Porto Editora, mailo ILTEC, maila
Priberam, que outro poder mais alto se...
... veremos, então, o que aqui se levanta.
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 2
Primeiro, duas maravilhas.
O «Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua
Portuguesa» (VOALP para os íntimos) consagra ÓPTICA e ÓPTICO (termos oftalmológicos),
a distinguir de ÓTICO (termo otorrino). Alvíssaras!
Consagra, também, CONCEPÇÃO (e CONCEPCIONAL,
CONCEPTIVO, CONCEPTUAL, CONCEPTUALIZAR) a par de CONCEÇÃO (e CONCECIONAL).
Louvores!
Ora, raciocinemos. Se é verdade
(como julgo que é) soar o P nas formas «concepcional», «conceptivo»,
«conceptual» e «conceptualizar», infere-se que a ACL consagra, também, a
pronúncia CON-CEP-ÇÃO. Será porque é a pronúncia brasileira? Vamos supor que
não é isso, e só uma mostra (excessiva) de generosidade.
Mas logo surge um cartão vermelho. Quando se
esperaria a inclusão de ANTICONCEPCIONAL e ANTICONCEPTIVO, não: o VOALP só dá
ANTICONCECIONAL e ANTICONCETIVO.
Continuaremos.
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 3
Vimos a generosidade das formas CONCEÇÃO e
CONCEPÇÃO. Podiam aguardar-se mais bónus destes. Por exemplo, PERCEÇÃO e
PERCEPÇÃO, PERCECIONAR e PERCEPCIONAR. Desenganem-se. Só temos direito a
PERCEÇÃO e PERCECIONAR (quando eu digo, e muita gente diz, distintamente,
PERCEPCIONAR).
Podia esperar-se a generosidade de RECEÇÃO e
RECEPÇÃO, de RECECIONISTA e RECEPCIONISTA. Pois não. Só há formas sem P.
Mas 'pera lá! Junto a RECEÇÃO vem indicado
«RECEPÇÃO (B)». Mas porque não se fez o mesmo em PERCEÇÃO? E porque se
admitiram, sem uma nota brasileira, CONCEÇÃO e CONCEPÇÃO?
Ó Academia. Isto é para levar a sério?
Prosseguiremos. Levaremos esta cruz ao calvário.
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 4
O VOALP consagra PERSPECTIVA, PERSPECTIVAR,
PERSPECTIVO. Não tem formas sem C. Em contrapartida, só contém RESPETIVO.
Como interpretar isto? Que a pronúncia
portuguesa é RES-PÈ-TI-VO, mas PERS-PÈC-TI-VA?
O VOALP só consagra ASPETO e ASPETUAL. Mas donde
surgiu, de repente, ASPECTÁVEL? Vocês conheciam?
Damos com EXPECTANTE, EXPECTATIVA, EXPECTÁVEL.
Óptimo.
Damos, por outro
lado, com ESPETRO e ESPECTRO. Mas só vemos ESPECTRAL. Concordais, ó gentes?
Mais um cartão vermelho, este vermelhíssimo.
Encontramos «CORRETOR /é/», quer dizer, aquele que corrige, mas ignora-se
«CORRETOR», o senhor da Bolsa, com «e» fechado.
Ó Academia! Como te chamar?
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 5
Eu não queria dizer mal nenhum de ARTUR ANSELMO,
pessoa que muito estimo. Mas ele é o Presidente da Comissão de Lexicologia e
Lexicografia da ACL, portanto o responsável número 1 deste VOALP. Terei de
registar, aqui, algumas excentricidades.
Num dos prefácios do volume, que ele assina,
escreve RESPECTIVO, o seu VOALP só regista RESPETIVO. Escreve TÃO SOMENTE, mas
o Vocabulário
impõe (e bem) TÃO-SOMENTE. Escreve SELEÇÃO na pág. XVIII e SELECÇÃO na pág.
seguinte. Escreve ENCORPORAR, e o VOALP só conhece INCORPORAR (que ele também
usa). Escreve a forma adjectival ACEITAS, e o VOALP só reconhece ACEITES.
Também escreve CONCEPÇÕES, e RECTIFICADAS, e
EXCEPCIONAL[MENTE], e ADOPTADOS (tudo na pág. XIX), formas que o seu VOALP
indignamente baniu.
João Roque Dias: a tua
"CHOLDRA ORTOGRÁFICA" veio, de facto,
para ficar.
E com que cara, dizei-me, pode obrigar-se alunos e
professores a uma escrita... correta?
Haverá mais. Infelizmente.
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 6
Este VOCABULÁRIO distingue-se dos demais (o da
Porto Editora, produzido pelo académico Malaca Casteleiro, e o do ILTEC, que o
Governo de Portugal declarou "oficial") pela informação ortoépica,
isto é, relativa à pronúncia.
Assim, regista: ADOÇÃO /ó/, ADOTAR /ó/, CONCEÇÃO
/é/, CONCETIVO /é/. E deixa sem anotar CONCEPÇÃO e CONCEPTIVO. No que há certa
lógica. Ou um testimonium paupertatis, desculpem-me
o atrevimento.
Mas é curioso que registe DIRETA /é/ ou DIRETO /é/,
que, sendo de acento tónico, não deveria entrar nestas andança, e que são -
objectivamente - simples marcas de má-consciência. (Honra lhes seja!).
Outra coisa. Regista-se ESPETACULAR /é/ e
ESPETÁCULO /é. Mas em ESPETADOR não há nenhum /é/. Isto é gravíssimo. Não só
ignora a correntíssima forma ES-PEC-TA-DOR, como convida à pronúncia
«esp'tador».\
Ó Academia: eu não peço devolução dos 40 €. Só digo
que não gastaste um centavo com um CORRECTOR, porra!
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 6A
Transcrevo da pág. 447:
espetacular /pé/
espetáculo /pé/
espetaculoso /pé/
espetada
espetadela
espetado
espetador
espetanço
espetão
Como desejam eles que se leia ESPETADOR?
Mais (e repetindo-me): onde ficou o correntíssimo
ES-PEC-TA-DOR?
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 7
Comentando um destes «posts», escreveu Ernesto Rodrigues:
«Artur no lugar de Malaca e Anselmo no de
Casteleiro? Coitados. A ausência de Malaca é devida a quê: eleições? falta de
credibilidade? coisa grave? Gostava que me
explicassem.»
Disso nada sei, Ernesto. E duvido que algum dia
no-lo digam. Ignoro, mesmo, se temos o direito de sabê-lo.
O que constato é o silêncio absoluto sobre JOÃO
MALACA CASTELEIRO neste «Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua
Portuguesa».
No seu prefácio, Telmo Verdelho (o maior lexicólogo
que este país jamais teve) informa-nos de que, na confecção do VOALP, se fez
«uma revisão minuciosa» de outros Vocabulários, entre eles o «Vocabulário
Ortográfico da Língua portuguesa» da ABL, de 2009 (que está online), e o
«Vocabulário Ortográfico do Português» do ILTEC, mais recente (também online).
A grande ausência é, obviamente, o «Vocabulário
Ortográfico da Língua Portuguesa», da Porto Editora, elaborado por Malaca
Casteleiro, inculcado em 2009 como «a nova Bíblia da língua portuguesa».
Esse Vocabulário existiu? Poderia duvidar-se. Na
altura, procurei-o por livrarias em Lisboa, e nada. Pedi ao editor que mo
enviasse, e nada. Mas existe. Estive, um dia, com o volume na mão na livraria
da Porto Editora, no Porto. Não o comprei. Foi a minha pequenina vingança? Até
certo ponto. Mas já então o Vocabulário do ILTEC tinha sido oficializado para
Portugal. O da Porto pode, porém, consultar-se online no site da editora.
Torna-se evidente que o académico Malaca Casteleiro
mais a sua Academia andam de candeias às avessas. Porquê, exactamente? Qualquer
dia a coisa transpira.
Mas nada disto abona na credibilidade do
empreendimento ortográfico. O Brasil fez UM Vocabulário. Os nossos TRÊS andam
por aí. Um desaparecido em combate, ou em modo zombie. Um pago pelo Estado e
por ele tornado oficial. E agora outro, da entidade que, ela sozinha, o devera
ter feito.
Devera ter feito? Não, senhores. Nada disto tem o
menor sentido.
O aparecimento desta terceira abantesma seria o
pretexto mais feliz para, de uma vez por todas, o Estado Português se libertar
de um objectivo vexame.
A DESORIENTAÇÃO ACADÉMICA - 8 (e último)
Terá sentido continuar a mostrar as deficiências
do VOALP, o novel Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa? Tem.
E por uma razão, simples, mas ponderosa: a da IMPOSSIBILIDADE de algum dia
confeccionar esse «VOCABULÁRIO ORTOGRÁFICO COMUM DA LÍNGUA PORTUGUESA» que se
nos prometeu, e promete.
O problema foi criado pelo próprio Acordo
Ortográfico 1990, ao consagrar a PRONÚNCIA CULTA de
cada país de língua portuguesa como primeiro critério da grafia, destronando
para segundo lugar a ETIMOLOGIA.
Em si, esta inversão é um progresso. Mas qual é a
PRONÚNCIA CULTA PORTUGUESA? Este VOALP poderia tê-la definido, frontalmente,
mas ignora a questão (como todos os demais ignoraram). E, no entanto, opera
como se ela tivesse sido definida. Alguns exemplos.
O VOALP consagra, e bem, as formas APOCALÍPTICO,
DACTILOGRAFAR, EXPECTATIVA e EXPECTÁVEL, FACCIOSISMO, FACTÍCIO, GALÁCTICO,
INTERRUPTOR, LACTAÇÃO, JACTANCIOSO, PICTÓRICO, RETRÁCTIL, SECÇÃO, VASECTOMIA.
Tudo isto, não obstante desenhar-se algum uso emudecedor da primeira consoante
dos grupos. Talvez por isso assinale as formas INTERRUTOR e RETRÁTIL (esta com
a enigmática indicação de «adj. unif.». Será «unificado»? Mas de quê, se o
Brasil admite as duas formas?).
O VOALP admite DETECÇÃO, DETECTAR, DETECTIVE ao
lado de DETEÇÃO, DETETAR, DETETIVE. Admite PERFECCIONISMO, PERFECCIONISTA,
PERFECTÍVEL ao lado de PERFECIONISMO, PERFECIONISTA, PERFETÍVEL. Admite SECTOR,
SECTORIAL, ao lado de SETOR, SETORIAL. Já não se perdeu tudo.
Mas – e como já assinalei – o mesmo VOALP,
admitindo CONCEPCIONAL e CONCECIONAL, só admite ANTICONCECIONAL. Do mesmo modo,
admitindo PERFECTÍVEL e PERFETÍVEL, só admite IMPERFETÍVEL. E, ainda, admitindo
INDEFECTÍVEL e INDEFETÍVEL, só admite DEFETÍVEL.
Não deveria, porém, o VOALP admitir algumas
«facultatividades» mais? Que mais não fosse, para «segurar» a articulação de
grupos consonânticos?
Com efeito, ouvimos à nossa volta CARACTERÍSTICA,
mas o VOALP só admite CARATERÍSTICA. Ouvimos PEREMPTÓRIO, mas ele só admite
PERENTÓRIO. Ouvimos CEPTICISMO, mas ele só admite CETICISMO. Ouvimos
RECEPTADOR, RECEPTAÇÃO, mas ele só admite RECETADOR, RECETAÇÃO. Ouvimos
OPTIMIZAR, mas ele só admite OTIMIZAR. Ouvimos PERCEPTÍVEL e IMPERCEPTÍVEL, mas
ele só admite PERCETÍVEL e IMPERCETÍVEL.
*
Escrevi acima que a confecção de um VOCABULÁRIO
ORTOGRÁFICO «COMUM» DA LÍNGUA PORTUGUESA se me afigura, cada vez mais, uma
impossibilidade. É que confio, ainda, no discernimento humano. Senão, vejamos.
Este VOALP consagra bastantes facultatividades
portuguesas. Fazem-no também o vocabulário da PORTO EDITORA e o do ILTEC. Mas
estão, nisso, longe de coincidirem. Só que o vocabulário da ACADEMIA BRASILEIRA
DE LETRAS consagra incomensuravelmente mais, e outras, facultatividades. E o
que farão os angolanos, e os caboverdianos, e os moçambicanos, e os demais? O
que será para eles consagrável (mas não para os outros) e admissível (mas não
para os outros)?
Se o académico VOALP já é a desorientação que aqui
se tentou assinalar, que planetária barafunda não se prepara com um Vocabulário
«COMUM»? Imagino que, além de mim, já alguém, e esse com responsabilidades,
terá enxergado esse abismo de loucura ortográfica.
Mandem, já, para casa os tristes confeccionadores
dessa obra monstruosa. Chegam-nos, e sobram-nos, os TRÊS VOCABULÁRIOS deste
tresloucada pátria.
Comentário:
João Pedro da Costa: é claro que há a
possibilidade FÍSICA de confeccionar esse Vocabulário. Digo-te mais:
secretamente, DESEJO que o façam. Ele demonstrará, definitivamente, a que
situação caótica o AO90, desde sempre, estava condenado a conduzir.
Imagina uma fusão (sim, porque é de fusão que
se trata, em última análise) de um Vocabulário português com o Vocabulário da
Academia Brasileira. Sirvo-me da lista do ILTEC para te dar uma ideia. Importa
saber que o Brasil admite p.ex. COLECTA e COLETA, mas Portugal só COLETA. Aqui
vai o resultado.
coleção (Brasil, Portugal)
colecionação (Brasil, Portugal)
colecionador (Brasil, Portugal)
colecionador (Brasil, Portugal)
colecionadora (Brasil, Portugal)
colecionar (Brasil, Portugal)
colecionável (Brasil, Portugal)
colecionismo (Brasil, Portugal)
colecionista (Brasil, Portugal)
colecionístico (Brasil, Portugal)
colecta (Brasil)
colectânea (Brasil)
colectâneo (Brasil)
colectar (Brasil)
colectário (Brasil)
colectável (Brasil)
colectício (Brasil)
colectivamente (Brasil)
colectividade (Brasil)
colectivismo (Brasil)
colectivista (Brasil)
colectivístico (Brasil)
colectivização (Brasil)
colectivizar (Brasil)
colectivo (Brasil)
colectomia (Brasil, Portugal)
colector (Brasil)
coleta (Brasil, Portugal)
coletânea (Brasil, Portugal)
coletâneo (Brasil, Portugal)
coletar (Brasil, Portugal)
coletário (Brasil, Portugal)
coletável (Brasil, Portugal)
coletício (Brasil, Portugal)
colético (Brasil, Portugal)
coletivamente (Brasil, Portugal)
coletividade (Brasil, Portugal)
coletivamente (Brasil, Portugal)
coletividade (Brasil, Portugal)
coletivismo (Brasil, Portugal)
coletivista (Brasil, Portugal)
coletivístico (Brasil, Portugal)
coletivização (Brasil, Portugal)
coletivizar (Brasil, Portugal)
coletivo (Brasil, Portugal)
coletor (Brasil, Portugal)
Agora imagina o que será um «Vocabulário
Comum» COMPLETO. É muito prático, não é?
E que formas valem - e quais não valem -
para CABO VERDE, GUINÉ, SÃO TOMÉ, ANGOLA, MOÇAMBIQUE e TIMOR? Imagina-se essa
informação inserida na lista acima?