sábado, 22 de dezembro de 2012

natal por Luiz Fagundes Duarte

Já não tenho bem a certeza<br />
de que antigamente era<br />
melhor do que hoje

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Já não tenho bem a certeza
de que antigamente era
melhor do que hoje
Quando eu era criança o Natal era muito melhor do que agora. Lembro-me do presépio que os meus pais levavam mais de uma semana a fazer, com casinhas de madeira à escala das figuras de barro da venda do ti Manuel Coelho (um Menino Jesus custava dois escudos e meio, uma ovelhinha pequena valia vinte centavos, e uma média não vinha por menos de meio escudo).

Lembro-me da árvore de Natal enfeitada com rosas-do-japão, bolas de vidro colorido, tangerinas, chocolates, fiapos de algodão a fazer de neve, e os postais de boas-festas enviados pela família da América.

Lembro-me de, durante a missa do galo, no momento em que o Padre Couto cantava o Gloria in excelsis Deo acompanhado dos vocalizos da senhora Idalina e do rebentar de um bombão atirado cá fora pelo ti Búzio, eu ver um Menino Jesus com asas de anjo a espreitar pela janela da igreja – naturalmente para ver se eu estava acordado –, quando voava a caminho da nossa casa para deixar presentes nos sapatos que eu e os meus irmãos deixáramos debaixo da chaminé e que cuidadosamente engraxáramos durante o dia.

Lembro-me de que, findo o beija-pé do Menino após a missa do galo, eu e os meus irmãos corríamos para casa para tirar enfim a magna dúvida que havia dias nos vinha atormentando: teria o Menino Jesus deixado algum presente nos sapatinhos? Tinha.

E lembro-me de ver os meus pais então, sentados felizes nas cadeiras da cozinha, a ver-nos a descobrir à luz do candeeiro de petróleo os presentes que logo abríamos – um brinquedo diferente para cada um e uma variedade de chocolates que o Menino Jesus trouxera da América.

E sobretudo lembro-me das caras tristes dos outros pequenos quando, no dia seguinte, ao correrem os presépios, ficavam de boca aberta a olhar para a nossa árvore de Natal, o nosso presépio de casas, moinhos, igreja, pessoas, ovelhas, galinhas, caminhos, pontes e ribeiras, os nossos brinquedos e os nossos chocolates americanos – e lembro-me da Maria R., nossa vizinha e amiga de todos os dias, a inquirir na sua revolta que era a revolta dos justos:

– «Mas porque é que em casa de vocês o São Nicolau deixa chocolates americanos, e na minha é só chocolates da venda?!».

Sim, quando eu era criança o Natal era muito melhor do que agora, basta comparar: em lugar do Pai Natal de hoje, que em Portugal é igual ao da Cochinchina, só na Serreta tínhamos então o São Nicolau, para uns, e o Menino Jesus, para outros; em lugar da troca de inutilidades que hoje se faz (e ai de quem o não fizer, que no ano seguinte não leva nada !), tínhamos miudagem a descobrir presentes misteriosamente deixados nos seus sapatos por criaturas mágicas que voavam pelo escuro da noite; em lugar de milhões de criancinhas a receberem hoje com a maior naturalidade e sem ponta de magia, no mesmo dia e em todo o mundo, as mesmas barbies, os mesmos pokémons, os mesmos action-men, os mesmos game-boys e as mesmas trotinettes, havia aqueles que recebiam brinquedos e chocolates americanos, e tinham árvores de Natal e grandes presépios, e aqueles que se contentavam com chocolates da venda, e um galho de cedro a fazer de árvore de Natal, e duas ou três figurinhas de barro num carreirinho de serradura e musgo a fazer de presépio. Nessa altura, nos natais da Terceira da minha infância, não se sabia o que fosse a globalização.

Mas Natal também queria dizer tristeza e desencanto. Como acontecia sempre ao António, um rapaz meu amigo, que nunca tinha presépio, nem árvore de Natal, nem presentes no sapato; verdade seja dita, ele nem sequer punha o sapato debaixo da chaminé – primeiro porque andava descalço, ou quando muito de galochas de pau, e depois porque os pais dele tinham mais que fazer do que fazerem de são nicolaus.

Todos os anos era a mesma fita: a gente a mostrar-lhe o que o Menino Jesus ou o São Nicolau, con¬forme, nos botara no sapatinho, e ele a chamar-nos toleirões e a dizer que aquilo que recebêramos eram coisas lá postas pelos nossos pais, que o Menino Jesus se estava a cagar para nós, e por aí abaixo.

Mas o meu amigo dizia isto só da boca para fora, porque os olhos dele demoravam-se pelo nosso presépio, pela nossa árvore de Natal, pelos nossos brinquedos e pelos nossos chocolates. Até que um dia ele nos avisou que nesse Natal iria botar as galochas na chaminé, para ver se o cara de tolo do São Nicolau sempre lhe deixava alguma coisa – e se não, que fosse bardamerda.

Lembro-me da missa do galo do ano em que isso aconteceu. O meu amigo não parou quieto na igreja: fazia macaquices, acompanhava os cânticos do Padre Couto batendo com os pés descalços no soalho (aproveitava para assim os aquecer), dava beliscões a uns e outros, e mal acabou a missa largou-se a correr como um raio em direcção a casa. Como os pais dele já se tinham deitado e a casa estava às escuras, o António riscou um fósforo, acendeu a griseta da cozinha, e avançou para o entre-lar como se fosse à procu¬ra da vida entre as negras panelas de ferro. E foi de facto a vida – a vida que era a dele – que o meu amigo encontrou nas galochas que, entre o incrédulo e o esperançoso, deixara debaixo da chaminé a ver se pegava: em cima delas, como um escarro caído dos céus, encontrava-se uma acha de lenha. E em vez de cânticos de Natal – o que o António ouviu, vindo do quarto de cama, foi a voz do pai a dizer-lhe que o que ele precisava era de lenha por riba do lombo.

Agora, depois de recordar estas histórias, já não tenho bem a certeza de que o Natal da minha infância fosse muito melhor do que o de hoje. Até porque o meu amigo António, neste Natal, vai com certeza oferecer barbies e action-men aos seus filhos.


(Título original: Uma história de Natal; Ilustração: Natividade, painel de 1350, de mestre de Hohenfurth)
Luiz Fagundes Duarte
Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura
Natural da Terceira, onde reside

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