domingo, 24 de fevereiro de 2013

A DIVINA COMÉDIA E A COMÉDIA HUMANA LUIZ FAGUNDES DUARTE


by Luiz Fagundes Duarte on Saturday, 23 February 2013 at 10:09 ·
           

Começo por fazer a minha declaração de interesses: eu sou cristão católico por definição, e tenho os sacramentos todos em dia (excepto a extrema-unção, ‘tá visto). Por isso, não sou insensível à decisão histórica de Bento XVI ao resignar ao cargo de Papa que, também por definição (excepto uma ou outra excepção, passe a redundância, entre as quais a dele), é para a vida. Porém, verdade seja dita, um dos sacramentos mais frequentes – o casamento – também começa por ser para a vida mas, na prática, é aquilo que se vê.
         Esta decisão do Papa parece-me justa: se toda a gente se reforma, grande parte das vezes quando ainda está para as curvas, por que razão não há-de um Papa reformar-se, sobretudo quando já anda a arrastar os pés? Mesmo que seja para fazer outras coisas – e quanto a isso também nada a opor: apesar de serem reformados, o nosso Presidente da República e a nossa Presidente da Assembleia da República lá andam nos seus activos decorando as paredes à nossa Democracia... Mas voltando ao Papa: ao que consta, o futuro ex-Bento XVI não vai fazer grande coisa na reforma, já que se vai recolher à clausura; mas, certamente, não deixará de ter alguma pensão a dar ordens ou a manifestar desejos ao batalhão de freiras que lhe irão tratar da comida e da roupa branca, e de tudo aquilo a que um ex-Papa tenha direito.
         Nessa matéria, a distância que separa Bento XVI do seu antecessor João Paulo II é muito maior do que a fronteira que separa os seus países de origem: Alemanha e Polónia. Enquanto um, o polaco, entendeu brindar toda a gente, urbi et orbi, com o espectáculo de sofrimento do seu corpo desfigurado e da sua boca babando (o que toda a gente insistentemente elogiou – até porque, como um seu antigo colaborador afirmou recentemente a propósito da resignação de Bento XVI, e lá vinha a tal comparação, ninguém desce da cruz a que alguém o pregou…), o outro, o alemão, achou por bem fazer o que as pessoas ajuizadas preferem fazer: sair de cena com dignidade (o que toda a gente insistentemente elogia – até porque, ao contrário do que afirmou recentemente um antigo colaborador do seu antecessor, e lá vem a tal comparação, qualquer pessoa tem o direito de descer da cruz a que alguém o pregou).  
         Esta versatilidade oxímara (elogiar uma coisa e o seu contrário) da hierarquia católica – impressiona. Mas as coisas são como são, e eu cá por mim prefiro mil vezes guardar a imagem de uma pessoa que dignifica o cargo para que foi eleita abandonando-o no limite “ad quem” (ou seja, até ao momento em que ainda pode desempenhar em pleno as suas funções), do que uma outra que não o faz, mesmo depois de ter visivelmente ultrapassado o limite “a quo” (ou seja, o momento a partir do qual já não as pode desempenhar).   
         Coisas da divina comédia (e penso em Dante Alighieri).
         O que – e que ninguém me acuse de heresia!, eu sou um simples mortal que dá por si a pensar em coisas – me traz à memória aquela imagem, ainda mais recente, de ver o ministro Relvas a cantar em público e em coro a “Grândola, vila morena”: como não sabe latim nem, ao que parece, tem grande ouvido para cantigas, o homem julga que ainda se está pelo “ad quem” quando, desde há muito, e à vista de toda a gente, já se afundou nas profundezas do “a quo”.
         Coisas da comédia humana (e penso em Honoré de Balzac).


(No diDOMINGO, de Angra do Heroísmo)

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