in diálogos lusófonos
Os portugueses, a crise e os enlatados
ISABEL COUTINHO
Ouvem-se
passarinhos lá fora. A árvore em frente ao balneário público de Santo
Estêvão está sem folhas, mas os pássaros chilreiam em despique com os
pombos na janela de um prédio em ruínas.
A
vizinha não está a ouvir fado aos berros nem tem a televisão ligada nos
concursos e telenovelas. Alfama até parece um paraíso. Não fosse o
título no jornal: "Lisboa amanheceu a cheirar mal e ninguém sabe
porquê". E a notícia: "Partes da cidade amanheceram nesta terça-feira
envoltas num intenso odor a ovos podres ou lixo, fruto da combinação da
meteorologia e de uma fonte de poluição que até às 12h30 ninguém sabia
dizer qual era".
Este
é o ano em que deixámos de ter ilusões: vivemos num país ao som dos
passarinhos, mas abre-se a janela e cheira a ovos podres.
No
mês passado, os portugueses fizeram contas para saber quanto vão perder
no ordenado por causa do aumento de impostos. Alguns tiveram ainda de
decidir se querem receber metade dos subsídios de Natal e de férias
parcelados ao longo do ano ou não. Para atenuar o choque. Chamam-lhe a
"ilusão dos duodécimos" ("até parece que passamos a ganhar mais, mas é
uma miragem" explicava a revista "Visão"). Seja como for a conclusão é
simples: o salário encolheu.
A PALAVRA DO ANO
E
vamos mudando hábitos. Cortando aqui e ali. Deixámos de assinar a
SportTV --o canal que transmite vários jogos de futebol pela TV a cabo--
e passamos a ir ver os jogos ao café. Deixámos de ir ao ginásio e
descobrimos que a zona ribeirinha é perfeita para treinar.
Passámos
a levar o almoço para o trabalho, na marmita. A gasolina está cara e
por isso nunca houve tanta gente a andar de bicicleta em Lisboa. Muitos
passaram a fazer as compras on-line porque é mais fácil comparar preços e
já ninguém liga às marcas. Aproveitam-se todos os cupões de desconto e
já ninguém se sente acabrunhado por pedir ao empregado do restaurante
para levar os restos para casa.
Uma
palavra para resumir tudo isto? "Entroikado". Pelo menos foi assim que
pensaram os portugueses que participaram numa votação organizada pela
Porto Editora para a eleger a palavra que melhor representa o ano de
2012.
O
adjectivo "entroikado", que segundo a entrada do dicionário da Porto
Editora, tem o sentido de : "1) obrigado a viver sob as condições
impostas pela troika (equipa constituída por responsáveis da Comissão
Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional e que
negociou as condições de resgate financeiro em Portugal); e 2)
coloquial: que está numa situação difícil; tramado, lixado."
NA TERRA DA SARDINHA
Lembro-me
de ouvir o escritor Miguel Real, que vive em Sintra, dizer que a partir
do dia 16 de cada mês a câmara recolhe dos caixotes do lixo latas de
conserva em catadupa. O dinheiro falta e as pessoas compram conservas
porque é mais barato. Outrora comer conservas era "uma coisa de
poupadinhos" mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Em
Lisboa, há agora restaurantes só de conservas. Podem até ser gourmet,
como o Can the Can - Canned Food Goes Gourmet, na renovada praça do
Comércio. Ou tradicionais, como o famoso bar de conservas Sol e Pesca,
no Cais do Sodré, que teve direito a destaque no programa "No
Reservations" de Anthony Bourdain em Lisboa.
O
chef quis encontrar-se com António Lobo Antunes e teve a ideia de o
levar a uma casa de fados, a Tasca do Chico. Ninguém lhe disse que o
escritor detestava fado porque lhe lembra o antigamente e nem ouvir
Carminho o consegue fazer esquecer os tempos da ditadura, em que não
havia futuro. Tempos que parecem estar cada vez menos longe.
MÚSICA COM LATA
Mas
as conservas estão na moda. A loja da Conserveira de Lisboa, na rua dos
Bacalhoeiros, na Baixa de Lisboa, teve a ideia de convidar 13 músicos
portugueses para desenvolverem o design de uma lata de conserva à sua
escolha.
O
projecto chama-se "Música com Lata" e acontece até ao final do ano.
Janeiro foi o mês da cantora de jazz Maria João (que escolheu recriar a
lata do polvo fumado em azeite), este é o mês do fadista Camané, março
será do guitarrista Norberto Lobo, abril, do rapper Chullage, maio, de
Pedro Jóia, e junho, de Manuela Azevedo em dueto com Sérgio Godinho.
Na terceira terça-feira de cada mês, às 19h30, o músico lança a sua "lata" (em edição numerada e limitada de 500 latas) na Conserveira de Lisboa. Haja música com lata e sobreviveremos.
[Fonte: www.folha.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário