JOÃO DE MELO:
LARGAR TUDO POR UMA CAUSA (in “JL – Jornal de
Letras, Artes e Ideia”, 06.02.2013)
P - A actual situação do País (e, se quiser, a da
Europa e do Mundo) tem influído na sua criação
literária (impedido, condicionado, estimulado) e
na sua actividade como escritor?
R – A crise não sobrevoa ninguém; envolve-nos,
compromete-nos a todos. Impôs-se também,
obviamente, à minha escrita. Não se pode ficar
imune a nada do que vemos e ouvimos à nossa volta.
São outras agora as vozes que escutamos (ou as
mesmas de sempre, mas noutro registo, por palavras
com diferentes sentidos). Os extremos sociais
tocam-se: por um lado, os velhos empobrecidos às
ordens da política monetária, por outro, os jovens
a contas com a recessão no trabalho e nos
empregos. E, no meio, quase todos nós. Nada hoje
em Portugal parece coerente e inteiro: vive-se dos
fragmentos dolorosos de uma realidade que parece
ter-nos posto à beira da guerra civil. Escrever
sobre “isto”? Só se for através de uma escrita a
quente, marcada pelo protesto e pelo ódio. A
literatura serve-se nua e fria. A minha escrita de
interregno são os contos (é urgente reabilitar a
excelência literária e a leitura do conto entre
nós). Gosto deles: falam de vencidos, da dignidade
orgulhosa dos vencidos de hoje que amanhã hão de
sacrificar e exilar quem os venceu. Escrevi também
um romance sobre os infernos deste mundo, dividido
em seis “cadernos” (dei-lhe entretanto um
sedativo, pu-lo a dormir). E vou a meio de outro
que entrecruza duas histórias, uma africana, outra
portuguesa. O problema não reside no tipo de
abordagens, mas antes na criação de uma linguagem
que seja só minha. Serei sempre um escritor de
linguagem em criação. A crise, como um fungo ou um
líquen, vive também dentro das palavras. E elas
mesmas mudaram: não explicam a ideia nem a
ideologia dos nossos sonhos. Sonhar como, se
afinal, mesmo todos despertos, ainda somos tão
poucos?
P - Entende que os escritores têm, ou não, nessa
qualidade e como cidadãos, responsabilidades
especiais de intervenção cívica – e a que níveis?
E, caso positivo, estão ou não a assumi-las? (Se
preferir ou achar bem, dê o seu próprio exemplo)
R – Gosto de escritores à antiga portuguesa,
ativos e generosos ao ponto de largarem tudo por
uma causa, uma emergência nacional. Receio que
andem demasiado ao comércio dos livros, como disse
o Herberto Helder. Impantes de glória,
deslumbrados com os prémios. Preferia vê-los de
novo à cabeça da cidadania, a honrarem-se de
apoiarem a luta dos professores, ao lado da
juventude explorada, sem direitos laborais, sem
trabalho ou sem horários, a ganhar menos que o
óbolo do barqueiro da morte. A pior das
arrogâncias políticas é afinal a patronal. Há
gente a falar de crise, e outra a encher a barriga
à custa dela. Depois da traição e do abandono a
que o Estado social nos votou, parece que só a
prosperidade dos ricos e o sucesso das empresas
prometem a cura do nosso empobrecimento. Falta
impor regras. Contrapor a ética e a moral social
aos abusos de poder do dinheiro e a uma exploração
mais desenfreada que jamais se viu entre nós. Não
vale a pena contar com o Governo para nada: nunca
estivemos tão sós, tão frágeis, tão à mercê de
conselhos de ministros cegos e bestiais. Entre
lutas de classes e de castas, é cada um por si e
fé no Diabo. Pessoalmente, não disponho de espaço
para intervir pela via da escrita. Gostava de
voltar à crónica, tal qual a pratiquei na imprensa
dita generalista. Mas estive muito tempo fora,
perdi o meu barco. O mercado livreiro não tolera
infidelidades produtivas nem faltas de
comparência. Tenho o meu ritmo, escrevo por desejo
e não por bulimia. A escrita nunca foi uma via de
fuga à política. Sou um escritor de esquerda,
estou vivo, hei de regressar.
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