A nostalgia do cinema
O Pico da Pedra teve, outrora, uma
casa de cinema, mas a juventude da minha geração foi criada na
cinefilia das duas casas de Rabo de Peixe: Cine S. Sebastião e Cine
Mira Mar.
Aos domingos seguíamos na
camioneta das 13 horas, para assistir à matinée no S. Sebastião,
que começava às 14h, com dois filmes de rajada, quase sempre uma
cowboiada (Gringo, Trinitá, Django), seguida de uma película
qualquer de partir corações.
Entre os dois, um intervalo para o
cigarro ou para o pirolito na tasquinha ao lado da bilheteira.
Quando o filme era para maiores de
18, lá nos juntávamos aos mais velhos, para parecermos como eles e
passarmos despercebidos pelo polícia, sempre colocado
estrategicamente à entrada. Quando havia problema, como houve
tantas vezes, o Sr. Peixoto, proprietário da sala e que controlava
as entradas, dava uma palavrinha ao polícia (“é gente boa, do
Pico da Pedra”), e a porta abria-se.
Vem esta noltalgia a propósito do
encerramento das salas no Parque Atlântico, em Ponta Delgada,
deixando a ilha de S. Miguel sem cinema.
Já as freguesias,como a nossa,
tinham perdido, há muito, as suas salas.
São os sinais dos tempos, que
agora também afectam as cidades e os grandes centros comerciais.
Hoje já é possível ter cinema em
casa e, não sendo a mesma coisa, contribui certamente para a
diminuição dos espectadores das salas públicas, que têm vindo a
cair a pique no nosso país.
O cronista Pedro Mexia, ainda há
pouco tempo, também se queixava, nostálgico, do fim do “tempo das
catedrais” em Lisboa, como o Tivoli, o S. Jorge, o Éden, o Império
e o Monumental, a que se seguiram as salas de “multiplex”.
O cinema marcou várias gerações
e, provavelmente, terá terminado a sua função com o fim da minha
geração, que ainda assistiu ao ritmo pujante de salas cheias.
Até aos dias de semana, as salas
do Mira Mar e S. Sebastião enchiam-se às quartas-feiras, com filmes
mais atrevidos, para adultos. Mais uma vez tentávamos ludibriar o
polícia, pedindo a companhia de um homem mais velho que se fazia
passar por pai. Até que um dia, na exibição do filme “Helga”,
para maiores de 21, durante a cena em que se via o nascimento de uma
criança, o polícia irrompia na sala com uma pilha e procurava os
mais novos para sairem...
Na sala do Pico da Pedra, as cenas
eram semelhantes. Até que um dia, durante as cenas escabrosas de “A
grande farra”, alguns pais que levavam, inadvertidamente, os filhos
mais novos, encarregavam-se de os conduzir cá fora para não verem
“aquelas poucas vergonhas”...
O cinema no Pico da Pedra era uma
institução, assim como o jovem que colocava a fita a rodar na
máquina de cinema - o nosso bom amigo e bem humorado João Almeida -
que acalmava toda a gente com os seus gracejos, quando o filme
começava com a última bobine (parte final)... por engano. Aconteceu
algumas vezes e poucos davam por isso, estranhando no entanto que o
filme tivesse demorado tão pouco tempo. Outras vezes vinha o filme
enganado, que nada tinha a ver com o previamente anunciado.
Num quadro preto colocado no largo
da Igreja era sempre anunciado, a giz, o filme da semana seguinte,
acompanhado, invariavelmente, pela frase “grande filme”! Também
invariavelmente, sem que ninguém visse durante a noite, eu ia
sorrateiramente ao quadro e escrevia: “Grande rosca”!
Hoje, tudo é virtual e digital,
cadeiras que parecem sofás, três dimensões, pipocas a rodos e
carro à porta.
Naquele tempo íamos de camioneta,
mas o regresso era a pé, mesmo depois das soirées, pela Canada
Grande acima, aos grupos, a passo largo (e de corrida quando
passávamos no cemitério...).
Mais de trinta anos depois,
perdeu-se quase tudo.
E o quase tudo era a mística de
todo o frenesim da ida ao cinema, misturada com o ambiente das salas
(em Rabo de Peixe batiam-se palmas quando o actor salvava a actriz!),
para além da nossa identificação com os personagens.
A historiadora Margarida
Acciaiuoli, no livro “Os cinemas de Lisboa”, citado por Mexia,
explica que “o espectador liga as salas aos filmes que nelas viu, e
as emoções que estes desencadeiam entranham-se nesses espaços
povoando-os como fantasmas. Talvez por isso se tivesse quase sempre a
sensação de que não havia salas vazias. Nelas pareciam habitar
espectros que conviviam com as imagens e os sons que os cineastas
montavam e que se fundiam com o lugar numa presença única”.
Perdeu-se tudo isso.
Como diz Pedro Mexia, “talvez não
seja uma calamidade, mas é uma tristeza. Talvez por isso eu sinta
saudades daquilo que nem cheguei a tempo de perder”.
Pico da Pedra, Fevereiro 2013
Osvaldo Cabral (pubicado no jornal da freguesia)
ACABARAM AS SALAS DE CINEMA NOS AÇORES...
Sem comentários:
Enviar um comentário