terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

luiz fagundes duarte



Português tem padaria?

by Luiz Fagundes Duarte on Saturday, 2 February 2013 at 14:31 ·
           
           
No Brasil, o Brasil é o centro do mundo. Você está lá e quer saber o que se passa nos Jogos Olímpicos de Londres? – Pois bem, ligava a televisão, procurava o canal que estava a transmitir reportagens dos Jogos, e que via? E o que ouvia? Ora bem: via os atletas brasileiros, ouvia comentários acerca dos atletas brasileiros – e tudo o que você via ou ouvia acerca de atletas que não fossem brasileiros seria apenas por­que eles, naquele momento, estariam a defrontar-se com atletas brasileiros.
         Estou em Salvador da Bahia, mas poderia estar em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Curitiba ou no Recife. E apenas tenho uma certeza: eu estou no centro do mundo porque, aqui, não há resto do mundo – apenas brasileiros com o seu charme tropical, cultivando a mais cândida ignorância do que se passa para além das generosas fronteiras do seu país. Noto por vezes, até, o ar de espanto e de atrapalhação, quase de dó, que as pessoas estampam no rosto quando lhes dirijo a palavra; e, se lamentam alguma coisa – o que lamentam não é a sua incapacidade para me entenderem, mas o facto de eu não me fazer entender por eles.
         Um dia, em São Paulo, entrei sozinho num restaurante para jantar. O empregado trouxe-me a lista, e eu escolhi o que desejava comer. Ele não enten­deu. Repeti. Voltou a não entender. Então fiz como faria no Japão: apontei com o dedo. Aí, ele entendeu. Mas reparei que o rapaz, à medida que servia os outros clientes, me ia botando uns olhares de estranheza, assim de esguelha, com uma enorme interrogação desenhada no rosto. Até que me perguntou, no momento em que me trouxe o prato:
         – Tchileno ?
         Eu respondi-lhe que não, que eu não era chileno. Mas, sempre que podia, o homem passava por perto de mim e perguntava-me: «Argentino?», «Uru­guayo?», «Peruano?» – e eu sempre respondendo que não, que não era daquelas bandas. Ele desesperava. E, quando me trouxe a sobremesa, quase explodiu: – «Máis dji ondji é qui ‘ocê é?».
         Então eu disse-lhe que era português. – «Pórrtuguéis dji Pórrtugáu?!», perguntou-me ele, como se tivesse posto um pé na Lua. Disse-lhe que sim, claro. – «E tem padaria em Pórrtugáu?», quis ele ainda saber. Aí, eu fiquei atrapalhado: com aquele «tem», quereria o rapaz saber se eu era proprietário de padaria, ou se havia padarias em Portugal? Arrisquei um não, que eu não era dono de qualquer padaria. Mas o pobre não queria acreditar: – «Então, o qui ‘ocê fáis em Pórrtugaáu?!». Eu, para o sossegar, disse-lhe que era professor. Ele quis saber de quê – e eu disse-lhe que era professor de português.
         Ao ouvir tamanha revelação, ele quase deixou cair a bandeja; mas lá conseguiu equilibrá-la, pousou-a em cima da mesa, e com os dentes alvos acentuando o ar vitorioso de jogador de futebol brasileiro que acaba de meter um golo à selecção dos Camarões, gritou em triunfo:
         – Prrófèssô dji pórrtuguéis?!... Então, é por isso qu’ ocê fala pórrtuguéis...
         Desisti.
         Levantei-me, abandonei o dinheiro em cima da mesa, e cabisbai­xo, de ombros derreados, pus-me a caminho do hotel, evitando o olhar daqueles cidadãos do centro do mundo que não deixariam de me apontar o dedo, expondo-me ao escárnio público, se desconfiassem que eu não era dono de padaria – como qualquer português que se preze em qualquer bairro ou favela de São Paulo. E disse cá para mim, com medo que alguém ouvisse:
         – E nós que não dispensamos uma telenovelazinha brasileira... Qualquer dia, ainda temos um bailhinho de entrudo a dançar o samba...


(diDOMINGO, de Angra do Heroísmo, e Açoriano Oriental, de Ponta Delgada)

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